Planejamento: como construir e desenvolver esse instrumento de forma mais assertiva?
Educadores e especialistas falam sobre os desafios de planejar e da importância de considerar os interesses e as necessidades da turma e de promover a reflexão e a participação ativa dos estudantes
POR: Nairim BernardoImagine que você está saindo de casa. No momento em que abre a porta, provavelmente você já sabe para onde vai, o transporte que irá utilizar, os caminhos possíveis e o tempo estimado do percurso, não é mesmo? Assim também deve ser o planejamento para os professores. “Quem não planeja onde chegar pode acabar indo para qualquer lugar. Já um professor com planejamento sabe qual habilidade quer alcançar [com a turma]. Os percursos podem variar, porque nem sempre a aula ocorre do jeito que pensamos, mas ele dá o início do trajeto e as direções possíveis”, comenta Guilherme Barboza De Fraga, professor de História dos anos finais do Ensino Fundamental na EMEF Rondônia, em Canoas (RS).
Entrar em uma sala de aula sem um planejamento pode gerar uma série de inseguranças no professor, que estará diante de alunos que esperam que ele dê as diretrizes do que fazer naquele encontro. O improviso também pode resultar em uma aula sem objetivos definidos e sem sintonia com a trajetória da turma. Consequentemente, perceber que o docente não se programou pode gerar dúvidas nos alunos, além de falta de confiança por parte da equipe pedagógica e das famílias.
Por mais que o professor tenha experiência, dar aulas sem planejamento não cria um elo de uma aula para outra. “É como jogar vários tijolos no chão de forma aleatória, [colocar] cimento em cima e achar que aquilo vai virar um muro. O tijolo pode ser ótimo, mas há etapas da construção a serem seguidas. Além disso, você aperfeiçoa a sua prática quando vê que o planejamento funcionou e quando identifica porque não funcionou”, diz Priscila Almeida, professora e integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA. Ela salienta que isso acontece não só no trabalho individual de cada professor, mas também no percurso escolar, quando a equipe não considera que um ano é a sequência e a consequência do que foi ou não desenvolvido antes.
Conceitos essenciais do planejamento
Planejar o ano letivo, cada bimestre e cada aula sempre foi uma necessidade pedagógica. Mas, em um período tão delicado como o atual, devido aos impactos causados pela pandemia e pelo ensino remoto na Educação, isso ganha ainda mais força. Ao retornarem para as aulas presenciais ou híbridas no final de 2020, algumas equipes já puderam, no reencontro com os alunos, perceber o quanto eles haviam avançado e quais eram suas maiores dificuldades. Agora, em 2022, é essencial pensar no trabalho que a escola deve desenvolver para ajudar os estudantes a alcançar as competências e habilidades previstas.
Nesse contexto, alguns conceitos se tornam ainda mais relevantes, como intencionalidade pedagógica e a centralidade do aluno no processo de ensino e aprendizagem, enquanto outros, como priorização e flexibilização curricular, passam a fazer parte da realidade das escolas de forma mais efetiva. Vamos retomá-los aqui:
Intencionalidade pedagógica: intervenção do educador com base em princípios e objetivos definidos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pelo currículo e pelo projeto político-pedagógico da escola. A intencionalidade permite que o professor atribua sentido à sua ação, sabendo o que, para quem, como e quando deve propor cada atividade.
Aluno no centro do processo: quando o aluno está no centro do processo de aprendizagem, ele desempenha um papel ativo na construção do seu conhecimento. Assim, o planejamento, as habilidades que serão priorizadas e o comportamento de todos os agentes da escola devem ter como foco garantir as condições necessárias para que essa aprendizagem aconteça de forma significativa para o estudante. A prioridade não é repassar conteúdos pré-estabelecidos, mas verificar constantemente as necessidades do estudante.
Priorização curricular: como nem todas as habilidades puderam ser desenvolvidas integralmente durante a pandemia, por uma série de dificuldades e impossibilidades no ensino remoto, é preciso mapear as aprendizagens essenciais a serem garantidas e reorganizadas. O desenvolvimento de todas as habilidades é importante, mas será preciso elencar prioridades.
Flexibilização curricular: o currículo contínuo permite que habilidades e conteúdos estabelecidos pela BNCC e pelos currículos estaduais e municipais, que não puderam ser contemplados, sejam retomados no ano seguinte.
