Magda Soares: conheça livro que consolida experiências e aprendizados da educadora
Na obra "Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever", a especialista compartilha práticas de sucesso durante 12 anos na rede mineira
POR: Paula SalasConteúdo atualizado em 02/01/2023 e publicada originalmente em 16/09/2020
"Era hora de prestar contas com o que eu fiz durante a vida. Eu quero deixar a herança desse trabalho de tantos anos", afirma Magda Soares (1932-2023), professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sobre seu novo livro Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, lançado em 16 de setembro pela Editora Contexto.
Reconhecida como uma das maiores especialistas de alfabetização do Brasil, Magda foi uma das fundadoras da Faculdade de Educação da UFMG e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da mesma universidade. Com uma extensa lista de publicações de livros acadêmicos e didáticos, em sua nova obra ela se debruça sobre as aprendizagens construídas desde 2007 no projeto Alfaletrar na rede municipal de Lagoa Santa (MG). “É um projeto que pode ser construído em toda e qualquer escola pública. É possível dependendo do esforço, disposição e compromisso”, afirma. Conheça mais sobre a experiência clicando aqui.
O compromisso social sempre foi um marco na Educação e vida da professora. Quando buscou a faculdade de Letras, não pensava em ser docente, mas uma experiência na rede pública de Belo Horizonte mudou seu caminho. "Parecia que tinha um destino fixado", conta. Após a graduação em Letras, foi trabalhar em uma escola pública que atendia desde a Educação Infantil até o Curso Normal – também conhecido como Magistério. "Eu fui fazer a formação de professoras alfabetizadoras. Daí começou a minha história. Foi uma espécie de epifania. Depois de 10 anos fui para a universidade já com o foco do que eu tinha visto e queria resolver", relembra. Desde então, Magda não se afastou do ciclo de alfabetização.
Em Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever, ela traz a base teórica que estrutura o projeto Alfaletrar sem tirar o pé da prática. Organizado em seis unidades, Magda se aprofunda em cada um dos princípios essenciais que orientam a iniciativa em Lagoa Santa. O livro é repleto de atividades e relatos de professores e alunos que foram coletados durante os 12 anos de experiência na rede mineira. Quem lê se sente orientado pela especialista, como em uma grande aula de Educação. Magda conduz o leitor a fazer uma reflexão sobre a própria prática e propõe exercícios durante o livro.
Às vésperas do lançamento do livro, Magda conversou com a NOVA ESCOLA sobre sua nova obra e toda sua trajetória na Educação. Confira abaixo, os principais trechos da entrevista:
Em 2017, a senhora recebeu o Prêmio Jabuti com o livro Alfabetização: a questão dos métodos, que traz um enfoque teórico. Quais perguntas queria responder quando buscou compreender o que já havia sido pesquisado sobre o processo de alfabetização para consolidar a obra?
MAGDA SOARES Ainda na faculdade eu me perguntava: por que a gente não sabe alfabetizar as crianças? Nós formamos professores no curso de Pedagogia, fazemos formação continuada, cada governo inventa um projeto, desenvolve esse projeto e tudo continua igual. Então, qual é o problema? Para obter essa resposta, a primeira pergunta que me fiz foi: qual conhecimento já foi produzido sobre o processo de alfabetização?
Foi essa pesquisa que criou o grupo inicial do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita. Passei 5 anos fazendo o levantamento. Estou com uma biblioteca de cerca de 7 mil volumes [entre livros de Educação e literários] de tantos livros que comprei neste período, além de mais de 20 pastas de artigos [científicos]. Fui organizando tudo isso, o que acabou resultando no livro Alfabetização: a questão dos métodos. Mas é um livro voltado para formadores de alfabetizadores, pesquisadores, pessoas que queiram se aprofundar. Não colabora com pessoas que estão realmente praticando alfabetização nas salas de aula.
Foi isso que motivou a senhora a escrever seu novo livro Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever?
Quando chegou ao 12º ano [desde o início do projeto], eu comecei a sentir que o meu corpo já não estava correspondendo aos meus objetivos. Me lembrava do Paulo Freire, meu saudoso guru, que num dos últimos encontros que nós tivemos me disse “você vai chegar em um ponto que vai saber como é difícil a cabeça não acompanhar o corpo e o corpo não acompanhar a cabeça. Eu estou aqui cheio de projetos, de desejos, mas o corpo já não me serve mais”.
Comecei a viver aquilo e lembrar dele. Eu quero deixar a herança desse trabalho de tantos anos, colocar as coisas a limpo. Era hora de prestar contas com o que eu fiz durante a vida, deixar um relato do que nós construímos em Lagoa Santa. Eu escrevi esse material para que fosse útil para as professoras dos municípios. Tentei fazer um livro autoinstrucional, como se eu estivesse sendo orientadora nesse processo. Inclusive, propondo questões para que [a leitora] resolva e dando as respostas para que se aprofundem.
