Ficção científica: conheça Octavia Butler e veja como levá-la para sua aula
De Kindred à Parábola do Semeador, especialistas dão dicas para explorar os livros da autora norte-americana com seus alunos
POR: Tory HelenaOctavia E. Butler (1947-2006) - a grande dama da ficção científica, mulher negra que previu o futuro e desafiou expectativas, escritora que diversificou o rol de personagens da ficção especulativa e cuja obra é assustadoramente atual - mora na minha parede, em um pedaço da minha estante de livros e do meu coração.
Desde que sua obra começou a ser traduzida no Brasil, a partir de 2017, pela Editora Morro Branco, sugeri-la virou quase um clichê para mim. Ainda assim, reforço o convite: em um gênero ainda muito dominado por autores brancos e masculinos, a ficção especulativa (ou ficção científica) produzida por Butler é um alento, ainda que trate de temas difíceis, perigosos e atuais.
Conto para vocês alguns deles que tive a sorte de ler:
1. Kindred: Laços de Sangue, que apresenta Dana, uma mulher negra viaja involuntariamente no tempo e vivencia na pele o passado escravocrata dos Estados Unidos;
2. Parábola do Semeador, que conta a história de Lauren Oya Olamina, uma adolescente negra, que escreve um diário em 2024 em que narra um mundo de violência, catastróficas crises ambientais-econômicas, cultos religiosos e de colapso das instituições;
3) Clay’s Ark, que conta sobre duas gêmeas, Rane e Keira, que tentam sobreviver em um mundo assolado por uma doença alienígena contagiosa;
4) Despertar, que fala de Lilith Yiapo, uma mulher que acorda de um sono de 250 anos para descobrir que quase toda a humanidade desapareceu e os sobreviventes estão sob a guarda de uma raça alienígena.
Quem foi Octavia Butler?
Octavia Estelle Butler nasceu em em 1947 e foi criada pela mãe e a avó em Pasadena, na Califórnia. Muito tímida, era alvo de bullying na escola e um de seus escapes foi a literatura (a menina passava muitas horas na biblioteca pública da cidade e enchendo um caderninho de histórias!).
Ao 10 anos, ganhou uma máquina de escrever e, aos 12, depois de assistir um filme de ficção científica na televisão, concluiu que poderia escrever um roteiro mais interessante. Sem dar muita bola para as previsões pessimistas de sua família, que queriam que ela trabalhasse como secretária após a faculdade, Octavia continuou escrevendo.
Ao longo de sua carreira, priorizou heroínas negras em situações distópicas, escreveu sobre poder e opressão e subverteu padrões imaginados para os livros de sci-fi. Em vida, recebeu os mais importantes prêmios da área (Nebula e Hugo Awards), mas foi apenas após sua morte, em 2006, que sua obra passou a alcançar um público maior. No Brasil, levou quase 40 anos para os livros de Octavia Butler serem traduzidos, mas hoje é possível ler parte de sua obra em Português.
Como explorar os livros de Octavia Butler nas aulas do Fundamental 2 e do Ensino Médio?
Para descobrir isso, eu conversei com o Waldson Gomes de Souza, mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB) e professor em uma escola pública de Brasília, a Cláudia Fusco, jornalista de formação e mestre em Science Fiction Studies pela Universidade de Liverpool, e a Fernanda Sousa Carvalho, doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora do artigo “Imaginando novos papéis para mulheres negras: a ficção especulativa de Octavia Butler e Tananarive Due”.
Curso: Literatura no Ensino Fundamental 2
Não sabe como aproximar os alunos do Ensino Fundamental da literatura? A proposta deste curso é discutir estratégias didáticas que contribuam para a formação de adolescentes que sejam leitores literários, por meio da apresentação de gêneros que dialogam com a realidade deles.
Autor da dissertação “Afrofuturismo: o futuro ancestral na literatura brasileira contemporânea”, Waldson acredita que hoje há mais espaço para discutir a literatura de ficção científica na escola. “Professores que entraram na faculdade de Letras porque gostavam de Harry Potter hoje estão na sala de aula”, comenta.
No entanto, a barreira do acesso aos livros ainda é um desafio. “Nem toda biblioteca escolar terá esses livros, mas também é possível fazer um trabalho de mediação de leitura levando fragmentos, por exemplo”. Waldson destaca ainda que dois livros de Butler, Kindred e Parábola do Semeador, falam também da importância da escola e da Educação, e esse tema é rico para ser trabalhado com os alunos dos anos finais e do Ensino Médio.
Como um todo, a obra de Octavia Butler discute questões fundamentais sobre raça, gênero, sexualidade, classe, as relações de poder e de opressão. “O que é central na obra dela: trazer perspectivas muito enriquecedoras, da vivência da mulher negra, aplicadas à ficção científica”, resume Cláudia. A jornalista sugere trabalhar esses temas com os alunos e fazer provocações: “por que a autora focou nessas mensagens? O que vocês acham dessa personagem ser uma mulher negra? Como vocês escreveriam a história do Kindred se ela fosse no Brasil?”, elenca.
Kindred - Laços de Sangue, publicado pela primeira vez em 1979, é talvez o livro mais conhecido de Butler (está incluído no Programa Nacional do Livro Didático - PNLD) e pode servir como porta de entrada para a obra dela com os alunos adolescentes. O livro subverte um tema comum no universo sci-fi a viagem no tempo ao trocar a raça e o gênero do protagonista. Nem preciso dizer que voltar para o período da escravidão nos EUA estando no corpo de Dana, uma mulher negra, não é nada divertido.
Além das aulas de Literatura, o tema pode ser explorado também em Geografia e História ao abordar este período e para traçar paralelos com o Brasil. “Dá para contextualizar com o processo histórico da diáspora negra e comparar as semelhanças e diferenças entre as experiências dos EUA e do Brasil”, sugere Fernanda.
Além disso, Parábola do Semeador e Parábola dos Talentos falam sobre o fundamentalismo religioso e as mudanças climáticas, temas também bastante atuais. Escritos nos anos 90, os livros retratam uma década de 2020 bastante distópica: a sociedade e as instituições estão colapsando, há incêndios por toda parte, uma grave crise climática e econômica assola o país enquanto a classe média tenta se defender em condomínios murados e ensinando crianças e adolescentes a manusear armas de fogo. Em meio a tudo isso, Lauren Olamina, uma garota que sofre de hiperempatia e cujo pai é pastor, escreve um diário e começa a inventar sua própria religião.
Na sequência, Parábola dos Talentos, publicada em 1998, vai mais longe nas previsões: nela, um presidente identificado com a extrema-direita e com o fundamentalismo religioso é eleito prometendo “Fazer a América grande de novo”.
“É muito interessante ouvir o que ela tinha a dizer. Sua mensagem era muito forte, especialmente para este momento de ativismo e discussão racial no Brasil. É interessante ouvir a autora e também o que outros pesquisadores negros tem falado sobre esta questão”, conclui Fernanda.
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