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Educação: não existe apenas um jeito de se fazer as coisas, diz Peter Moss

Educador aponta o que fez da rede italiana Reggio Emilia um exemplo de ensino democrático na Educação Infantil

POR:
Renan Simão
Criança em sala de aula
Foto: Getty Images

Como se mede o encanto de uma criança? “Não se mede, documenta-se de forma ampla”, afirma Peter Moss, pesquisador especializado em Educação Infantil. O britânico está no Brasil junto de representantes da rede de Educação Infantil de Reggio Emilia, cidade italiana considerada modelo para o ensino de primeira infância, para participar de encontro da Fundação Antonio-Antonieta Cintra Gordinho, em Jundiaí (SP).

Em entrevista, o professor da University College London lembra de algumas histórias de Loris Malaguzzi (1920-1994), educador italiano e um dos líderes da rede de Reggio Emilia. “Malaguzzi perguntava aos seus professores: ‘O que te encantou hoje?’. Esse encanto nos deixa mais humildes também porque deveríamos ter mais fé nas crianças”, afirma Moss, que escreveu o livro “Loris Malaguzzi e as Escolas de Reggio Emilia: Uma seleção de escritos e palestras, 1945-1993”, ainda não traduzido no Brasil.

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O autor Peter Moss

Confira trechos da conversa que destacam conceitos como experimentação, documentação pedagógica e Educação democrática, além de críticas a avaliações para alunos de 5 anos de idade, como a do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) para a primeira infância.

Reggio Emilia

Para mim, o caso de Reggio Emilia está ligado à epistemologia, o significado do conhecimento e de como sabemos das coisas. É uma ideia filosófica e política de educação. Se perguntasse a eles sobre seus princípios políticos, eles diriam democracia, cooperação, pesquisa e experimentação, incerteza e encanto.

Inovação

O que aprendi com eles é que eles são bem-sucedidos em inovar. Criaram um sistema de 50 escolas que já dura 60 anos. A tradição de Educação progressiva [também conhecida como Escola Ativa ou Escola Nova] que eles têm é incomparável. Existem muitos motivos para esse sucesso: um deles é que a prática é intensa. Um exemplo com a administração da escola é a integração de todo o sistema de Educação de 0 a 6 anos. Não de 0 a 3 e depois de 3 a 6 anos. É um único sistema e não importa muito a idade dos alunos. Outro exemplo é o desenvolvimento de um sistema de suporte para as escolas. São pedagogos trabalhando em grupos de escolas para aprofundar a prática e o entendimento, para conectar a escola e a cidade. Isso foi construído em 30 anos, é absolutamente central ao que eles fazem. Não dizem: "Vá lá, faça um workshop nisso ou aquilo". Um terceiro exemplo seria de como eles fazem formação continuada. É a ideia de que você vai precisar muito de seus professores e eles precisam de suporte, espaço e oportunidades para realizar o que é pedido. Basicamente, eles destinam recursos disponíveis para a formação continuada, mas também realizam um "aggiornamento", uma reunião dos professores para discutir novas ideias, compartilhar experiências.

Loris Malaguzzi

O trabalho de Malaguzzi é muito importante, mas não muito [apreciado] fora da Itália. Ele falava com professores ou assistentes [da mesma forma]. Para ele, era muito claro que não deve existir hierarquia. Todos precisam ser parte da docência e realizar um trabalho cooperativo. Ao pensar num tema específico para o ano letivo, por exemplo, todos os envolvidos ficam um dia ou dois para debater as questões. As pessoas que conheceram Malaguzzi lembram vividamente dele, de como falava sobre o que estava lendo, as novas teorias e suas complexidades. Depois perguntava o que fazer com isso e que projetos poderiam ser feitos. Ele retoma a ideia de experimentação. Acho [importante] o fato de ter pessoas, processos e estruturas que são muito fortes e cooperativas, trabalhando com ideias muito complexas e exigentes. Não é só dizer: "Vá lá, no próximo ano você nos conta como foi [a experiência]".

Educação Integral

A Educação deve ser feita de forma integral. Não faz sentido trabalhar o lado cognitivo sem olhar para outras facetas. Malaguzzi não usa a palavra "habilidades", não reduz esse processo a uma linguagem instrumental e busca uma Educação que conduza a uma boa vida.

Visões opostas

É um processo de tornar coisas visíveis de várias formas. Depois disso, resta saber o que fazer com isso: integrar as pessoas para dar significado ao processo. Você precisa de muitas pessoas que pensam diferente, e isso precisa ser parte do processo. Elas devem saber comunicar como interpretaram a documentação e serem confrontadas por pessoas de visões opostas. Isso permite o diálogo, que pode gerar consenso ou dissenso. Mas esse é o processo democrático, essa possibilidade de negociação.

Pesquisar e compartilhar

Malaguzzi tinha ferramentas para ajudar os professores a pesquisar. E um dos pontos importantes para pesquisar é a documentação pedagógica [um dos temas do encontro no Brasil]. Algumas ideias são muito simples quando você pensa sobre isso. Você precisa registrar o que está acontecendo em várias formas: pesquisar, experimentar e se desenvolver profissionalmente. Tem que ser [um processo] compartilhável e concreto. Não podem ser apenas teorias. "O que achamos que está acontecendo aqui?".

