Política Nacional de Alfabetização: entenda as polêmicas presentes na PNA
Decreto reacende questões sobre métodos e idade certa para alfabetizar
POR: Paula Peres
A Alfabetização é uma área de muitas polêmicas e poucos consensos. Estabelecer uma política pública para essa temática requer um longo debate em que pesquisadores, especialistas e professores que defendem diferentes métodos, regras e tempos de aprendizagem expõem seus argumentos, suas pesquisas e evidências científicas.
O Brasil tem uma política que regulamenta o processo de Alfabetização. Ainda que haja críticas a esse modelo, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabeleceu que a Alfabetização deve ser feita nos dois primeiros anos do Ensino Fundamental, com o 3º ano como prazo limite, e as orientações aos professores mesclam a perspectiva construtivista e a consciência fonológica.
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Mas isso está para mudar. O decreto que institui a Política Nacional de Alfabetização (PNA), assinado pelo presidente Jair Bolsonaro, traz alguns pontos polêmicos:
- a priorização ao método fônico, baseado na decodificação, no ensino de leitura e escrita (ainda que não seja explicitado diretamente no texto);
- a referência à primeira infância (dos 0 aos 5 anos de idade) como um dos públicos-alvo do programa.
Há, ainda, trechos que causam ruídos por estar em desacordo com o que é proposto pela BNCC.
O decreto prevê que os programas e as ações da PNA devem ter “ênfase no ensino de seis componentes essenciais para a alfabetização”: consciência fonêmica; instrução fônica sistemática; fluência em leitura oral; desenvolvimento de vocabulário; compreensão de textos e produção de escrita.
Logo no início, há uma espécie de glossário (veja abaixo) que explica, além dos termos citados acima, outros como “literacia” e “numeracia”. “O que está escrito tem uma aparência de novo, mas não é. Provavelmente escolheram usar ‘literacia’ para não usar ‘letramento’. Não é uma diferença semântica, mas política”, aponta Maria do Rosário Longo Mortatti, professora titular da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente emérita da Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf).
Alfabetização - ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético, a fim de que o alfabetizando se torne capaz de ler e escrever palavras e textos com autonomia e compreensão;
Analfabetismo absoluto - condição daquele que não sabe ler nem escrever;
Analfabetismo funcional - condição daquele que possui habilidades limitadas de leitura e de compreensão de texto;
Consciência fonêmica - conhecimento consciente das menores unidades fonológicas da fala e a habilidade de manipulá-las intencionalmente;
Instrução fônica sistêmica - ensino explícito e organizado das relações entre os grafemas da linguagem escrita e os fonemas da linguagem falada;
Fluência em leitura oral - capacidade de ler com precisão, velocidade e prosódia;
Literacia - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita e sua prática produtiva;
Literacia familiar - conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita, as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores;
Literacia emergente - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita, desenvolvidos antes da alfabetização;
Numeracia - conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a matemática;
Educação não formal - designação dos processos de ensino e aprendizagem que ocorrem fora dos sistemas regulares de ensino.
Além da professora Maria do Rosário, que afirma ser contra o texto assinado por Jair Bolsonaro, conversamos também com João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto. João Batista defende, há anos, a adoção do método fônico na Alfabetização no Brasil e acha positivo que o decreto tenha dado luz a isso, apesar de não saber se a iniciativa terá força para sair do papel. “Agora vamos ver se acontece alguma coisa, é uma grande incógnita”, admite.
Veja, a seguir, os principais pontos polêmicos do decreto e a opinião dos especialistas:
O método fônico e as evidências científicas
O que diz o texto?
O texto não explicita abertamente se haverá um modelo específico de Alfabetização a ser adotado, mas dá pistas. Os termos “consciência fonêmica” (“conhecimento consciente das menores unidades fonológicas da fala e a habilidade de manipulá-las intencionalmente”) e “instrução fônica sistemática” (“ensino explícito e organizado das relações entre os grafemas da linguagem escrita e os fonemas da linguagem falada”), relacionados ao método fônico, são mencionados na lista de componentes essenciais nos quais será dada ênfase no ensino.
