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O Brasil já teve ditadura?

O país passou por dois grandes períodos em que as liberdades civis foram cerceadas, o Congresso foi fechado e cidadãos foram perseguidos e torturados

POR:
Ana Rita Cunha, do Aos Fatos
Marcha dos 100 mil contra a ditadura militar   Foto: Evandro Teixeira

A história da república brasileira teve dois momentos de ditadura: o Estado Novo (1937-1945) e o Regime Militar (1964-1985). Nesses dois períodos, os ditadores tiveram amplos poderes, suprimiram liberdades, reprimiram violentamente opositores e dissolveram ou limitaram os poderes Legislativo e Judiciário. Os defensores dos legados positivos desses dois períodos costumam criticar o uso do termo ditadura e minimizar o autoritarismo dos líderes dessas épocas.

Com base em documentos históricos, livros e depoimentos, NOVA ESCOLA em parceria com Aos Fatos explica o que aconteceu durante o Estado Novo e o Regime Militar, como funcionavam as leis e porque esses dois momentos são considerados ditaduras. 

 

O que é ditadura?

Ditadura é uma palavra de origem romana. Na Roma Antiga, ela designava um regime de governo temporário, com limite de duração e de poder, algo próximo ao atual estado de sítio. No livro Dicionário de Política, Norberto Bobbio define a ditadura na concepção moderna, como um regime não-democrático moderno em que há uma acentuada concentração do poder e a transmissão da autoridade política acontece de cima para baixo. O poder da ditadura é ilimitado, ou seja, não é freado pela lei, pois ele se coloca acima dela. Ainda que sejam mantidas normas jurídicas resguardando direitos de liberdade, durante as ditaduras, elas têm escassa ou nenhuma eficácia real, podendo o ditador ignorá-las com mais ou menos discrição.

A ditadura pode ser um regime autocrático, em que o poder se concentra na figura de um chefe ou regime não-autocrático, ou seja, o poder está nas mãos de um pequeno grupo de chefes. Essas pessoas instalam-se utilizando a mobilização política de uma grande parte da sociedade, ao mesmo tempo que subjugam com a violência a outra parte. As ditaduras modernas também tendem sempre a se apresentar como expressão legítima dos interesses do povo, além de terem regras precárias de sucessão.

No Brasil, dois momentos da história republicana são considerados, mais ou menos consensualmente, por historiadores e cientistas políticos como ditaduras: o Estado Novo (1937-1945) e o Regime Militar (1964-1985). Esses dois períodos foram marcados por concentração de poder, alteração das normas jurídicas à conveniência dos ditadores, sob a justificativa de “proteger os interesses do povo”. 

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A ditadura do Estado Novo (1937-1945)

Os avanços na industrialização do país e a legislação trabalhista são legados do Estado Novo que fizeram com que a truculência do período fosse minimizada ao longo da história. Atualmente, já é consenso entre os especialistas que Getúlio Vargas governou durante 15 anos (1930-1945) como um líder autoritário e instituiu a partir de 1937 uma ditadura. Nos 9 anos (1937-1945) do Estado Novo, Getúlio concentrou o poder fechando o Congresso Nacional, ordenando prisão, deportação e tortura de opositores, censurando a imprensa e as artes, extinguindo partidos e organizações políticas e limitando direitos civis.

Getúlio foi o líder civil da Revolução de 1930 e assumiu provisoriamente a presidência, derrubando a Constituição de 1891 e governando por decreto. Após reprimir os movimentos por uma nova Carta Magna, como a Revolução de 1932 em São Paulo, Getúlio Vargas aceitou a implantação de uma Assembleia Constituinte em 1933 e a promulgação da Constituição de 1934. A nova Constituição trazia uma série de avanços, como o voto secreto e a ampliação desse direito às mulheres, além de leis trabalhistas. Getúlio continuou na presidência, ao ser eleito para ocupar o cargo de 1935 a 1938, em pleito indireto previsto na Constituição.