Deu muito trabalho, mas deu muita alegria. Esse livro, de todos que fiz, é o que me dá mais satisfação, porque foi construído coletivamente, junto com professoras e toda a rede.
No início do livro, a senhora coloca o cenário do insucesso da alfabetização no Brasil e coloca como a experiência de Lagoa Santa nos últimos 12 anos evidencia que todas as crianças de escola pública podem aprender a ler e a escrever. Como surgiu essa experiência?
A secretária de Lagoa Santa, cidade que considero minha segunda cidade natal, me chamou [para trabalhar na rede], porque quando assumiu se deu conta dos baixos resultados das crianças nas avaliações externas na área da alfabetização e do letramento.
Eu tinha um projeto pessoal de que quando me aposentasse voltaria para a escola pública. A gente está falando disso [da prática do professor] de longe, na torre de cristal [a universidade]. Eu queria [voltar para a escola e] saber como isso acontece no chão da escola. Eu tinha o sonho de trabalhar numa rede pública com todas as escolas da rede. Era tudo que eu queria.
Quando o convite surgiu, a expectativa era criar todo o projeto que foi construído?
A única coisa que eu esperava era compreender as escolas públicas e ajudar a trabalhar para que tivéssemos qualidade na alfabetização e letramento. Não tinha um plano feito para implementar. Foi um projeto construído passo a passo com a colaboração de toda a rede. Cheguei lá, porque tinha um problema de baixa qualidade de ensino. Conversei com a equipe da secretaria, representantes das escolas, e fomos montando o projeto (saiba mais sobre o trabalho realizado em Lagoa Santa clicando aqui). Não sou eu que faço, mas somos nós. Hoje temos uma rede que é realmente uma comunidade colaborativa.
Eu acho que o foco mais importante é que nesse trabalho nós procuramos identificar e definir alfabetização partindo do seguinte: vamos fazer as perguntas certas, e não o que eu faço, como eu faço.
Por que não ter um olhar voltado para responder “como fazer”?
Lembro quando estávamos dando cursos de formação continuada na Universidade, os professores reclamavam falando que as professoras só queriam receita. Eu sempre dizia: claro, coloca 30 crianças na frente dela e fala que é para alfabetizar. O que elas querem saber é o que fazer.
Minha proposta era continuar vendo como fazer, mas mudando o foco. Em vez de pensar o que faço, como alfabetizo, pensar como a criança aprende. Só posso alfabetizar essa criança se eu compreendo o processo de aprendizagem dela. Essa é a pergunta certa que temos que fazer porque dela concluímos tudo mais: o que fazer, como fazer e quando fazer. Ter conseguido fazer essa mudança de foco para o processo de alfabetização e letramento é algo que me traz uma enorme satisfação de com o grupo de Lagoa Santa.
O Alfaletrar reúne o que é pensado como pesquisa e teoria de alfabetização com a realidade prática de uma rede municipal de ensino. Como a senhora avalia o encontro do que se ensina nas universidades com o que se vive nas escolas? Como um pode influenciar o outro?
A sensação é que aprendi muito mais nesses 12 anos inserida em uma rede pública do que aprendi fazendo meus cursos de graduação, pós-graduação e pesquisas. Aprendi mais porque eu aprendi da realidade, não dos livros.
A articulação entre teoria com a prática não é falar da teoria e depois praticá-la. Também não se trata de observar a prática e construir uma teoria. As duas são inseparáveis. O que acontece em Lagoa Santa tem conceito teóricos implícitos. Não aplicamos uma teoria. Entendemos a realidade para verificar o quanto [as teorias] podiam colaborar e quanto a realidade ensina teorias. [Às vezes] eu vinha toda metida com a teoria que fulano falou e sugeria para tentar. Depois as professoras voltavam e falavam “Magda, não dá certo”. Eu ficava feliz, porque não era só eu ir lá falar que ia dar certo, porque elas faziam e voltavam com uma análise daquilo que me fazia corrigir a teoria que não era adequado para aquelas crianças. Eu vi acontecer em Lagoa Santa, vi que é possível [fazer essa articulação] e que é a solução para ter uma ação educativa efetiva, mas não é fácil.
Todo o seu novo livro se baseia na perspectiva da indissociabilidade da alfabetização e letramento, processos que são diferentes e com mecanismos específicos, mas que devem ser simultâneos. Como isso se dá na prática?
