“O suicídio é uma forma desesperada de construir um sujeito”
Especialista em questões da adolescência, o psicanalista Mário Corso defende que a escola precisa construir formas de dialogar sobre o assunto
POR: Pedro Annunciato
Quando a reportagem de NOVA ESCOLA procurou o psicanalista Mário Corso, 58 anos, para uma conversa sobre suicídio, o convite foi aceito prontamente. Gaúcho de Passo Fundo (RS), ele e a esposa, Diana, estudam e escrevem sobre adolescência e atendem jovens com as mais diversas angústias. Em 2007, porém, Mário sofreu o mais duro golpe de sua carreira: um de seus pacientes, de 16 anos, tirou a própria vida e transmitiu o ato ao vivo para uma plateia sádica na internet.
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Desde então, o nome de Mário ficou vinculado ao drama do suicídio de adolescentes, que, segundo dados do Ministério da Saúde, aumentou 18% entre jovens de 10 a 19 anos, de 2011 a 2015. Recentemente, ele foi convidado pelos próprios alunos de uma escola de sua cidade natal para ajudar uma colega que contou aos amigos que estava pensando em se matar. Mário não é especialista no tema, mas topou a empreitada, com a mesma disposição com que concedeu esta entrevista, por telefone. Onze anos depois da tragédia que assistiu, o psicanalista fala do assunto com relativa tranquilidade e defende que se construa um trabalho consistente de prevenção ao suicídio no Brasil.
NOVA ESCOLA: Como surgiu esse convite de alunos para falar de suicídio na escola?
MÁRIO CORSO: Eu não costumo fazer esse trabalho porque não tenho tempo. Sou psicanalista, trabalho o tempo inteiro e, além de tudo, escrevo uma coluna no Zero Hora e acabei de lançar um livro com a minha esposa. Foi uma coisa totalmente por acaso. Passo Fundo é a cidade onde eu nasci, e lá tem a Jornada de Literatura, uma espécie de Flip, que junta um monte de gente, mexe com a cidade… E eu resolvi ir pra lá. Os alunos dessa escola souberam, pegaram meu nome na internet (meu nome ficou ligado à questão do suicídio, infelizmente), e me fizeram um convite. E foi engraçado porque quem faz esse tipo de convite nunca são os alunos, mas os professores, a direção…
Quando eu cheguei lá, vi que tinha uma escola que escutou essa garotada. Eles [os alunos] pegaram no pulo uma adolescente que estava com uma ideação suicida [ato de pensar constantemente ou planejar suicídio] e conseguiram, de alguma forma, se mobilizar. O fato é que a comunidade escolar conseguiu impedir um incidente que se desenhava. O que eu achei interessante nesse caso foi ver como é possível envolver os alunos nisso. O professor não fica sabendo dessas coisas.
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Como os alunos descobriram que a colega queria se matar?
Ela começou a falar pra eles. É o que acontece sempre. Quando as pessoas têm uma ideação suicida, elas vazam, ou na internet ou no colégio. Esse vazamento muito raramente chega no professor. E o professor tem tanta coisa pra fazer na escola… Além do mais, quem está mais perto dos alunos? Os outros alunos. Então eu acho que o trabalho de prevenção na escola depende de uma aliança com adolescentes protetores.
A gente tem que entender uma coisa: existe quem faz bullying na escola, mas existem os adolescentes cuidadores. São jovens mais maduros ou com uma integridade moral mais avançada, por alguma razão. Se tu fizer uma aliança com esses adolescentes, tu amplia a possibilidade da rede da escola de captar problemas. Claro que vai ter falhas, todas as redes têm buracos. Mas você amplia a possibilidade de antecipar onde está acontecendo o problema. O pessoal faz prevenção, mas não coloca os adolescentes numa posição mais ativa, de se auto-organizarem e terem uma brigada contra bullying e até suicídio.
Como a escola pode construir essa rede na prática? É fácil identificar esses adolescentes cuidadores?
Eu não sei, não tenho vivência de escola. Sei que na escola em que eu fui os alunos eram criaturas muito preocupadas com seus colegas e estavam assustados. A ideação suicida assusta, as pessoas não sabem o que fazer.
