Professores e alunos não percebem o bullying da mesma forma
Estudo com mais de 400 crianças de 5 anos de idade mostra que professores subestimam o bullying e tendem a superestimar capacidade de revide das vítimas
POR: Charles KirschbaumO tema do bullying desperta debates calorosos entre as famílias e desponta como central para vários formuladores de políticas públicas. Para muitos, o problema deve ser tratado como “preto-no-branco”: vítimas devem ser protegidas e os agressores devem ser criminalizados. De fato, as vítimas são frequentemente prejudicadas na formação de amizades no ambiente escolar e em seu desempenho acadêmico. Agressores também são prejudicados já que, com o passar dos anos, podem se tornar mais violentos e apresentar comportamentos criminosos. Ambos os grupos potencialmente elevam os custos de tratamento médico para o governo. A prevenção do bullying, portanto se torna prioridade não apenas sob o ponto de vista ético, mas também sob a perspectiva de redução de gastos públicos.
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Parte do problema da discussão sobre o bullying gira em torno de sua definição pois nem toda agressão pode ser aceita como bullying. Bullying ocorre quando existe: 1. assimetria de poder – o agressor é mais forte que a vítima ou, por uma série de circunstâncias, a vítima não consegue se defender; 2. a ação de agressão à vítima é repetida no tempo, ou seja, existe um padrão, e é intencional¹.
O bullying pode ser direto quando ocorre agressão física, verbal ou material e o alvo da ação é a vítima, como também pode ser indireto: fofocas, calúnias, entre outros podem levar à erosão das relações, estigmatização e exclusão da vítima. O bullying é geralmente melhor documentado entre adolescentes, mas pode ocorrer desde a primeira infância, entre crianças a partir dos cinco anos de idade.
Políticas de prevenção ao bullying vêm constituindo um extenso campo de pesquisa de alto interesse para a sociedade. Em geral, os esforços para conter o bullying focam-se nos indivíduos, seja no desenvolvimento do agressor ou da vítima, ou em menor grau, na dinâmica do grupo[1]. Quando se considera a dinâmica do grupo que contém agressor e vítima, se inclui terceiros que podem ajudar a neutralizar ou intensificar a ação de agressão. Por exemplo, ‘terceiros’ (bystanders) podem apoiar o agressor, ajudar a vítima, ou simplesmente ficar neutros. Por tanto, quando se intervém nas dinâmicas do grupo, diretamente ou indiretamente busca-se modificar estas relações.
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Os professores têm um impacto importante nessas dinâmicas. Se seus esforços são percebidos como eficazes pelos alunos, aumenta a chance dos terceiros (bystanders) intervirem a favor da vítima e inibir os agressores³. No entanto, a intervenção eficaz dos professores assume que eles têm uma percepção acurada das relações de agressão entre os alunos. Portanto, sugere-se indagar em que medida os professores percebem a agressão entre os alunos, e como essa percepção difere da percepção dos próprios alunos.
Por um lado, os professores têm acesso cotidiano aos alunos e são capazes de diferenciar atos de bullying de atos de agressão que são pontuais, não se apoiam em assimetrias de poder, ou mesmo não podem ser considerados agressão (como por exemplo, uma piada). Ainda assim, os professores não têm acesso a todos os eventos que ocorrem entre os alunos, impedindo que tenham uma visão completa das dinâmicas entre agressores e vítimas.
A seguir, apresento os resultados de uma análise desenvolvida em 2014[2], que explora essa questão. Os dados foram coletados em janeiro de 2005 na Suíça, com a finalidade de avaliação programa de prevenção ao bullying[3]. Participaram desse estudo 402 crianças em 25 jardins de infância, com o consentimento dos pais. A idade média das crianças na amostra foi de 5,8 anos. Uma semana antes da entrevista, os professores introduziram o tema da pesquisa e realizaram uma atividade de “role-play”. Durante as entrevistas foram utilizadas ilustrações de bullying e as crianças podiam identificar-se como vítimas (auto relato) e indicar os agressores, e também identificar agressores e suas vítimas (relato de pares).
Em 72,1% dos “relatos de pares” onde se identificava os agressores, os entrevistados eram capazes de identificar as respectivas vítimas. Foram entrevistados também os professores com o mesmo objetivo: identificar agressores e vítimas. A agregação destas respostas permitiu a construção de redes (baseadas em ‘auto relato’, ‘relato de pares’ e professores’) onde os relacionamentos dessas redes eram de “agressor-vítima”. Com o objetivo de investigar se havia concordância entre alunos e professores a respeito das indicações de relações de agressor-vítima, utilizou o modelo ERGM[4], que leva em consideração a codependência das relações em rede.