O impacto do planejamento na aprendizagem
O primeiro passo para um bom planejamento é ter um olhar atento para os alunos, para a turma e para as características específicas da comunidade escolar. Mesmo que a coordenação receba uma proposta geral da secretaria de ensino, é preciso realizar adaptações para atender às necessidades de cada grupo. É essa visão cuidadosa que tem Carla Iara do Nascimento Garcia, professora da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental da rede municipal de São Joaquim da Barra (SP). “Além das aprendizagens essenciais, considero outros aspectos [no planejamento], que são as características e necessidades de cada grupo. O planejamento é importante na minha prática pedagógica porque ele é criado e alterado pelo contexto social em que a escola está inserida.”
Aqui, cabe outro paralelo com o exemplo de sair de casa e saber ou não para onde ir do início desta reportagem. A saída pode ser definida, por exemplo, pela necessidade (como ir ao trabalho) ou pelo recebimento de um convite (como ir à casa de um amigo). O mesmo acontece com o planejamento. Segundo a professora Carla, além das necessidades, também é importante considerar os interesses da turma. “[Os alunos] me perguntaram sobre a Ucrânia, e isso não estava no meu planejamento, mas achei um gancho para incluir o tema nas aulas, porque é um assunto atual e de interesse dos estudantes. Abrir espaço para o que acontece na comunidade e no mundo faz parte do meu planejamento, que é uma prática flexível. Não vou deixar de levantar um assunto sobre o qual o estudante quer saber.”
Em 2019, a BNCC entrou em vigor e evidenciou algumas mudanças de paradigmas que já eram discutidas há muitos anos na Educação, como a necessidade de focar o trabalho não nos conteúdos, mas em como e para que o estudante desenvolve habilidades e competências. “Viemos de um ensino conteudista, do qual é realmente difícil se desprender. Fazer essa mudança sozinho não é fácil. Tem que haver formações e trocas de saberes e experiências com os pares”, sugere Priscila Mello. “Hoje, os alunos podem acessar qualquer conhecimento com um clique, mas as competências para lidar com toda essa informação devem ser desenvolvidas na escola com a ajuda e mediação do professor.”
Aspectos cognitivos e socioemocionais
Considerando o período que sucedeu dois anos de pandemia e de ensino remoto e híbrido, as Secretarias de Educação e as escolas precisaram reorganizar o currículo por meio da flexibilização e da priorização curricular definindo assim o escopo de trabalho do professor. Mas, além das habilidades específicas de cada componente curricular, é essencial considerar as condições socioemocionais dos estudantes. Eles estão retornando para as aulas 100% presenciais após um longo período de isolamento, e muitos podem ter vivenciado perdas familiares e dificuldades socioeconômicas.
“A compreensão de que a escola é um ambiente propício para desenvolver várias habilidades vem ganhando força. O sujeito não é só cognitivo, é emocional e afetivo também, e isso é importante para ele se desenvolver plenamente. Na pandemia, muitas habilidades não foram bem desenvolvidas, mas outras foram. É preciso constatar isso para fazer intervenções e não ficar imobilizado diante da falta [das dificuldade de contato com os alunos, habilidades que não foram desenvolvidas]”, destaca Patrícia Rossi Torralba, doutora em Psicologia da Educação e professora do Instituto Singularidades.
Por isso, segundo a especialista, é importante que o professor contemple em seu planejamento estratégias e momentos para que os estudantes reflitam e compartilhem o que estão aprendendo e como. Caso os objetivos não sejam alcançados, ele e também o próprio aluno devem entender o porquê. Em alguns casos, a dificuldade pode ser uma consequência da falta de autogestão, de engajamento com os outros, de resiliência emocional ou de outras competências socioemocionais. O desenvolvimento dessas competências também precisa ser o foco da intencionalidade pedagógica de cada professor de acordo com a faixa etária da turma e o componente curricular. Esse trabalho precisa fazer parte do planejamento geral da escola, e não apenas de um docente específico.
Avaliar, planejar, avaliar
E, mais uma vez voltando à história da saída de casa, no trajeto para algum “lugar”, o ponto específico onde se está é que vai definir como chegar ao destino. Por exemplo, se você está no ponto de ônibus, basta pegar seu transporte. Se o ponto estiver a algumas ruas de distância, é preciso caminhar até lá. No caso do processo de ensino e aprendizagem, são as avaliações que indicam onde a turma está e quais ajustes o professor precisa fazer para seguir as aulas sem deixar ninguém para trás nessa viagem. Para isso, é importante realizar avaliações diagnósticas e processuais, pois é a partir dos resultados dessas avaliações que o professor vai fazer o seu planejamento e replanejamento.
