Aprendizagem | Educação Infantil

Como pensar na inclusão durante a Educação Infantil?

Creches e pré-escolas são os espaços onde crianças passam por diversas experiências pela primeira vez, inclusive as com deficiência

POR:
Wellington Soares
PLANEJAMENTO: Nesta etapa, observar os interesses e possíveis limitações de todas as crianças é fundamental

Não demora muito: se uma criança nova chega, em pouco tempo o educador já consegue perceber se existe algo de diferente no desenvolvimento dela. Foi assim quando as pequenas Lívia e Lais chegaram à EMEI Dom Bosco, em Cruzeiro, no interior de São Paulo, há cerca de dois anos. “Elas ainda não andavam e não falavam”, lembra Heloisa Ferraz. A família pensava que essas características se davam pelo fato de elas não levantarem muito das cadeirinhas, mas com algumas semanas de trabalho a escola notou que essa hipótese poderia ser descartada.

Ocasiões assim não são raras, sobretudo na Educação Infantil: por ser o primeiro espaço, onde as crianças convivem com os pares e com educadores (especialistas em observar e compreender o desenvolvimento infantil), alguns sinais começam a ser notados. São as famosas crianças “sem laudo”. Mas o que fazer ao notar isso?

“Para o trabalho pedagógico, o diagnóstico não é importante”, defende Guacyara Guerreiro, coordenadora pedagógica da Mais Diferenças, que atua na formação de educadores para a inclusão. Trabalhar em uma perspectiva inclusiva quer dizer que o professor sempre deverá planejar atividades que contemplem as necessidades e os interesses de todas as crianças, independentemente de elas terem ou não alguma deficiência. “A BNCC estabelece seis direitos de aprendizagem para a Educação Infantil e eles devem ser contemplados”, destaca Mariane Falco, que estuda o tema em seu doutorado pela Faculdade de Educação da USP.

Diagnóstico, só pedagógico

Ao notar diferenças entre os alunos, é possível, sim, chamar as famílias para conversar, mas é preciso ser cuidadoso e usar esse momento como uma forma de fortalecer a parceria entre responsáveis e escola. “O educador não deve dar um diagnóstico, mas com delicadeza perguntar se a criança tem sido acompanhada por um pediatra e, nos casos em que isso não ocorrer, sugerir que esse acompanhamento seja feito”, diz Guacyara. Foi o que aconteceu em Cruzeiro. “Com cuidado, sugerimos que eles procurassem o apoio dos serviços de saúde. Hoje, as duas meninas têm atendimento com fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos”, explica Heloisa.

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Mas o trabalho escolar não depende de laudo ou diagnóstico clínico. Ele pode, inclusive, atrapalhar. “Queremos colocar a criança, com suas características, na frente da possível deficiência que ela possa ser”, defende Andrea Duque, responsável pela Educação Especial em Cruzeiro. A rede encoraja os professores a observar de perto as crianças e elaborar seu planejamento de acordo com as características de todo o grupo.

“Ao notar crianças com e sem deficiência que precisam desenvolver a oralidade, o professor pode conduzir o seu trabalho para promover maior participação em rodas de conversa, por exemplo, mas partindo do interesse deles”, defende Mariane. É o que acontece no Cemei Ana Rosa Falcão de Carvalho, no Recife. A professora Miriam Nogueira conta que o pequeno Daniel tem fascinação por um brinquedo da sala chamado Tomás. Em atividades artísticas, por exemplo, o pequeno costuma participar desenhando o boneco. “Ele faz direitinho expressões no personagem: deixa ele triste, ou feliz, dependendo do dia”, conta.

Brincadeiras e registros para todos

Recorrer aos documentos curriculares pode ser também de grande ajuda. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, por exemplo, estabelecem brincadeiras e interações como os dois principais eixos do trabalho na etapa. Já a BNCC desdobra esses dois eixos em seis direitos de aprendizagem. Assim, permitir que os pequenos brinquem e interajam livremente, de acordo com seus interesses, seus potenciais e suas possibilidades, além de elaborar atividades que permitam que todos possam participar, são princípios fundamentais.

