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Equidade: o papel das socioemocionais na redução das desigualdades

Escuta atenta, estratégias que geram autoconhecimento e incentivo ao projeto de vida dos alunos podem diminuir as diferenças nos impactos causados pela pandemia

POR:
Paula Salas
Crédito: Getty Images

“Ela vem de uma família desestruturada”, “essa daí não quer saber de estudar”, “ali onde mora não tinha como fugir do crime”. Essas e tantas outras frases são comuns para justificar a profecia que sentencia crianças e jovens ao fracasso escolar.

Todos foram afetados pela pandemia, mas a parcela historicamente mais vulnerável é a mais impactada. Ela tem cor, classe social, endereço e gênero definidos. "São as meninas pretas e pardas, pobres, que moram na periferia ou em áreas rurais, e são filhas de pais menos escolarizados", explica Simone André, especialista em Educação integral e desenvolvimento socioemocional.

Depois de anos de discriminação e marginalização, é comum que os estudantes  reproduzam a falta de crença que outros lhe atribuem. Com isso, pouco reconhecem suas habilidades e têm baixa autoestima. "Alunos me falavam que achavam que não tinham talento, mas que percebem que tem coisas que sabem fazer bem. O sonho não é algo distante. Traçar objetivos mais fáceis de alcançar também pode ser motivador", afirma Gabriel Guedes, professor de Língua Inglesa e de Projeto de Vida para turmas dos Anos Finais no Colégio Municipal Álvaro Lins, em Caruaru (PE).

Para o educador, as competências socioemocionais são fundamentais para criar um futuro diferente para esses estudantes. Ele destaca a importância de desenvolver protagonismo, autoconhecimento, empatia e respeito. "Projeto de vida é um ambiente de vulnerabilidade, de se expor. Eles usam muito para se abrir", explica Gabriel. Ao professor, cabe acolher o que estão sentindo. "Devemos entender como, dentro de cada disciplina, podemos ajudá-los para que seus sonhos individuais se realizem", destaca.

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Para pensar no futuro, o aluno precisa ter uma perspectiva otimista a respeito de si e de onde pode chegar. Na pandemia, é essencial que os educadores ajudem o estudante a não perder esse olhar. "Eles têm que acreditar que irão sair deste presente [no contexto pandêmico]. Para isso, precisam de perseverança e resiliência", diz Thereza Paes Barreto, diretora pedagógica do Instituto Corresponsabilidade pela Educação (ICE), que desenvolve o programa Escola da Escolha em parceria com redes estaduais e municipais para apoiar os jovens na construção do seu projeto de vida. O professor Gabriel nota que esse trabalho se reflete no desempenho dos alunos em todas as aulas. "Se engajam mais, porque enxergam um mundo de possibilidades", afirma.

O primeiro passo para construir seu projeto de vida é o autoconhecimento. "Desde cedo é preciso desenvolver a noção de si, se gostar e se aceitar. O aluno começa a entender o que precisa para realizar seus sonhos, planejar e definir metas para o futuro. Trabalhar as socioemocionais é criar esse ambiente", afirma Thereza. "Apesar das dificuldades, os professores são as pessoas de referência para seus alunos, a escola deve  ser um lugar de acolhimento", destaca a diretora pedagógica do ICE. 

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Ainda é difícil mensurar os impactos que a pandemia terá na aprendizagem dos alunos. O que já podemos imaginar é que a diferença será gritante entre quem teve acesso à atividades remotas e quem não. Os mais afetados serão aqueles que pertencem a camadas sociais mais vulneráveis. Ao investigar o perfil do público atendido pela redes municipais, identificamos que 83% dos alunos das redes públicas do Brasil vivem em famílias com até um salário mínimo, segundo pesquisa Desafios das Secretarias Municipais de Educação na oferta de atividades educacionais não presenciais, realizada pela União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed). Além de vulnerabilidade econômica, também são um público com uma conectividade restrita, o que compromete o acesso ao ensino remoto. O levantamento mostrou que a maioria tem acesso à internet pelo celular, no entanto, 54% dos alunos da classe C, D e E  não têm acesso à internet de qualidade

Pesquisa realizada pelo Instituto Península entre julho e agosto de 2020 investigou a percepção dos professores em relação à aprendizagem dos alunos. Enquanto 17% dos professores que atuam na rede municipal — e só 13% da rede estadual — acreditam que os alunos aprenderam o esperado, na rede particular esse número dobra (36%). 

O estudo Pandemia de covid-19: o que sabemos sobre os efeitos da interrupção das aulas sobre os resultados educacionais?, conduzido pela Fundação Getúlio Vargas Clear em parceria com a Fundação Lemann, mantenedor de NOVA ESCOLA, evidencia que os mais prejudicados são os alunos dos Anos Iniciais do Fundamental e os do sexo masculino, pardos, negros e indígenas, com mães que não finalizaram o Ensino Fundamental e moradores das regiões Norte e Nordeste. Em um cenário mais pessimista, calcula-se que há um retrocesso de até quatro anos na aprendizagem.

No dia a dia da sala de aula
"As socioemocionais são o meio e não o fim", resume Thereza. O trabalho dos professores e gestores deve ser intencional e diário. O professor Gabriel gosta de estimular o diálogo. Ele cria estratégias de sensibilização e traz elementos para propor a discussão. Nem sempre as propostas dão certo e está tudo bem, o importante é analisar e buscar formas de fazer diferente. Ele lembra de uma atividade que planejou para que os alunos refletissem sobre quem eram. "Eu trouxe um poema de Clarice Lispector, mas não deu certo. Na aula seguinte, propus uma dinâmica para eles desenharem, fizemos a vivência e funcionou", conta o educador. 