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O texto original havia sido alterado dias antes de sua assinatura pelo presidente Jair Bolsonaro. Integrantes do MEC liderados pelo então secretário executivo, brigadeiro Ricardo Machado, elaboraram uma nova versão, validada com representantes das secretarias municipais e estaduais e do Conselho Nacional de Educação (CNE). Esse texto abria a opção de serem adotadas “metodologias com evidências científicas”. Mas Carlos Nadalim, secretário de Alfabetização, foi à Casa Civil para desfazer as alterações. Em vez de “metodologias com evidências científicas”, “alfabetização com base em evidências científicas” ficou no texto final. Esta pequena mudança sinaliza a não aceitação de mais de uma metodologia na aplicação do programa.
Por que isso é polêmico?
Ainda que a adesão entre os estados e municípios seja voluntária, é um problema impor um método pedagógico específico e condicionar sua adoção à assistência federal. E o próprio método escolhido, defendido pelo secretário Carlos Nadalim, não é um consenso entre especialistas em Alfabetização.
Enquanto especialistas e professores tentam encontrar caminhos de conciliação entre diferentes abordagens com foco na aprendizagem dos alunos, a proposta do governo vem na contramão, impondo um método exclusivo. "Cada abordagem de alfabetização tem seu pedacinho de verdade, mas nenhuma delas contém a verdade absoluta. Toda a verdade está no processo e no professor que alfabetiza, entendendo com clareza o processo e sabendo orientá-lo", explicou Magda Soares, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale), em entrevista à NOVA ESCOLA.
A ênfase nas “evidências científicas” dada pelo governo no decreto também acontece na entrevista do professor João Batista Oliveira. “Pela primeira vez o governo está levando em consideração as evidências científicas que há sobre a questão da Alfabetização. Há um grupo de pesquisadores sérios da área que há quase 20 anos vêm pleiteando que o MEC considere essas evidências”, comemora.
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João Batista Oliveira lembra que há pesquisas que apontam que o método fônico se sai melhor quando aplicado para crianças mais pobres. “Em todos os estudos que vemos em vários países, quando esse método é aplicado, ele é mais benéfico para pessoas de classes sociais mais baixas, que têm menos contato com a leitura”, diz, usando como referência dois estudos publicados pelo National Institute of Child Health (Nich) e um livro de 1999 do qual participa a pesquisadora Catherine Snow. Evidências como essas, porém, não são suficientes para convencer Maria do Rosário. “Dizer que deu certo em países desenvolvidos e por isso é bom é um argumento falacioso”, rebate.
“As evidências científicas podem ser questionadas, ciência não é religião. O método fônico não é o único baseado em evidências científicas”, diz Maria do Rosário, lembrando que a abordagem já era defendida por alguns professores desde o século 19. “Essa retórica de que só um método é científico existe há séculos, os argumentos são muito parecidos”. A professora reitera que é preciso olhar para o histórico no país. “A história da Alfabetização no Brasil mostra que o método fônico não resolve. O grande novo argumento é esse sobre evidências científicas que de tanto ser repetido parece uma contra-argumentação.” João Batista é categórico. “O método fônico é o único baseado em evidências? Não. Mas é o que apresenta os melhores resultados? Sim.”
Por outro lado, a própria professora Catherine Snow, em entrevista à NOVA ESCOLA em 2017, reconheceu que já está na hora de encerrar esse embate. “A discussão que presenciamos é terrível, principalmente para os professores, porque eles ficam sem saber em quem acreditar. Enquanto isso, os alunos recebem uma Educação ruim tanto de quem defende um lado quanto outro, porque precisam de ambos para conseguir se inserir no mundo letrado”, disse.
Alfabetização na Educação Infantil
O que diz o texto?
Alfabetizar as crianças já na Educação Infantil não faz parte dos objetivos descritos na PNA, mas “crianças na primeira infância” são o primeiro grupo dos chamados públicos-alvo da política; e os professores de Educação Infantil também aparecem como primeiro grupo na lista de “agentes envolvidos”.
Além disso, entre as diretrizes para a implementação da PNA, consta “incentivo a práticas de ensino para o desenvolvimento da linguagem oral e da literacia emergente na Educação Infantil”. Literacia emergente, segundo o próprio decreto, diz respeito ao “conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita, desenvolvidos antes da alfabetização”.
Por que é polêmico?
Para a professora Maria do Rosário, envolver a Educação Infantil nesta política pública é mais uma marca do que ela chama de retrocesso. “Tudo o que tem sido feito até agora na área foi conquistado a duras penas e com parcerias importantes, com participação social, pesquisas em universidades, investimento em pesquisas sobre Alfabetização. Ainda que haja alguns questionamentos, característicos do debate científico, isso resultou em um acúmulo de conhecimentos que permitiu que avançássemos na compreensão da Alfabetização”, afirma.
