O que fazer quando as expectativas das famílias são diferentes do trabalho planejado para as crianças?
A concepção de criança pode ser diferente, mas é necessário buscar um diálogo e compreender a realidade dos adultos responsáveis pela criança
POR: Evandro TortoraAo longo das últimas semanas, tenho compartilhado, em conversas com várias professoras e professores, as minhas experiências de trabalho remoto com as crianças. Desde o início da pandemia, nós, educadores, buscamos diferentes formas de interagir com os pequenos para possibilitar trocas de qualidade com as turmas.
Entretanto, percebemos vários conflitos entre o que propomos aos pequenos e a expectativa das famílias. Elas, em sua maioria, não possuem formação para atuarem como professoras ou professores. Logo, tem concepções diferentes daquelas que há anos temos construído.
Falando da minha realidade, algumas famílias me enviam fotos de cartilhas com letras pontilhadas para que as crianças façam exercícios mecânicos de coordenação motora e desenhos impressos que foram coloridos pelos pequenos. Hoje, defendemos uma concepção diferente, na qual devemos oferecer experiências mais significativas com a escrita dentro de um contexto de práticas sociais e o estimulo a produção artística própria da criança.
Essa perspectiva que coloco aqui vem desde a Constituição de 1988, quando se colocou a criança como um sujeito de diretos. Esta concepção é reafirmada em diversos documentos que vieram depois dela, como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que se aprofundam na temática quando consideram a criança como um sujeito capaz, que aprende por meio da experiência, se expressa por meio de diferentes linguagens e tem o direito de brincar e interagir com o mundo.
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Percebam que temos aqui dois cenários distintos que causam estranhamento. De um lado, os saberes que trago comigo sobre a forma como os pequenos aprendem, a função social da Educação Infantil, ideais sobre o que são as infâncias e uma concepção de criança.
Essa construção foi fruto de um longo processo de estudos e reflexões sobre a minha prática pedagógica, algo que as famílias não vivenciaram. Por isso, elas acabam desenvolvendo práticas por iniciativa própria dentro das suas crenças e experiências sobre como suas crianças podem aprender.
Dentro deste cenário, podem surgir dúvidas do tipo: não seria ideal acompanhar as famílias nesse processo e dar-lhes aquilo que esperam? Não seria melhor imprimir alguns materiais, como uma apostila, e cobrar uma lição diária das crianças? Seria mais fácil retomar um esquema de aulas on-line para as crianças e lhes “ensinar” aquilo que precisam para o Ensino Fundamental?
Estas e outras inquietações pairam no ar. Saindo da minha realidade sei que são práticas escolhidas por várias colegas que buscam proporcionar interações que seja mais “efetivas” aos olhos das famílias. De antemão digo que não concordo com nenhuma destas ideias, pois tenho comigo concepções que entram em conflito com tais propostas.
Como a concepção da criança aparece na prática?
Como sujeitos históricos que somos, é importante reconhecermos que a Educação Infantil, ao longo da história, esteve atrelada a concepção de criança vigente em cada período.
Essa perspectiva influencia diversos aspectos ligados à Educação como, por exemplo, a arquitetura do prédio das escolas, nos materiais escolhidos pelos educadores para trabalhar com as crianças, na forma que agrupamos as crianças, na formação docente, etc. Tudo isso perpassa pela ideia de criança.
Faça o exercício de observar a arquitetura do prédio da sua escola e avaliar alguns de seus elementos como, por exemplo, as janelas. No meu caso, as janelas da minha sala ficam bem altas e, quando chove, as crianças precisam subir em algum lugar para observar a água molhando a terra.
Quando está frio e queremos ter luz do sol para nos aquecer, eu preciso abrir as janelas, porque as crianças não alcançam as cortinas. Se está calor e queremos sentir o vento que vem de fora, é o professor que precisa abrir a janela. A minha concepção de criança, certamente, não é a mesma de quem projetou aquelas janelas, porque elas não foram pensadas de forma a permitir a autonomia dos pequenos.
Pensemos agora nas pinturas ou outros elementos artísticos que ficam nas paredes. Eu me lembro, quando estava na Educação Infantil, que minha professora decorava a sala com personagens de desenhos animados. As nossas produções ficavam em pastas guardadas dentro do armário e era comum que pintássemos desenhos impressos oferecidos por ela.
Minha concepção de criança difere daquela que perpassava as práticas da minha antiga educadora, pois penso que as produções têm muito potencial para serem expostas naquele espaço que é dos pequenos. Aliadas as produções dos pequenos, podemos fazer parte da ambientação do local como forma a ampliar o repertório das crianças e dar-lhes possibilidades ricas de expressar-se por meio da pintura.
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Existem diversas definições de “concepção”. Aqui podemos entender o conceito como um conjunto de pensamentos que embasam sua forma de enxergar e agir sobre o ambiente e atuar sobre ele a partir de suas crenças, valores, saberes. Possivelmente o arquiteto que projetou minha sala ou minha antiga professora não tinham a mesma visão da criança como um ser independente das vontades dos adultos ou como uma potência artística.
Voltando para a discussão que abriu este texto. Podemos afirmar que as concepções das famílias podem divergir daqueles que nós possuímos. Dessa forma, caberia a nós no rendermos a essa ansiedade dos pais e responsáveis e estimularmos práticas que divergem da nossa concepção de infância e aprendizagem ou ampliar o repertório deles e promover um diálogo sobre esses assuntos? Fico com a segunda opção.
Como levar essa conversa para as famílias
Para começar, é importante ressaltar que devemos evitar uma postura radical. Eu não diria às famílias que parem de fazer o que estão fazendo porque está errado. É preciso ter sensibilidade e entender que elas estão agindo de acordo com aquilo que acreditam ser o trabalho da escola. Elas são influenciadas por diversos fatores, sua experiência quando criança, sugestões feitas por alguma mídia ou consultas à internet.
Prefiro olhar esse ponto como um ganho, afinal elas dedicaram um tempo para realizar algo com a criança. A partir de um planejamento da nossa parte, podemos buscar uma forma de transformar essas práticas e sugerir outras ideias que valorizem a concepções que temos sobre a Educação das crianças.
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Porém, para que este diálogo ganhe este tom, é preciso que nós professores tenhamos uma percepção muito clara sobre as concepções que permeiam as nossas ações. Essa visão pode ser construída a partir da reflexão sobre as nossas práticas e conversas com nossos pares.
Esse trabalho deve receber uma atenção especial. Se nos rendermos a práticas que já não condizem com o que estudamos nos últimos anos e aprendemos com os pequenos sobre seu modo de estar no mundo, corremos o risco de perder muitos dos ganhos que tivemos na Educação Infantil. Por isso, vamos garantir que a nossa concepção de criança esteja presente em nossos planejamentos e que as famílias possam conhecer os ganhos que existem nessa perspectiva.
Um abraço carinhoso e até breve!
Evandro
Evandro Tortora é professor de Educação Infantil há 7 anos na Prefeitura Municipal de Campinas, licenciado em Pedagogia e Matemática e doutor em Educação para Ciência pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Bauru. Além da docência na Educação Infantil, tem experiência com pesquisas na área da Educação Infantil e Educação Matemática, bem como desenvolve ações de formação continuada para professoras e professores da Educação Infantil e do Ensino Fundamental.
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