Nesse período, Getúlio governou em um período crescente de violência contra críticos ao governo, em especial os comunistas. Ele criou a Polícia Política e Social, promulgou uma nova lei de Segurança Nacional e instaurou o estado de guerra com aprovação do Congresso em 1936, permitindo deportação e prisões indiscriminadas de opositores e a tortura de adversários políticos.

Em 1937, uma notícia falsa, o Plano Cohen, criou a oportunidade para Getúlio continuar no poder e instaurar a ditadura do Estado Novo. O documento forjado, falsamente atribuído à Internacional Comunista, continha suposto plano para a tomada do poder pelos comunistas. Ele começou a circular no Exército em setembro de 1937 e em outubro foi apresentado ao Congresso como prova da "ameaça comunista" e justificativa para instaurar novamente o estado de guerra no país. Em março de 1945, o autor do documento, general Olímpio Mourão Filho, que futuramente participaria do golpe de 1964, assumiu a farsa, mas isentou-se da culpa afirmando que elaborara o documento apenas para uso interno do Exército na simulação de insurreição comunista.

Em novembro de 1937, Getúlio dá um golpe de Estado para conter o "perigoso comunista", revogando a Constituição de 1934, dissolvendo o Congresso e outorgando sem consulta prévia a Constituição de 1937. A nova Constituição institui a pena de morte, suprime liberdade partidária, de imprensa e acaba com a independência dos poderes Legislativo e Judiciário.

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A participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial lutando contra o regime ditatorial da Alemanha Nazista aumentou as críticas à ditadura getulista. A partir de 1943, os movimentos de oposição ganham força e Vargas começa a orquestrar um processo de transição para o regime democrático. Em maio de 1945, Getúlio proclama uma lei de anistia e autoriza a realização de eleições. A partir daí inicia também o movimento do "queremismo" que defendia que o processo de abertura democrática fosse feita pelo próprio Getúlio, que poderia concorrer à presidência e aprovar a nova Constituição. Com intuito de evitar a manutenção de Getúlio no poder, o Alto Comando do Exército, em outubro de 1945, pressionou Getúlio Vargas a renunciar ao cargo. O presidente do Supremo Tribunal Federal José Linhares assumiu interinamente a Presidência da República e, em janeiro de 1946, tomou posse o candidato vencedor das eleições do ano anterior, Eurico Dutra.

A socióloga Dulce Pandolfi, no livro Repensando o Estado Novo, destaca os aspectos contraditórios do período: "Apesar da ausência dos direitos políticos e da precariedade das liberdades civis, o regime ditatorial consolidou a ideia do Estado como agente fundamental do desenvolvimento econômico e do bem-estar social”. Ela ainda argumenta que se por um lado a política trabalhista da ditadura getulista é referência até hoje, “não se pode negar que o Estado Novo contribuiu para reforçar a fragilidade de nossas instituições político-partidárias, para produzir um descaso pelos direitos civis e políticos”.

Regime Militar (1964-1985)

Existe consenso entre historiadores e cientistas políticos que de 1964 a 1985, o Brasil viveu sob um regime autoritário não-democrático. Os especialistas divergem, no entanto, se durante todo esse período o país esteve sob uma ditadura. Como resume o jornalista e autor da série de livros sobre o regime militar, Elio Gaspari, no livro “A ditadura Envergonhada”, os 21 anos do ciclo militar tiveram épocas de “aberturas” e “endurecimentos”. Na classificação de Gaspari: de 1964 a 1967, Castello Branco exerceu uma “ditadura temporária”, de 1967 a 1968, Costa e Silva “tentou governar dentro de um sistema constitucional”, de 1968 a 1974, o país esteve sob “um regime escancaradamente ditatorial” e de 1974 a 1985, inicia-se ainda debaixo da ditadura a tentativa de sair desse regime.

O regime militar – que começou com caráter provisório e apoio civil – foi alterando as leis com os Atos Institucionais (AI) para garantir a continuidade no poder por 21 anos. A oposição foi suprimida violentamente, o Congresso Nacional foi fechado três vezes, houve extinção dos partidos e imposição de um bipartidarismo, além de torturas, prisões e exílios. Ao longo do período, o presidente da República foi acumulando poder, inclusive o de legislar e confiscar bens. Mesmo o processo de transição entre os presidentes, que inicialmente tinha ares constitucionais de eleição indireta no Congresso Nacional, foi se tornando um processo de indicação.