Como funciona a cabeça do adolescente de hoje? Eles são, de fato, diferentes do que eram há 10 ou 20 anos atrás?
A primeira coisa que você tem que entender é que a adolescência é algo muito recente. A juventude sempre existiu, mas essa forma como entendemos a juventude só se tornou massiva no pós-segunda guerra. A geração baby boomer [dos nascidos entre os anos 1940 e 1960, fase marcada por uma explosão populacional e por transformações sociais], que fez Woodstock, que fez maio de 68… Essa foi a primeira geração adolescente que existiu, com uma cultura própria da adolescência, isolada de outras.
Esse é um período em branco que se abre, em que tu não tem responsabilidades, está só estudando… Teu avô não teve adolescência, ele fez serviço militar, casou e acabou. As mulheres começavam a ter filho. Não tinha esse prolongamento.
Mas o que caracteriza essa cultura da adolescência?
Existe uma expressão que é usada pelo Erik Erikson [psicanalista americano, 1902-1994] que é: a adolescência é uma "moratória antes da vida". É a suspensão da dívida, dos deveres com a vida adulta, até que se façam as escolhas de vida. Ninguém sabe explicar como tudo isso começou. E se tu recuar mais tempo ainda, se tu pegar as sociedades indígenas, existem rituais de passagem para ser adulto. Sabe o bar mitzvah? Aos 13 anos, numa sociedade tradicional judaica, teu pai deixa de responder por ti. Havia um ritual da maioridade que tirava o sujeito da infância. Isso não acontece mais, vira um longo processo.
Qual é o impacto dessa mudança na formação do indivíduo?
Existe impactos negativo e positivo. O negativo é que tu fica muito tempo sem fazer nada, o que serve pra te angustiar, fumar maconha… O lado bom é que serve como espaço de criatividade.
A tarefa adolescente é essa escada [para a vida adulta]. Um adolescente já sabe que é amado pelos pais, então tem que se provar é na rua. O que ele tem que fazer é encontrar um lugar em que seja respeitado. Por isso que os jovens ficam preocupados com o que os outros vão pensar... Eles precisam provar que são alguém. Essa é a tarefa adolescente: crescer, se desligar dos laços com o pai e a mãe. É uma espécie de refundação que a gente faz, e que eu acho que está mais ligada à questão do individualismo do que qualquer coisa.
Também há uma revolução de três séculos atrás, [a partir da qual] a gente não vive tanto para a sociedade, mas vive para si mesmo, constrói uma trajetória. São mudanças culturais que vamos enfrentando, que vão nos impactando e que a gente não sabe por quê.
E como fica a escola diante dessa cultura adolescente?
A escola, coitada da escola... A escola foi pensada para ser um lugar de transição, você está lá para aprender, certo? Mas como cada vez mais os adolescentes têm que se firmar no mundo e criar uma sociabilidade entre eles, a escola virou um clube onde eles precisam buscar sua representação social. E isso atrapalha muito a tarefa da escola. Ficam lá milhares de egos se friccionando, tentando encontrar o seu espaço, tentando bancar o seu estilo, e não estão lá só para aprender.
E pior: com o encolhimento das famílias, a gente não vive mais entre um monte de primos… Os jovens hoje são filhos únicos, ou só têm meio-irmão, vivem longe dos avós. Não existe mais a família onde o sujeito tinha um espaço de socialização. Eles também tem menos a rua, onde se tinha um espaço de socialização, por causa da violência urbana. Eu cresci na rua, entende? Digamos que eu fosse um fracasso no colégio (não era o meu caso porque eu ia relativamente bem no colégio). Eu podia ser, ao mesmo tempo, o melhor jogador de futebol da rua, tu me entende? Havia um outro lugar para ser alguém. Essa criançada não tem outro lugar para ser alguém. A escola ficou hipertrofiada como um lugar de socialização. A vida do professor hoje é um inferno. Nunca foi tão difícil, ele nunca foi obrigado a se confrontar com tantos papéis para os quais ele não tem preparo.
O sr. acha que a escola tem condições de enfrentar esse desafio?