Nós começamos a introdução da criança à língua escrita na Educação Infantil. Vemos que aos 4 anos, [os pequenos] já têm interesse e começam a fazer hipóteses, suposições [sobre a escrita]. Essa orientação do processo de aprendizagem da criança é isso que chamo de alfabetização. Também entra o letramento, que é essa ideia de que não basta a criança saber ler e escrever, mas dar objetos ao que está sendo introduzido na alfabetização. Quem lê, lê alguma coisa, quem escreve, escreve alguma coisa. E são “coisas” no plural, pois estamos falando de vários gêneros textuais. Desenvolvemos simultâneamente as duas coisas [o entendimento do sistema alfabético e dos usos sociais desses textos em contextos reais do letramento].
Todo mundo trabalha com parlendas, mas como trabalhar com parlendas de modo a ajudar a criança a entender que aquilo que está cantando pode ser representados por letras? Daí é quando a professora mostra como escreve palavras que rimam, que aquele finzinho que é igual sonoramente é escrito do mesmo jeito [nas diferentes palavras]. Isso ajuda avançar [na aprendizagem]. Quando a professora lê uma história e acompanha [a leitura] com o dedo, a criança já percebe que a escrita tem uma linearidade. Vê que aquilo que a professora está lendo são aqueles desenhos [letras] que se traduzem em sons. Isso é o começo da alfabetização.
Quando as professoras têm alguma dificuldade, a gente sempre se pergunta: o que passou pela cabecinha da criança para que achasse que fosse assim? Vamos trabalhar com os processos cognitivos e linguísticos para que ela avance. Pensar na criança que está aprendendo e como ela aprende, muda completamente a postura do professor.
Muitas vezes ao falarmos de alfabetização, as discussões se prendem aos métodos. A senhora coloca que o Alfaletrar não é uma metodologia, mas uma ação pedagógica orientada pelo princípio de ensino com método. O que muda no ensino da alfabetização com essa perspectiva de sair do debate da metodologia?
Quando falamos em método falamos o que o professor vai fazer. Sempre implica em uma ação do professor, mas o foco é pensar como a criança aprende e daí definir o que quero fazer. Não usamos método nenhum. Nós orientamos a aprendizagem da criança para a alfabetização e letramento.
Não gosto de chamar o Alfaletrar de método, porque não é um caminho definido passo a passo. Prefiro dizer que é uma ação educativa para que as crianças se apoderem do mundo da escrita, pois é algo que se constrói junto, em que o professor tem clareza que criança tem um processo de aprendizagem e desenvolvimento cognitivo-linguístico.
A rede de Lagoa Santa é composta por 24 escolas e todas participam do projeto do Alfaletrar. São observadas disparidades de aprendizagem dentro da rede?
A questão da igualdade dentro da rede é fundamental. Se chegar em Lagoa Santa e perguntar qual é a melhor escola do município não há uma resposta. Todas crescem juntas e estão aproximadamente no mesmo nível. Verificamos isso três vezes ao ano [com os diagnósticos] para dar o mesmo direito a todas as crianças. Desde o início, nos acostumamos a falar que somos da rede de Lagoa Santa, e não da escola tal, porque as escolas se entendem e as professoras trocam muito. É uma comunidade pedagógica. O que nos interessa é o que os alunos estão aprendendo. Não vamos cair na mitologia dos resultados, de comparar e avaliar. Avaliação é uma palavra que cortamos em Lagoa Santa. A gente não quer ver o valor que a criança tem, mas o que ela aprendeu, qual conhecimento adquiriu.
O Alfaletrar sobreviveu a todas as mudanças que passamos no país desde 2007. Houve momentos de dificuldade nas transições de governo?
É um trabalho permanente. Não é um milagre de imediato. Havia momentos que pensamos em desistir, mas tenho muito orgulho de como não desistimos. Projetos vêm e vão, tem um tempo de duração. Em Lagoa Santa eu tenho a segurança que continua. A própria cidade resiste se houver uma mudança. É uma realização muito bonita do grupo todo.
No livro, depois de se dedicar a cada um dos aspectos do processo de alfabetização e letramento, a senhora se debruça no planejamento dessas atividades. Entre os pontos principais, a senhora coloca a necessidade de estabelecer metas que garantam a continuidade e a integração entre as aprendizagens construídas em cada ano do ciclo de alfabetização. Neste ano vivemos em um cenário inédito na Educação com o ensino remoto. Para a senhora, como fica o processo de alfabetização neste contexto?
É um bom exemplo de como essa comunidade funciona. Nós tínhamos fechado o primeiro diagnóstico do ano quando o ensino remoto veio. Cada professora se organizou para produzir material para sua turma [com base em] até onde tinham ido com os objetivos a serem atingidos neste ano. Não vai funcionar maravilhosamente, mas vai garantir que a criança não perca o conceito de escolarização e continue trabalhando no que vinha sendo ensinado. Na volta vamos ter que planejar como vamos um diagnóstico como estão. Eu tenho confiança que em Lagoa Santa esteja sendo garantido o mínimo de continuidade, que é um princípio básico do projeto.
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