Com suas turmas de 6º ano, há um trabalho importante para que os alunos saibam como ser menos impulsivos e reativos. "Devem saber discordar de forma respeitosa, falar suas opiniões, reconhecer o outro e perceber que o diálogo ajuda a resolver os problemas. E construir atitudes para um convívio social mais saudável”, explica o educador. 

A professora Jocastha Cavalcante também conduz conversas diárias com os alunos dos Anos Iniciais no Centro de Ensino Integral Ivany Rodrigues Bradley, em Arcoverde (PE). "Cada um tinha seu momento de falar sobre as experiências do dia anterior", explica a educadora. Em uma dinâmica simples, como uma roda de conversa, eles exercitam competências importantes, como respeitar e escutar o outro. Na pandemia, os encontros foram transpostos para o Google Meet. "É uma comunidade sem assistência educacional e emocional, quando abrimos esse espaço percebemos o quanto precisam dele", complementa. Quem não consegue participar tem atendimento individual via WhatsApp - além de poder retirar atividades impressas.

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Assim como a escola da professora Jocastha, o Colégio Estadual Profª. Hilda Kamal, em Umuarama (PR), é parceiro do ICE. No programa constam aulas de Protagonismo. "O protagonismo é trabalhado em todas as disciplinas, mas temos mais tempo para isso. Dentro da aula abordamos a questão do diálogo, respeito e empatia", explica Héricles Fernando Silveira, professor de Língua Inglesa, Protagonismo e Estudo Orientado para o 6º e 7º ano. "O protagonismo mostra [ao aluno] suas possibilidades. Eles são estimulados a ter autonomia e responsabilidade", explica Jocastha, que também dá  aula de Protagonismo.

Tanto Héricles quanto Jocastha relatam uma mudança na postura dos alunos. Eles desenvolveram uma sensibilidade pelos outros. As crianças criaram uma rede de apoio durante a pandemia. Preocupam-se quando um não consegue participar, avisam quando sabem que o colega teve um problema, pedem para esperar pelo outro quando a internet cai… Os educadores creditam a mudança ao trabalho com as socioemocionais. "A gente percebe que querem cuidar, ajudar. Quando aparecem situações difíceis levamos para a roda de conversa para pensar o que fazer", complementa a professora.

As competências socioemocionais não são bala de prata
Apesar de resultados positivos no desenvolvimento de competências e dos esforços dos educadores, existe uma angústia comum por conta da situação atual. "Não estamos garantindo o direito de aprendizagem de todos, pois boa parte não consegue ter acesso", compartilha Jocastha. Ela nota que essa desigualdade aparece no baixo número de crianças que conseguiram se alfabetizar durante o ensino remoto.

Hoje, o professor Gabriel conta que tem entre 50 e 60% de participação nas atividades online. "Está melhor que o ano passado, mas a conectividade ainda é um problema que não conseguimos resolver", explica. A falta de acesso aumentou as lacunas de aprendizagem que já existiam. "A desigualdade não é novidade. As secretarias e educadores se reinventaram, tem muita coisa boa acontecendo, mas não são todos [que têm acesso]", afirma Thereza.

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Simone aponta que, para superar os desafios impostos pela pandemia, é fundamental desenvolver competências socioemocionais como empatia, abertura para o novo, resiliência, autogestão e colaboração. Isso porque será preciso muito esforço, transformações na Educação e parceria para enfrentar as consequências. "Seja qual for a escola após a pandemia, vai ter que ser mais colaborativa, acolhedora, equitativa. Vamos ter que olhar para todos, mas especialmente para quem mais precisa", diz a especialista em Educação integral. 

Simone propõe um olhar para os fatores de desigualdade que geraram as defasagens desde antes da pandemia. "As socioemocionais são um grande propulsor para recuperar essas perdas." Ela explica que é válido identificar quem são os mais prejudicados e quais são as competências que os ajudam a aprender melhor. O processo inclui a reconstrução dos vínculos e o acolhimento. "É preciso dar espaço de participação, ter empatia para o que estão vivendo e acolher as marcas que trazem da trajetória escolar", afirma. Uma Educação com mais equidade não depende só do professor. "É um projeto de escola. Muitas vezes as socioemocionais são deixadas para serem trabalhadas quando estoura um problema, não se cuida da prevenção", afirma Héricles. 

Em uma tragédia nunca antes vista, com o aumento das desigualdades já existentes e um futuro incerto, é preciso apoiar as crianças e jovens a permanecerem na escola e a acreditarem no projeto educacional como algo importante para suas vidas. "Olhem seus alunos como seres cheios de sonhos. Se temos alguma perspectiva de avanço socioeconômico nesse país, dependemos deles. Eles são nossa única chance de ter melhores profissionais no futuro", finaliza Thereza.

Para pensar uma escola mais equitativa
A especialista Simone André dá três dicas para refletir e construir uma Educação com menos desigualdade 

  1. Reconheça seus preconceitos. Faça uma revisão constante se, inconscientemente, questões raciais, de gênero ou socioeconômica não estão afetando a forma como você vê e trata o aluno. "Está considerando que todos os alunos têm potencial de aprender ou está pressupondo que não vão aprender?", questiona.
  2. Escute as crianças e os jovens. A especialista sugere que o professor se dispa de julgamentos e realmente perceba e entenda cada indivíduo. "É difícil silenciar o preconceito, mas dê espaço para os alunos. Não induza conclusões, realmente ouça".
  3. Conecte-se com os alunos. Faça com que eles se sintam confortáveis em se abrir. "Mesmo que não saiba o que fazer, demonstre que se interessa pelo que têm a dizer. Se colocar nesse papel mais vulnerável faz toda a diferença."

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