“O exército dormiu janguista e acordou revolucionário”, afirmou o general Cordeiro de Farias, ministro de Estado no governo Castello Branco. A frase resume a sequência conturbada de acontecimentos que levaram ao golpe militar de 1964. O governo de João Goulart, último presidente antes da ditadura militar, teve uma gestão conflituosa que levou a uma conspiração para tirá-lo do poder. No começo de 1964, Jango acreditava que conseguiria base para se manter no poder, inclusive entre os militares. No entanto, a oposição ganhou força e culminou na derrubada do governo em 1° de abril de 1964 pelas Forças Armadas com apoio de civis e João Goulart se exilou no Uruguai.

O presidente da Câmara dos Deputados Pascoal Ranieri Mazzilli assume o poder em caráter provisório, entre 2 e 15 de abril. Nesse período, quem exerceu o poder de fato foi uma junta militar formada pelos ministros militares — o vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald, da Marinha, o tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, da Aeronáutica, e o general Artur da Costa e Silva, da Guerra — e autodenominada Comando Supremo da Revolução. Essa junta lança o primeiro Ato Institucional de muitos que serão utilizados para alterar a constituição. O AI-1, que valia até 1966, permitia a suspensão por dez anos dos direitos políticos de opositores ao regime, incluindo congressistas, militares e governadores. Segundo memorando da embaixada americana enviado à Casa Branca, pouco mais de 5 mil pessoas foram presas nas primeiras semanas após a deposição de Jango. Entre 1964 e 1966, cerca de 2 mil funcionários públicos foram demitidos ou aposentados compulsoriamente, 386 pessoas tiveram mandatos políticos cassados ou sofreram suspensão dos direitos e 421 oficiais das Forças Armadas foram enviados compulsoriamente para a reserva, de acordo com documentos oficiais citados no livro “Ditadura Envergonhada” de Gaspari (p. 130-131)

Nos nove primeiros meses, o regime contava com um saldo de 20 mortos, sendo nove registrados como suicídios. Entre os casos noticiados na imprensa, estava a morte do dirigente comunista Gregório Bezerra que foi arrastado por um jipe e espancado até a morte por um oficial em praça pública, em Recife, no dia 2 de abril de 1964. Durante a instauração do regime militar, até mesmo oficiais foram torturados, como foi o caso do almirante Cândido Aragão, comandante dos fuzileiros navais durante o governo de João Goulart, como relatou o jornalista Carlos Cony em entrevista com o filho do militar em 7 de maio de 1964.

A junta militar transferiu os poderes para o marechal Humberto Castello Branco, que foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, conforme previa o AI-1. Castello Branco assumiu com o compromisso de entregar o cargo a um civil em 1966. O general não apenas descumpriu o prazo como entregou a faixa presidencial a outro militar, Artur da Costa e Silva. Com isso, ele frustrou as expectativas dos vários apoiadores civis do golpe militar, como Carlos Lacerda.

Ao longo do governo Castello Branco houve um recrudescimento do regime que, de transição para a democracia, foi se tornando ponte para continuidade. Em 1965, após vitória da oposição nas eleições estaduais, o ditador promulgou o AI-2, cessando a vigência da Constituição de 1946, instituindo eleição indireta para presidente, extinguindo partidos políticos, fechando o Congresso, ampliando os poderes do presidente e da Justiça Militar, que passou a poder julgar civis, e aumentando o número de ministros no Supremo Tribunal Militar. Em 1966, ele promulga o AI-3 tornando também indireta as eleições estaduais e, em seguida, o AI-4, convocando a abertura extraordinária do Congresso Nacional para aprovar a Constituição de 1967.