Ela não tem escolha. Ela vai ter que enfrentar porque é lá que estão se reunindo todos os jovens. Ela vai ter que se adaptar e criar mecanismos para absorver essas novas demandas que não existiam.
E quais os meios para fazer isso?
Se eu soubesse, eu estava rico... (risos) Eu estou te colocando problemas do mundo como ele é. Como resolvê-los é outro passo.
Em relação aos suicídios na adolescência, os dados têm mostrado que há um incremento na taxa de mortes por essa causa. Por que isso está acontecendo?
É porque os sujeitos estão mais frágeis do que nunca, é o período em que estão mais frágeis na vida. A questão do suicida é: "Me dê razões para viver". É isso que ele pede. Tu sabe dar razões pra alguém viver? Ninguém sabe. Por que a gente tá vivo? É essa a pergunta que o adolescente se faz, por que é que a gente tem que seguir vivendo. E é difícil mostrar isso.
O suicídio é sempre uma agressão. É uma autoagressão, um sacrifício para punir os outros. O suicida quer deixar um rastro de destruição em volta dele. É um ato destrutivo de vingança, de não reconhecimento de si. O suicídio também é uma forma desesperada de construir um sujeito, de deixar uma marca no outro. E o que é a adolescência? É construir uma representação no outro, ser respeitado pelos outros, ter feitos, ser bonito ou inteligente, ter um destaque. Se ele não consegue isso por bem, ele consegue isso por mal. Se ele se suicida, ninguém esquece dele, todo o colégio vai falar dele e ele constrói um nome. Tu entende que é um jeito perverso de construir uma marca na sociedade? Claro que é alguém que está sofrendo de forma absurda, que toma um caminho desesperado. Mas esse sujeito deixa uma nuvem de culpa.
Mas você acha seguro falar sobre suicídio?
Durante muito tempo a gente não fez uma boa prevenção porque a gente temia o “Efeito Werther”, ou seja, ficar falando sobre suicídios faz com que outras pessoas se matem. Não é sem razão isso, e é por isso que jornalistas não noticiam os casos. Mas o fato é que a taxa aumentou, então estamos fazendo alguma coisa errada. O desafio é encontrar uma nova forma de prevenção, porque ninguém sabe fazer. Essa é a questão. Não se faz, e como não se faz, ninguém sabe fazer. Não tem uma experiência pra ser contada. Nós estamos no começo de um novo momento, de dizer basta, chega de silêncio, vamos falar sobre suicídio, vamos descobrir formas de engajar mais gente nisso, de parar com silêncio, porque... Por exemplo: prevenção a drogas se faz há muito tempo. Nos Estados Unidos, como eles acompanham tudo, podem dizer qual tipo de palestra preventiva tem mais eficácia, e quais que são nulas. Eu já vi um estudo sobre isso, descobriram que aquelas palestras testemunhais, estas não funcionam. Mas tem outras que funcionam.
Então quer dizer que esse campo da prevenção precisa ser construído...
Exato. Dizer que é errado, que é pecado, eles [jovens] também não vão levar a sério. Acho que falar a sério sobre o valor da vida pode engajar os adolescentes. Não penso numa aula em que se discute a história da filosofia, eu imagino uma aula onde eles discutam o que estão dispostos, onde tenham um adulto que fale com eles, e que não fique cagando regra na cabeça deles... Eles adoram falar sobre sexo, precisam que alguém ajude eles a entenderem.
Essa é uma diferença desta para as outras gerações: o peso do corpo na construção da sua autoimagem. Nunca se precisou tanto de um corpo pra ser alguém como hoje em dia. Não é à toa que as pessoas fazem tanta tatuagem. O corpo é um totem de significados, pelos seus músculos, pela sua beleza, pelas suas tatuagens. Isso tinha importância anos atrás, mas não era tão exacerbada. Não sei dizer por quê, mas eles precisam muito do corpo para ser alguém. Tem menina na faixa dos 22 [anos] botando botox. É uma exacerbação de uma necessidade de fundar uma subjetividade mais fundada sobre o corpo. E vale para todas as idades, mas os adolescentes tem mais pressão sobre isso.
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