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O que o luto da rede municipal do Rio diz sobre a violência que atinge as escolas

No período de um ano, 28,5% das escolas da cidade do Rio de Janeiro perderam aulas por conta de tiroteios

POR:
Laís Semis
José Gerson da Silva, pai do menino Marcos Vinícius, exibe camiseta da escola manchada de sangue no enterro do filho no Cemitério São João Bastista, no Rio de Janeiro    Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A rede municipal de Educação do Rio de Janeiro decretou luto de três dias pela morte do estudante Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, baleado no dia 20 de junho. Marcos estava a caminho da Ciep Operário Vicente Mariano, onde cursava o 7º ano, quando foi atingido no abdômen durante uma operação realizada pela Polícia Civil com o apoio das Forças Armadas. Antes de morrer, o menino teria dito à mãe que o tiro partiu de um blindado. A Delegacia de Homicídios vai fazer uma reconstituição para verificar se o disparo que matou o estudante teria mesmo partido de um veículo blindado. Embora Marcos não tenha sido atingido dentro da escola, ele tornou-se um símbolo de como a violência das ruas tem afetado instituições de ensino e suas comunidades.

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Entre julho de 2016 e julho de 2017, a capital do Rio de Janeiro registrou 3.829 tiroteios. Em toda a rede, 439 escolas fecharam pelo menos uma vez em dias letivos por conta da violência no entorno. O número representa mais de 28,5% das escolas da rede municipal. O resultado são mais de 157 mil alunos perdendo conteúdo ao qual teriam direito, segundo a lei. Os dados são da Secretaria Municipal de Educação e da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mas os impactos não acabam apenas no conteúdo perdido em sala de aula. “Além dos danos objetivos, há um impacto socioemocional grande”, afirma Gisele Martins, coordenadora do eixo Educação da Redes da Maré. “Tanto os alunos, quanto os professores ficam em uma tensão de: ‘Hoje teve operação, e amanhã? Será que tem?’”.

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A tensão, o medo e a incerteza diária têm um impacto direto nos estudos. “Esse acúmulo de influências negativas faz com que crianças em situação de guerra tenham uma memória recente mais curta, o que afeta a aprendizagem”, afirma Yvonne Bezerra de Mello, idealizadora do Projeto Uerê, que auxilia crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem relacionadas a traumas provocados pela violência na comunidade. O que pode ser visto como uma dificuldade pontual de aprendizagem acaba se acumulando ao longo da trajetória escolar, até que o aluno decida deixar a instituição de ensino. Em comparação com a média nacional, a taxa de evasão na comunidade da Maré é quase 20% maior.

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Para evitar que isso aconteça, Yvonne acredita que é necessário ter um ensino diferenciado, que leve em consideração a realidade cotidiana das crianças e adolescentes. “Não é que essas crianças não aprendem. Elas têm um bloqueio por traumas, geralmente emocionais, associado a sentimentos de medo, culpa e negligência. É isso que faz com que tenham dificuldades em aprender”, explica. As “situações de guerra” que a pedagoga cita incluem a convivência com os tiroteios no Rio, mas também cobrem situações como as dos alunos refugiados, que carregam essas memórias de conflitos. Yvonne já trabalhou com crianças nos dois casos e acredita que o ideal para elas seria ter aulas dinâmicas, que levem em consideração aspectos socioemocionais, estimulem a comunicação e que sejam mais conectadas com a sua realidade. É esse trabalho que ela desenvolve há 45 anos. Nos anos 1970, Yvonne começou a desenvolver pesquisas de aprendizado em países em guerra. Em 1993, abriu sua primeira escola sob uma ponte para apoiar os estudos de crianças em situação de vulnerabilidade na capital fluminense.

Familiares e amigos do menino Marcos Vinícius da Silva caminham durante enterro no Rio de Janeiro   Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Aprendizagem e situações de risco
Essas estratégias desenvolvidas por Yvonne Bezerra de Mello foram compartilhadas com outros docentes da rede pública carioca. “Durante 8 anos trabalhei na prefeitura do Rio capacitando professores em zonas de risco. A formação ia desde entender o emocional até como a aprendizagem é captada por uma criança traumatizada, que é diferente de uma criança que vive em um ambiente de paz”, diz.