Costa e Silva assume em 1967, no mesmo dia em que a nova Constituição entrou em vigor, e fica até 1969. Com o fortalecimento dos movimentos de oposição ao regime militar, o presidente promulga, em 1968, o AI-5, sem prazo de validade. O texto dava amplos poderes ao presidente de fechar o Congresso Nacional e todas as casas legislativas estaduais e municipais, fazer leis, cassar mandatos, suspender direitos políticos, demitir funcionário civis, militares e juízes, confiscar bens, decretar estado de sítio, além de suspender o direito a habeas corpus para acusados de crime contra a segurança nacional. Nos restante do governo, Costa e Silva ainda baixou outros 9 atos institucionais.

Após o AI-5, se intensificou o processo de perseguição a opositores, a censura de jornais, revistas, músicas e filmes. Inicialmente, a justificativa era conter os avanços comunistas, mas ao longo do tempo qualquer crítico ao governo passou a virar inimigo do estado, como é o caso do advogado anticomunista e conservador Heráclito Sobral Pinto.

Ao final do governo, Costa e Silva acenou para uma abertura da ditadura, com retomada das eleições diretas nos estados e reabertura do Congresso. O presidente sofreu um derrame sem poder cumprir qualquer dessas medidas e foi sucedido por uma junta militar. A junta baixou o AI-14, instituindo as penas de morte e de prisão perpétua para os casos de “guerra psicológica adversa” e de “guerra revolucionária ou subversiva”, definidos pela Lei de Segurança Nacional.

Por votação indireta, o general Emílio Garrastazu Médici foi conduzido à presidência na qual ficou até 1973. O período foi marcado por crescimento econômico e tortura. Dos mais de 420 assassinatos e desaparecimentos imputados à ditadura, a maioria ocorreu durante o governo do general, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade.

Ernesto Geisel (1974-1978) assumiu o poder no período de fim do crescimento econômico e novo fortalecimento de críticas ao governo militar. Ele assume prometendo uma abertura lenta e gradual. A abertura acontecia com a redução da censura e com reconhecimento do resultado das eleições legislativas, mas convivia com ações repressivas como a que levou à morte do jornalista Vladimir Herzog, que se apresentou voluntariamente ao DOI-Codi, em novembro de 1975.

O último presidente militar João Figueiredo (1979-1985) concluiu a lenta abertura iniciada por Geisel. A deterioração da situação econômica fragiliza o poder militar durante esse processo. Em 1980, a inflação bate a simbólica marca de 100% ao ano. Em 1981, o país entrou em uma recessão que durou até o segundo semestre de 1982.

Uma das principais medidas da abertura foi a Lei de Anistia, que instituiu uma ampla e geral anistia incluindo os crimes realizados pelos militares e o retorno dos anistiados aos seus postos e funções através da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, regulamentada pelo Decreto nº 84.143, de 31 de outubro do mesmo ano. Outra medida importante na transição foi o fim do bipartidarismo, sistema instituído no governo Castello Branco, e a autorização da criação de novos partidos, medida aprovada pelo Congresso Nacional a contragosto dos militares.

O final do governo militar não ocorreu de forma tranquila. Entre os militares havia uma ala radical que defendia a retomada do poder, inclusive praticando atos terroristas, e uma outra ala tentava articular a garantia de um presidente alinhado com o atual regime. Com a força dos movimentos a favor da volta de eleições diretas, Figueiredo se antecipou e enviou ao Congresso, ainda em abril de 1984, proposta de emenda constitucional restabelecendo eleições diretas, cabendo aos parlamentares definir se a ela passaria a valer para 1985 ou apenas em 1988. O Congresso definiu que as eleições de 1985 deveriam ser indiretas: o Colégio Eleitoral deu vitória a Tancredo Neves, opositor ao regime militar. Neves morreu por problemas de saúde antes da posse e o primeiro presidente civil depois de 21 anos foi José Sarney (1985-1988).

Essa reportagem faz parte da campanha Mentira na Educação, não!, que realizará checagens de notícias sobre Educação. A iniciativa é realizada por NOVA ESCOLA, com apoio do INSTITUTO UNIBANCOINSTITUTO ALANACANAL FUTURA e FACEBOOK.