Apostar no método é o segredo para alfabetizar?
O decreto que institui a nova Política Nacional de Alfabetização não deixa dúvida: o MEC quer o fonema no centro da aprendizagem. Mas experiências de sucesso mostram que a escolha do método é só uma parte do desafio
POR: Pedro Annunciato
Quando se discute a questão da alfabetização no Brasil, quase sempre aparecem na mesa os piores números possíveis. Vamos aos exemplos: as avaliações do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês) feitas em 2015, mostraram que o país ocupa o 59º lugar em leitura. Num ranking com 70 países, isso significa que estamos mais perto da lanterna do que da liderança. Nas avaliações, 9 das 27 unidades da federação obtiveram, em 2017, um Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) notas abaixo de 5, em uma escala de 0 a 10, para os anos iniciais. São Paulo, o primeiro do ranking, ostenta um modesto 6,5. É preciso considerar que essa nota não inclui apenas os resultados em leitura e escrita, mas também em matemática, além de outras variáveis, como os níveis de aprovação em cada rede. De qualquer modo, são muitas as evidências de que o Brasil ainda tem enormes dificuldades para superar esse problema básico que atormenta a Educação: como ensinar todos os brasileiros a ler e escrever com competência.
Para o governo de Jair Bolsonaro (PSL), os culpados pelo fracasso têm nome: são os construtivistas. De Emilia Ferreiro a Paulo Freire, seriam eles os responsáveis por implementar nas escolas um método baseado em ideologias, e não em evidências científicas, que conduziria as crianças a uma massa confusa de informações sobre o sistema de escrita, formando gerações de analfabetos funcionais.Para atacar o problema, a recém-criada Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (MEC), chefiada por Carlos Nadalim, publicou o decreto nº 9.765, assinado pelo presidente em 11 de abril de 2019, centésimo dia do seu governo.
O decreto estabelece as linhas gerais das ações do ministério em relação à alfabetização, enfatizando que quer promover uma alfabetização “baseada em evidências científicas”. Para isso, estabelece seis componentes essenciais para a alfabetização, sendo os dois primeiros a “consciência fonêmica” e a “instrução fônica sistemática”. Ou seja, para o MEC, a questão da alfabetização no Brasil é, essencialmente, um problema de método: ao abandonar o ensino sistemático dos fonemas, o desastre se abateu.
Esse diagnóstico não é novo no debate educacional, pelo contrário. Estados Unidos, França e Alemanha defrontaram-se com a questão dos métodos. Aqui, a literatura sobre o assunto registra as brigas a esse respeito. A Querela dos Métodos de Alfabetização no Brasil, de Maria Mortatti, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), mostra que a discussão mobilizou educadores durante todo o século 20, dando origem a diferentes cartilhas: desde as dedicadas aos métodos sintéticos, como a Caminho Suave, até O Livro de Lili, que propunha o método global de contos. Nos anos 80, a discussão ganhou novos elementos com as descobertas da psicolinguista argentina Emilia Ferreiro. A partir das observações de Jean Piaget, ela desenvolveu uma crítica aos métodos tradicionais, que imaginam o processo de aquisição da língua escrita como o domínio e as capacidades de discriminar os sons e seus sinais gráficos e dominar a coordenação motora.
Para ela, esses são aspectos exteriores da escrita, de modo que priorizá-los é desprezar o conhecimento que as crianças formulam sobre o funcionamento do sistema. Elas precisam, portanto, construir as suas hipóteses de escrita ao mesmo tempo que entram em contato com textos reais e as funções sociais da língua. Vale lembrar, no entanto, que o construtivismo não é um método, mas um campo de estudo a partir do qual foram desenvolvidos diferentes métodos e abordagens, nas mais diversas disciplinas. As novas descobertas nortearam a formação docente e as políticas educacionais a partir dos anos 90, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), por exemplo.
Embora o país tenha conseguido conquistas importantes, como a universalização do acesso à escola, o desempenho continuava insatisfatório. Logo, os críticos associaram as concepções construtivistas aos maus resultados. É de 2003 um clássico de Magda Soares, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulado A Reinvenção da Alfabetização. No artigo, ela defende redescobrir a alfabetização como um processo específico, que precisa ocorrer de modo paralelo à imersão na cultura escrita. É dessa distinção que nascem os conceitos, na obra da autora, de alfabetização e letramento: letrar é inserir a criança na cultura escrita e suas funções sociais; alfabetizar é um processo específico de aquisição de um código, o sistema de escrita. Em várias passagens, Magda confronta a visão construtivista e a maneira como ela foi implementada no Brasil: “Se antigamente havia método sem teoria, hoje temos uma teoria sem método”. No entanto, a autora não despreza todas as descobertas do construtivismo, a necessidade de uma imersão profunda na língua escrita e da valorização dos conhecimentos que a criança desenvolve sobre o sistema. Em paralelo, outra frente de resistência aos construtivistas, mais radical, desenvolvia-se, representada especialmente pelas pesquisas em neuropsicolinguística e cognição do psicólogo Fernando Capovilla, da USP. Elas comprovariam a superioridade do método fônico sobre os demais. É provavelmente a esses trabalhos que Nadalim, próximo a Capovilla, se refere no decreto ao falar em “evidências científicas”.