Para a pedagoga e idealizadora do Projeto Uerê, a formação é um dos pilares para garantir que a violência não impeça crianças e jovens de aprenderem e os leve a desistir da escola. “As formações, tanto inicial quanto continuada, devem considerar características específicas do local de atuação do profissional”, diz. “Isso faz uma diferença enorme. Eu vejo que existe um gargalo e uma falta de compreensão do que é ser professor no Brasil”.

Os professores que atuam nessa região também precisam estar preparados para lidar com situações de risco. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) oferece um treinamento para educadores dessas escolas. Nele, os participantes são orientados a simular ações necessárias em caso de violência (como evacuação), reconhecer o melhor lugar para abrigar alunos em caso de tiroteios e tomar decisões que podem salvar a comunidade. Mas para a coordenadora do eixo Educação da Redes da Maré, é preciso fazer mais. “Além das estratégias de proteger os alunos, precisamos ter políticas que consigam garantir a segurança desses espaços, a proteção dos alunos e educadores”, diz Gisele Martins. Para ela, um caminho possível é não fazer operações policiais próximas a escolas. “Já vimos diversos episódios em que a segurança contribuiu para vulnerabilizar ainda mais a situação”, diz.

O menino Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, morreu durante uma operação no Rio de Janeiro   Foto: Reprodução/TV Globo

Medo e preconceito
Além dos alunos que desistem da escola, há movimentações de transferência por parte dos alunos e dos professores. “Algumas famílias adotam a estratégia de colocar seus filhos em outras escolas, o que é compreensível, mas negativo porque temos um conjunto de escolas disponíveis na região das quais as pessoas tentam se afastar”, diz Gisele. Esse movimento de abandono se reflete também entre os professores. “Os profissionais pedem licença ou preferem trabalhar em outros locais”.

O preconceito que existe hoje sobre essas regiões também interfere nas tentativas de trazer soluções ou construir caminhos para reerguer a Educação no Rio de Janeiro. Há um “julgamento” sobre quem tenta fazer a diferença nesses locais. “As pessoas dizem que eu educo bandido”, diz Yvonne. “Não há compreensão do que é a situação. Dizem que a culpa é dos meninos e não é. Não há prevenção, não há cuidado e a culpa recai sobre eles”.  Para ela, almejar que o Brasil seja a nova Finlândia e desconsiderar o contexto nacional não é o caminho. É preciso agir em relação à realidade encontrada nas diferentes localidades do país. E, no caso do Rio de Janeiro, a violência é uma realidade latente.

Para a pesquisadora, que atuou com crianças em situação de vulnerabilidade em diferentes partes do mundo, é possível conter ou, ao menos, minimizar esses traumas que têm um impacto na aprendizagem. “Vejo como elas reagem a uma metodologia que leve em conta seu contexto socioemocional. Eu acredito que é possível”, diz Yvonne. Para superar esse cenário, Gisele considera que é preciso que a área de Educação trabalhe em conjunto com a de segurança pública. “Não tenho dúvidas de que é uma questão muito desafiadora. Mas precisamos de estratégias que tenham foco nos direitos e segurança das crianças”, afirma.

O Exército ocupou o Complexo da Maré em 2014    Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Tiroteio a caminho da escola
Marcos Vinícius chegou com vida à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) com vida, de acordo com uma testemunha que o socorreu e sua mãe, Bruna da Silva. Em depoimento ao G1, ela afirmou: "Ele falou 'mãe, eu sei quem atirou em mim, eu vi quem atirou em mim'. Eu falei 'Meu filho, quem foi que atirou em você?'. 'Foi o blindado, mãe. Ele não me viu com a roupa de escola'", afirmou Bruna.

A operação realizada pela Polícia Civil, com o apoio do Exército, empregou quatro blindados e cobertura de um helicóptero. A polícia afirmou que foi à Maré para cumprir 23 mandados de prisão, mas ninguém foi preso. Além de Marcos Vinícius, outras cinco pessoas morreram naquele dia.

Um laudo do Instituto Médico Legal (IML) revelou que o menino foi baleado pelas costas. Os peritos afirmam que a bala atravessou o corpo de Marcos Vinícius e saiu pela barriga.

No velório, Bruna da Silva mostrou a camiseta da escola manchada de sangue. No enterro no Cemitério São João Batista, o pai, José Gerson, exibiu a mesma camiseta diante dos jornalistas.

Vista do Complexo da Maré, que foi ocupado pelo Exército em 2014   Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

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