Entre as crianças incluídas na amostra, 223 (55,5%) foram identificadas como agressores. Foram estabelecidas 769 relações de agressor-vítima (12,4% do total possível). Um grande número de crianças declarou-se envolvido em relações de bullying. Apenas 16% não indicaram agressores e nem foram indicadas como agressores. Em contrapartida, os professores indicaram que 32% das crianças não eram nem agressores nem vítimas, abaixo do valor indicado pelas próprias crianças.
Como apontado acima, alunos (e principalmente crianças na primeira idade) podem ter uma percepção distinta do que é bullying dos professores: talvez a assimetria de poder não seja percebida da mesma forma e, possivelmente, muitos professores acreditem que não apenas a retaliação seja possível, mas desejável do ponto de vista de desenvolvimento da criança.
Existe clara evidência de que os professores enxergam as relações de agressão-vítima de forma distinta dos alunos. A concordância entre “auto relatos” e “relatos de pares” foi de 25%, mais alto do que entre os “relatos de pares” e a percepção dos professores (14%). A concordância entre “auto relatos” e a percepção dos professores foi ainda mais baixa (11%).
A concordância aumenta entre os grupos quando a identificação dos indivíduos agressores e vítimas é suficiente e não se leva em consideração a relação de agressor-vítima. Ou seja: sabe-se quem são os agressores e quem são as vítimas, mas não se sabe exatamente quem agride quem. A maior concordância se dá no reconhecimento dos agressores, provavelmente porque há maior estabilidade entre os indivíduos que agridem. Em contrapartida, com o tempo, vítimas de bullying aprendem a se defender, ou se tornam reticentes em reportar o bullying, com medo de retaliação futura.
A partir de “auto-relatos” muitos alunos apontam seus agressores, mas que frequentemente são percebidos nos “relatos de pares” e pelos professores como vítimas. Ou seja, a vítima pode ser erroneamente percebida como agressora porque quem a observa só obteve oportunidade de observar o revide, mas não teve acesso ao evento antecedente onde fora vítima. Assim, enxerga o revide como agressão e não como forma de defesa. Neste mesmo estudo, professores tendiam a perceber relações recíprocas de agressor-vítima com maior frequência do que era relatado nos “auto relatos” e nos “relatos dos pares”. Com isso, tendiam a superestimar a capacidade de revide das vítimas, em relação à percepção das próprias crianças.
Finalmente, professores tendiam a perceber de forma equivalente a frequência de relações agressor-vítima entre meninos e entre meninas, ao passo que não percebiam relações de bullying entre gêneros. Em contraste, os relatos dos alunos mostravam uma concentração maior do bullying entre meninos, seguido de agressões iniciadas por meninos onde as vítimas eram meninas, e finalmente entre meninas.
O estudo relatado nesse texto nos permite perceber o potencial de entender o bullying como um fenômeno relacional, onde agressor, vítima e terceiros estão envolvidos. É importante notar que ao mesmo tempo que professores podem desempenhar um papel importante na prevenção do bullying, eles também enxergam as relações de agressão de forma muito distinta dos alunos. Isso traz uma implicação prática importante: como é possível agir de forma rápida para conter o processo de exclusão e estigmatização, se existe uma discrepância na percepção da agressão entre os grupos? Para que se possa ajudar as vítimas, articulando um grupo de suporte a elas, é necessário que o professor seja municiado não apenas no repertório discursivo contra o bullying, mas também treinado para perceber com bastante antecedência os sinais de agressão que surgem entre as crianças.
Para saber mais:
1. Olweus, D. (1993). Bully/victim problems among schoolchildren: Long-term consequences and an effective intervention program.
2. Silva, J. L. D., Oliveira, W. A. D., Mello, F. C. M. D., Andrade, L. S. D., Bazon, M. R., & Silva, M. A. I. (2017). Revisão sistemática da literatura sobre intervenções antibullying em escolas. Ciencia & saude coletiva, 22, 2329-2340.
3. Veenstra, R., Lindenberg, S., Huitsing, G., Sainio, M., & Salmivalli, C. (2014). The role of teachers in bullying: The relation between antibullying attitudes, efficacy, and efforts to reduce bullying. Journal of Educational Psychology, 106(4), 1135.
4.Huitsing, G. E. (2014). A social network perspective on bullying. Rijksuniversiteit Groningen.
5. Alsaker, F. D., & Valkanover, S. (2012). The Bernese program against victimization in kindergarten and elementary school. New directions for youth development, 2012(133), 15-28.
6. Hunter, D. R., Handcock, M. S., Butts, C. T., Goodreau, S. M., & Morris, M. (2008). ergm: A package to fit, simulate and diagnose exponential-family models for networks. Journal of statistical software, 24(3), nihpa54860.
* Charles Kirschbaum é professor do Insper, pesquisador associado do CEM-Cebrap e membro do comitê técnico do Iede.
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