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Não foi possível confirmar essa informação nem ouvir o secretário, já que a assessoria de imprensa do MEC não respondeu aos pedidos de entrevista feitos por NOVA ESCOLA. Mas o texto deixa claro: a aposta do MEC é no desenvolvimento de métodos que recoloquem o fonema no centro. É preciso notar, no entanto, um ponto importante. Há dois conceitos no decreto: o de literacia e o da numeracia. Literacia é tradução do conceito de literacy, que é próximo ao de letramento defendido por Magda – que, por sua vez, foi criticada por Nadalim no passado. O decreto define literacia como “conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes relacionadas com a leitura e a escrita e sua prática produtiva”, e a ideia de letramento diz respeito ao “conjunto de conhecimentos, atitudes e capacidades envolvidos no uso da língua em práticas sociais e necessários para uma participação ativa e competente na cultura escrita”, segundo o caderno de formação Alfabetização e Letramento, publicado por Magda e Antônio Batista pelo Centro de alfabetização, leitura e escrita (Ceale) da UFMG.
Mudar o método não basta
Para Isabel Frade, pesquisadora do Ceale, é preciso colocar a discussão em outros termos. “Desconheço pesquisa que pegue crianças alfabetizadas em várias metodologias e compare os resultados. Historicamente, trocava-se o método à medida que o problema aparecia, de modo que um método ia destruindo o outro”, diz. “O mais sensato é perguntar: como conjugar princípios desses métodos para fazer uma alfabetização melhor?” Além disso, embora as discussões sobre métodos tenham a sua importância, as experiências exitosas no Brasil apontam que há um conjunto de fatores, que vão além da introdução de um modo único de ensinar, por trás da melhora no desempenho das crianças. “Se é para apostar em evidências científicas, o decreto poderia ter se pautado em pesquisas que mostram como estados que aumentaram o investimento por aluno conseguiram melhores resultados”, afirma Cláudia Vóvio, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Ao longo da reportagem, você conhecerá as experiências de Marília, Joinville e Porteiras, cidades que têm obtido êxito em suas políticas de alfabetização. E notará que não se fala em método. Isso porque, em Marília e Joinville, não existe a adoção de um método propriamente dito, mas da ideia de imersão na cultura escrita por meio de textos, com alguns momentos de sistematização. E mesmo Porteiras, cuja adesão ao Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic) inclui o uso de materiais mais distantes das ideias construtivistas, não deixa de oferecer fartura de atividades de leitura e produção de texto com função social. As características comuns a essas e outras cidades são outras. Primeiro, ampliaram consideravelmente o dinheiro investido. Segundo, investiram fortemente na formação docente, com cursos e acompanhamento constantes. Terceiro, proximidade entre o corpo técnico da secretaria e os professores, em um clima de parceria e não de cobrança. Quarto, um sistema de avaliação permanente dos alunos - que não se baseia só em provas, mas em muita observação de sala de aula. E quinto, um currículo com objetivos claros de aprendizagem. Se o governo deseja que meninos e meninas tenham assegurado o direito de aprender a ler e escrever, as boas experiências brasileiras - que, sim, existem! - mostram que mudar o método é só uma parte do desafio.