O professor Guilherme, de Canoas (RS), conta que costuma realizar o planejamento reverso proposto por Grant Wiggins e Jay McTighe no livro Planejamento para a Compreensão: Alinhando Currículo, Avaliação e Ensino por Meio da Prática do Planejamento Reverso. “O planejamento já tem que ser feito pensando na avaliação. Não tem como ir fazendo as aulas sem pensar em como isso será avaliado lá na frente, pois aí você corre o risco de não conseguir definir ao longo das aulas uma maneira aceitável de mensurar se o aluno aprendeu ou não. A avaliação tem que ser contínua, não só uma prova no final.”
Ele explica que começa escolhendo uma habilidade da BNCC para desenvolver e verifica se ela já foi trabalhada em outros momentos. Depois, ele pensa quais evidências aceitáveis e suficientes poderiam garantir que o aluno atingiu a aprendizagem esperada. A partir disso, ele planeja as aulas e atividades. Na prática, uma mesma habilidade pode (e deve) resultar em planejamentos diferentes para cada turma. "Às vezes, na cabeça do professor, a atividade é super tranquila [de os alunos entenderem], mas, na prática, não é isso que acontece e ele tem que adaptar a aula. Ou planejamos a atividade para durar um determinado tempo, e a turma faz em menos ou mais, aí é preciso ter um plano B.”
Diferentes caminhos pedagógicos
No trajeto de um lugar para o outro, nem sempre o percurso que parece mais simples é o mais seguro e indicado para a pessoa e para quem a acompanha. Desse mesmo modo, o professor não pode se acomodar e reproduzir sempre os mesmos caminhos. Nesse sentido, considerar que o livro didático, a apostila ou qualquer outro instrumento único é, por si só, o planejamento, não leva em consideração o principal: as necessidades e desejos dos alunos.
Para Patrícia Torralba, o livro didático pode orientar o docente, mas quando é ele que dirige, o docente perde seu lugar de professor, de quem percebe o que acontece em sala de aula. “O professor tem que estar pronto para mudar a rota. Você não pode planejar e ir sozinho, sem considerar o outro. Quando você fica preso em um material, deixa de refletir sobre isso”, orienta a especialista. “Fala-se muito de aluno ativo, mas o professor também tem que ser ativo”, diz ela, referindo-se à necessidade de o docente buscar referências, metodologias e materiais diversos para favorecer a aprendizagem.
Dicas para um planejamento eficiente
A professora Carla Iara enfatiza a importância de os professores receberem formação e contarem com a parceria dos colegas para realizar um bom planejamento. “O planejamento da aula é do professor, mas o do ensino vem da escola toda. Nem tudo o que eu planejo dá certo, e se não dá certo eu tenho que debater aquilo com meus colegas de grupo”. Segundo ela, cabe à coordenação pedagógica promover formações continuadas para esse aprimoramento. “Quando o professor não é incentivado, tende a reproduzir sempre o mesmo planejamento.”
Outro risco é que cada um trabalhe individualmente, o que gera descompassos no trabalho do grupo. “Quando você não tem formação, você pode buscar conhecimento sozinho, o que é ótimo. Mas, sem uma mediação e referências adequadas, pode gerar interpretações erradas. Tem que haver troca de experiências entre os pares e compartilhamento de conhecimentos”, recomenda a professora.
A dica de Guilherme para planejar uma aula é rever aulas que já foram dadas sobre o mesmo tema. Para não cair em uma eterna repetição, é recomendado manter uma pasta ou caderno com os planejamentos escritos e comentados: o que foi de fato realizado, o que não foi, o que deu ou não certo e ideias de alteração. Entrar em grupos online de professores e seguir páginas específicas sobre sua etapa de ensino e componente também podem ajudar a descobrir novas atividades.
Referências sobre planejamento
Confira alguns conteúdos que podem ajudar na reflexão sobre a importância do planejamento e como colocá-lo em prática
Artigo: Como o retorno presencial abre espaço para repensar a escola
Reportagem: Avaliar para intervir: corrigindo rotas para avançar na aprendizagem
Artigo: Alfabetização: 9 dicas para dar os primeiros passos no planejamento 2022
Vídeo: Evento NOVA ESCOLA e Instituto Alana: O Planejamento na Educação Infantil
Curso online: Coordenador Pedagógico: do planejamento à formação
Curso online: Apoiando a equipe no replanejamento contínuo
Material: Competências socioemocionais para contextos de crise, do Instituto Ayrton Senna
Livro: Planejamento para a Compreensão: Alinhando Currículo, Avaliação e Ensino por Meio da Prática do Planejamento Reverso, de Grant Wiggins e Jay McTighe (Editora Penso).
Consultoria pedagógica: Priscila Almeida, professora e integrante do Time de Formadores de NOVA ESCOLA
Esta reportagem faz parte do Especial Planejamento. Confira aqui os demais conteúdos.
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