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A rede municipal de Reggio Emilia, cidade do norte da Itália de 170 mil habitantes, se tornou fonte de inspiração para educadores do mundo todo. Fundada após a Segunda Guerra Mundial, as escolas foram influenciadas pela necessidade de resistir ao fascismo e por ideais construtivistas de pensadores como Jean Piaget, Lev Vygotsky e John Dewey, além dos italianos Maria Montessori, irmãs Agazzi e Bruno Ciari. O modelo pedagógico elaborado para educar crianças pequenas como novos cidadãos foi iniciado em 1963, com a criação da escola 25 Aprille, em Villa Cella. Priorizando pensamento crítico, curiosidade e autoexpressão, o modelo tornou-se municipalizado e hoje compõe mais de 20 pré-escolas e uma dezena de creches. Leia mais no Centro de Referências em Educação Integral.

Cem linguagens

[Crianças] têm a capacidade de encanto, de maravilhamento, e nós também temos. Malaguzzi estava interessado no que é inesperado, não para determinar o que devia ser feito. Era um psicólogo, esteve 10 anos em um programa da prefeitura dirigindo uma clínica para crianças. Escrevia muito sobre o lado psicossocial. Nós estamos falando aqui das cem linguagens das crianças [título de um livro do italiano; leia sobre ele aqui]. É uma ideia de multiplicidade de formas de viver e se expressar. Não podemos apenas falar em habilidades cognitivas já que temos outras capacidades para viver. O que é perigoso é deixar as outras capacidades atrofiarem. Existe um poema dele em que uma criança de 100 linguagens chega aos 6 anos sem 99 linguagens, elas foram roubadas. O que significa: nós não damos atenção a essas linguagens, nós deixamos elas escaparem. Ficamos fixados em letramento e lógica, mas há outras características sociais, culturais, artísticas, emocionais.        

Famílias

Como decidimos fazer essa experimentação é importante. Famílias devem fazer parte disso. Precisamos delas também. A ideia de experimentação tem uma imagem de homens de jalecos brancos fazendo coisas com as pessoas, mas não, é apenas uma forma de trabalhar.

Adaptar modelos

É o problema para uniformidade. Não posso criar uma lei para isso. Não podemos falar às pessoas como fazer, não funcionaria. Mas há pessoas que estão interessadas nisso e podemos possibilitar essa atuação, encorajar, criar fóruns para trocar experiências e esperar que ao longo do tempo mais pessoas fiquem interessadas. Não posso legislar, mas posso criar condições para isso acontecer de forma democrática, porque acreditamos que Educação está sempre se renovando. Nunca vai haver um equilíbrio entre as duas formas de agir, o macro e o micro, há uma tensão constante.      

Crianças na Fundação Reggio Children
Foto: Fundação Reggio Children

Avaliação aos 5 anos

Na Inglaterra, há muita ênfase na preparação das crianças de primeira infância [para ingressar no equivalente ao Ensino Fundamental brasileiro]. O governo britânico quer instituir testes a crianças de 4 e 5 anos, e a loucura disso é reduzir as complexidades da criança a um número. Há também o Pisa da pré-escola, avaliação para crianças de 5 anos que está sendo realizada enquanto falamos. Participam três países [Inglaterra, Estados Unidos e Estônia]. O que é chocante para mim, e isso mostra uma deficiência democrática, é que eles [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade formada por 35 países, que realiza o Pisa], não respondem a artigos publicados, não se envolvem com outras pesquisas. Acho que o que querem fazer é ter essa primeira rodada de avaliação e, depois em 2020, quando publicam o próximo relatório do Pisa para jovens de 15 anos, vão falar [para os outros países] que a avaliação funciona e poderão fazer uma segunda fase com mais gente. Mas isso tem de ser visto como parte de uma rede de diferentes avaliações que eles estão formando: uma somente para escolas e um teste para crianças de 10 anos em competências socioemocionais. Há toda uma métrica que me parece extremamente perturbadora. Essa organização não responsabilizável com uma perspectiva particular do mundo está construindo essa rede de medições e tem uma enorme influência em governos por meio disso. Muitos são críticos ao Pisa, mas há pouco engajamento com a organização.

Política

Educação é uma prática política, sempre envolve fazer certas questões que têm respostas alternativas, conflituosas. Qual é o papel da Educação? Qual é a imagem da escola? Qual é a nossa definição de conhecimento? Enquanto hoje, nós fazemos questões técnicas: como faço isso ou aquilo? Temos que lembrar que o centro da Educação é um discurso político democrático. Minha perspectiva é que muito desse discurso foi perdido, porque há uma tendência de ser oferecido apenas um jeito de fazer as coisas.

Experimentação e democracia

Acho interessante o conceito de experimentalismo democrático do [filósofo e teórico social] brasileiro Roberto Mangabeira Unger. É a ideia de que a inovação deva ir de baixo para cima, em que as pessoas criem novas formas de fazer coisas sem o topo. Ao pensar em novas ideias e implementando-as, você vai enraizando uma democracia do cotidiano. Não é o que vocês vão fazer em outubro [nas eleições], mas sim o que vivemos diariamente. É diálogo, confronto, negociação.

Democracia para os pequenos

John Dewey [filósofo e educador americano, 1859-1952] diria que não ensinamos democracia, mas a vivemos. Em outras palavras, deve-se organizar instituições para viverem princípios democráticos. É uma forma de aprender democracia, mas não de ensiná-la diretamente. Acredito que não é preciso aulas de civilidade para crianças, mas devemos saber como a escola lida com a vida democrática. Dewey enfatiza que viver democraticamente é uma forma de viver a sua vida.

Veja a seguir uma reportagem especial sobre as escolas de Educação Infantil de Reggio Emilia:

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