Marília, São Paulo
LINHA DIRETA COM A ESCOLA
Técnicos da Secretaria, coordenadores pedagógicos e professores trabalham juntos no planejamento de cada semana de aula
Qualquer professor sabe o quanto é difícil planejar uma boa aula. Primeiro, é preciso ter tempo. Segundo, é necessário estar a par das necessidades de cada aluno. Terceiro, é fundamental o apoio de outros profissionais que ajudem a tirar dúvidas e apontar caminhos. Buscando proporcionar essas condições, a política de alfabetização do município de Marília priorizou um processo de planejamento bem estruturado de cada aula, apoiado por uma rede de colaboradores, que vão do coordenador aos técnicos da Secretaria. Na EMEF Prof. Antonio Ribeiro, a equipe pedagógica planeja em conjunto tudo o que será feito em cada dia da semana seguinte, de segunda a sexta. “Tem de ser tudo bem detalhado”, relata a professora Patrícia Alvarez, do 1º ano. Além dos objetivos de aprendizagem, ela discute com a coordenadora Maria Cintra as atividades de escrita, os momentos rotineiros de leitura e os de avaliação. O planejamento é descrito no semanário, documento construído nos intervalos das aulas e em encontros com toda a equipe, na quinta-feira. Além disso, técnicos da Secretaria visitam a unidade frequentemente. “Orientamos os coordenadores, analisamos os semanários e observamos a produção dos alunos”, conta Gislene dos Santos, assistente técnica da área responsável pela alfabetização. “Esse diálogo constante na hora de planejar é um ponto importante para entender a melhora nos índices”, afirma a professora da Unicid, Vanda Ribeiro, que estuda as políticas da cidade desde 2009. O apoio permanente ao professor ajuda a aperfeiçoar as práticas e acompanhar de perto a evolução dos estudantes.
JOINVILLE, SANTA CATARINA
ARTICULAÇÃO COM A EDUCAÇÃO INFANTIL
Rede municipal criou uma política que envolve os alunos desde a primeira infância e investe em formação dos professores iniciantes
Joinville dá uma atenção toda especial aos seus pequenos. A Educação Infantil sempre foi reconhecida e premiada nacionalmente pela qualidade das instalações e da proposta educacional. Mas, nos últimos anos, o município tem se destacado pelo bom desempenho nas avaliações de alfabetização, garantindo à escola um Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) acima das metas estipuladas. Também é em Joinville que fica a melhor escola (segundo o Ideb) de Fundamental I da Região Sul, a EM Adolpho Bartsch. Ela alcançou um impressionante 9,2 em 2017. Qual é o segredo? Para a secretária de Educação, Sônia Fachini, parte do êxito se deve à articulação entre os primeiros anos do Fundamental e a Educação Infantil. “A Secretaria possui um núcleo formado por profissionais responsáveis por garantir que as práticas alfabetizadoras tenham continuidade ao longo da vida escolar”, explica. Na prática, isso garante que os docentes da Educação Infantil se preocupem com a alfabetização, oferecendo atividades na rotina que proporcionem a imersão na cultura escrita. Outra virtude das escolas de Educação Infantil que se reflete nas unidades de Ensino Fundamental é o cuidado com a infraestrutura. “Aqui temos livros, jogos e materiais didáticos que ampliam as possibilidades do docente”, conta Fábio Doin, diretor da Adolpho Bartsch, que participa diretamente do planejamento pedagógico. A professora Dagmar Kohlscheen, do 1º ano, gosta de utilizar o alfabeto móvel em degrau, com o qual ela realiza atividades de reflexão sobre as unidades gráficas e sonoras das palavras trabalhadas em sala.
PORTEIRAS, CEARÁ
RECEITA CONSAGRADA
Em parceria com o governo do estado e universidades, o município viu as notas dispararem a partir de 2011
14 ESCOLAS DE ENSINO FUNDAMENTAL
1.201 ALUNOS NOS ANOS INICIAIS
A grande estrela da alfabetização brasileira nas últimas duas décadas é o Ceará. Desde o início do Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic), em 2007, quando estabeleceu um regime de colaboração com todos os 184 municípios do estado, o desempenho das crianças na Avaliação Nacional de Alfabetização (Ana) fez o Ideb subir vertiginosamente, saindo de 2,8 para 6,1 nos anos iniciais. Sobral é a cidade que mais se destaca no ranking, mas a política estadual tem conseguido estabelecer mais equidade entre cidades maiores e menores. É o caso de Porteiras, município com 15 mil habitantes, a 530 quilômetros de Fortaleza. A partir de 2011, os resultados alcançados no Ideb dão um salto. “Esse crescimento é consequência do trabalho que começou anos antes. Temos hoje a melhor média da nossa região nas avaliações estaduais entre as turmas de 2º ano”, orgulhasse a secretária municipal, Eliana Alves. Na EEIEF João Tavares Miranda, que fica na zona rural, o material didático oferecido pela Secretaria Estadual é seguido pela professora Maria de Fátima. As atividades já vêm estruturadas para cada dia do mês. Esse modelo fundamentado em avaliações constantes e no material estruturado é alvo de polêmica entre especialistas, que questionam, entre outras coisas, como fica a autonomia do professor diante de um currículo tão prescritivo. Também se critica o foco excessivo nas avaliações, em detrimento de um ensino mais adequado ao ritmo de cada um. Mas os resultados obtidos em Porteiras animam os gestores cearenses a seguir na mesma linha.
Lettering: Cristina Pagnoncelli