Para conduzir o planejamento, conhecer todas as crianças é fundamental. Vale observar interesses e possíveis limitações. No caso daquelas que não se comunicam de maneira convencional, vale prestar atenção em sinais sutis: um brilho no olho, um sorriso, podem indicar as situações que trazem mais prazer a elas. “Toda criança brinca. Se o professor entender a brincadeira como algo que traz prazer, ele vai observar o que deixa essa criança feliz e construir seu planejamento com base nisso”, afirma Mariane.

Estabelecer parcerias também é fundamental. No Recife, a professora do atendimento educacional especializado (AEE) Anne Guimarães atua junto às professoras na concepção das atividades e também em momentos de atendimento específico. “Costumo ir ao parque ou à sala observar e, em alguns casos, mostrar como é possível trabalhar com a criança quando há mais barreiras”, explica a educadora.

Seja para trocar com a profissional especialista, seja para fortalecer a parceria com as famílias, o registro é fundamental. “Sempre que noto algo de diferente ou tenho alguma dúvida, mostro vídeos ou fotos que coletei para Anne e ela me ajuda a compreender a situação e pensar em estratégias para a sala”, comenta Miriam.

Com os pais, compartilhar os registros também pode ajudar a fortalecer os laços. Por vezes, muitos familiares ainda se prendem a concepções antigas sobre a deficiência, que afirmavam que pessoas com características muito diferentes da maioria da população não eram capazes de aprender. “É direito das famílias de acompanhar o desenvolvimento das crianças. Além de tudo, ajuda a mostrar os avanços e a participação dessas crianças no ambiente escolar, juntamente com outros alunos”, diz Mariane.

Fotos: Priscila Buhr

Opinião

O laudo importa?

O instrumento pode ser uma importante fonte de informação, mas, quando mal utilizado, é uma barreira para a inclusão

"Não termos um laudo médico não nos impedia de fazer algo”, disse uma professora de Pedro, 4 anos, matriculado na Educação Infantil da rede pública de Poá (SP). Após um longo período de angústia pela falta de diagnóstico, os educadores investiram no conhecimento que já dispunham sobre a trajetória do aluno e envolveram os pais na criação de estratégias pedagógicas que dialogassem com suas singularidades. Meses depois, Pedro demonstrava enormes avanços na capacidade de concentração, realização de tarefas e na aprendizagem.

Isso quer dizer que o laudo não tem importância? Tem, desde que explorado como mais uma fonte de informação na busca por recursos de apoio que propiciem igualdade de oportunidades. No entanto, o instrumento pode se tornar destrutivo quando tratado como única referência para o planejamento pedagógico, pois induz à crença de que é possível criar receitas por tipo de deficiência, além de servir de justificativa para a redução do conteúdo curricular, entre outros problemas. É ainda mais grave quando resulta em baixas expectativas em relação ao aluno.

De acordo com Bill Henderson, expoente da Educação Inclusiva nos Estados Unidos, “variações contextuais não podem ser utilizadas como desculpa para não promovermos inclusão com altas expectativas para todos”. Esse pensamento dialoga com a visão contemporânea de que não devemos mais canalizar nossa atenção nos impedimentos clínicos que estão na pessoa com deficiência, mas nas barreiras ao redor dela.

O laudo médico dá luz aos impedimentos, ou seja, justamente o que não deve ser o nosso foco. Se mal utilizado, converte-se em mais uma barreira para a inclusão escolar. Ao nos desprendermos desse instrumento, damos mais um passo decisivo para a construção de uma escola que acolhe todos e persegue altas expectativas para cada um.

Rodrigo Hübner Mendes é professor e pesquisador sobre Educação Inclusiva. Fundador do Instituto Rodrigo Mendes e membro da rede de empreendedores sociais Ashoka.

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