Além de antecipar a Alfabetização na Educação Infantil já causar debates acalorados, o termo “primeira infância” refere-se a crianças de zero a 5 anos de idade. Ou seja, o decreto permite que se pense em metas de aprendizagem de Alfabetização para crianças de 6 meses, 1 ano de idade. “Se for para se basear em países desenvolvidos, qual deles alfabetizou uma criança de um ano já na primeira infância?”, questiona a professora.
O temor de Maria do Rosário e de outros especialistas é que isso abra espaço para uma ideia de ensino formal já na primeira infância. “O que está sendo feito é, informalmente, antecipar a Alfabetização com eufemismos. A visão integral da criança na primeira infância foi uma conquista, e a maneira de inserir a Educação Infantil na Educação Básica também”, afirma.
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A “literacia emergente” ou a introdução das crianças da Educação Infantil no universo letrado, por si só, tem grande apoio de professores e especialistas. O embate começa quando se discute como isso deve ser feito. Enquanto construtivistas acreditam que a abordagem deve ser através da contação de histórias, da exploração dos livros pelas crianças, do contato com diferentes tipos de textos em situações cotidianas e da escrita de garatujas (aqueles rabiscos que, aos olhos dos adultos, não fazem sentido, mas para as crianças é uma forma de expressarem o que querem escrever), o professor João Batista Oliveira, por exemplo, acredita que é necessário, de fato, introduzir formalmente o processo de Alfabetização às crianças desde muito cedo.
“Os anos iniciais, a partir dos 6 meses até os 5 anos de idade, é a fase em que a parte do cérebro responsável pela linguagem está em maior desenvolvimento, e a partir dos 5 anos isso começa a decrescer. É uma janela de oportunidade, em que a natureza provê condições para que aprendizagens sobre a fala, a sintaxe, a consciência fonêmica sejam absorvidas de maneira mais adequada”, afirma.
O professor garante que isso pode diminuir uma desigualdade de aprendizagem decorrente de diferenças socioeconômicas. “Uma criança da classe média está acostumada a ouvir ‘v de vovô’, ‘p de papai’. Isso faz parte da cultura da classe média. Não é parte da cultura da classe pobre. Quando a classe média aprende a ler antes de chegar à escola, não é que ninguém ensinou, é que a família ensinou desde muito cedo. A criança pobre não tem isso, por isso que precisa ter na creche, na pré-escola esse conjunto de habilidades linguísticas que envolve conhecer o alfabeto, o desenvolvimento de habilidades motoras finas que levam ao domínio do lápis, etc”, defende ele.
Educação familiar
Não chega a ser uma polêmica, uma vez que o ensino domiciliar vem sendo cada vez mais regularizado pelo governo. Mas o decreto da PNA se refere à Educação feita pela família em todos os itens, das disposições gerais à implementação e avaliação. “Não que a família não deva participar da escola, mas o modo como está sendo imposto é para permitir que se fortaleça a Educação não formal, fora do ensino regular, público e gratuito”, diz Maria do Rosário.
Como isso será implementado
De acordo com o texto, a PNA contará com orientações curriculares e “metas claras e objetivas” para a Educação Infantil e os anos iniciais do Ensino Fundamental. Não foi especificado, ainda, de que maneira isso vai dialogar com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que já havia estabelecido competências e direitos de aprendizagem específicos para os alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental e não é sequer citada no texto.
Uma série de itens de implementação da PNA dialogam diretamente com o trabalho desenvolvido pelo Instituto Alfa e Beto – a organização é uma das grandes disseminadoras do método fônico no país –, como o desenvolvimento de materiais didático-pedagógicos específicos e formação de professores da Educação Infantil e anos iniciais focada no ensino de conhecimentos linguísticos e “metodologia de ensino de Língua Portuguesa e Matemática”.
Há, ainda, a promoção de práticas de “literacia familiar” (“conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem, a leitura e a escrita, as quais a criança vivencia com seus pais ou cuidadores”), que, apesar de não ser melhor descrita no decreto, faz lembrar os vídeos de Alfabetização direcionados a pais e responsáveis produzidos por Carlos Nadalim em seu canal no YouTube, antes de assumir a Secretaria de Alfabetização.
O Ministério da Educação será o órgão responsável por coordenar as estratégias e ações da PNA.
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