Questões de gênero: caminhos para abordar o assunto em sala de aula
Entenda como a temática pode (e deve) estar presente na escola para construir uma sociedade mais diversa e com mais equidade
POR: Paula SalasPaulo Freire defendia que “se a Educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Quando pensamos nas desigualdades de gênero, essa frase ganha ainda mais força. A escola sozinha não poderá resolver esse problema, mas ela é fundamental para gerar uma mudança.
Apenas a Educação permitirá formar as crianças e adolescentes que podem construir uma sociedade com mais equidade no futuro. “O trabalho da Educação é fundamental [para fazer a diferença e transformar a sociedade]. Mas, para isso, precisamos de formação continuada”, afirma Girleide Morais, professora do 2º ano do Ensino Fundamental no CEF [Centro de Ensino Fundamental] Boa Esperança, em Ceilândia (DF).
“Nosso trabalho tem de ser diferente do que fazíamos antes, temos de procurar nos atualizar [sobre questões e debates atuais]”, complementa a educadora.
“É preciso enxergar essas questões não como um tabu, mas como forma de pensar a diversidade de pessoas que temos na escola”, diz Leonardo Café, professor e formador na Secretaria Estadual do Distrito Federal, com especialidade em assuntos relacionados a gênero e diversidade sexual.
Os debates de gênero são muito mais complexos e envolvem diversos aspectos que vão além das desigualdades vivenciadas por mulheres. "É uma questão estrutural que afeta a sociedade como um todo. Como fazer da escola um lugar transformador e não um lugar reprodutor [de desigualdades de gênero]?", questiona Gabriela Mora, especialista em gênero e responsável pelos programas na área de desenvolvimento na adolescência do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
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Desconstrução de estereótipos e valorização da diversidade
A especialista do Unicef ressalta que é preciso ter sensibilidade para perceber como esses problemas estão presentes no cotidiano escolar para pensar em ações para combatê-los. Leonardo coloca a necessidade de questionar concepções que são naturalizadas. É essencial que os professores sejam preparados para abordar essas questões e que estejam abertos a buscar referências atuais sobre a temática para não reforçar estereótipos.
Para realizar esse trabalho, Gabriela sugere atividades que abrem espaço para a troca e discussão. “Rodas de conversa, cinedebate, músicas e o que faz parte do cotidiano dos estudantes”, exemplifica.
"Não levar algo pronto, mas trabalhar como uma construção coletiva. Conhecimento a gente constrói junto", destaca Sayonara Nogueira, professora de Geografia, ativista e idealizadora do Observatório Trans, que monitora dados de violência contra essa população.
Prezar pela diversidade deve estar presente não apenas em sala de aula, mas ser um pacto de toda a escola. Gabriela salienta que deve haver regras de convivência que valorizem as diferenças. “Não podemos depender de um professor ter sensibilidade para abordar o tema”, pontua. “Ter isso em um documento é muito importante, porque traz luz para questões que são silenciadas, vistas como tabu”, completa Leonardo sobre a importância da temática estar nas orientações das redes de ensino ou em materiais oficiais.
Qual é a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual?
Entenda os conceitos
Identidade de gênero está relacionada ao espectro de gênero com o qual a pessoa se identifica. Por exemplo, uma pessoa pode ser cis, trans, não-binária ou agênero.
Já a orientação sexual diz respeito a forma com que a pessoa se relaciona afetiva e sexualmente. Isso quer dizer, por exemplo, que uma mulher trans (identidade de gênero) pode ser heterossexual, homossexual, bissexual, assexual ou pansexual.
Veja a definição de alguns desses termos no glossário abaixo:
IDENTIDADE DE GÊNERO
Cisgênero: pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuido ao nascer, ou seja, seu sexo biológico. Ela pode ser uma mulher ou homem cis.
Transgênero: não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído. Dentro dessa categoria, estão aquelas que se identificam como mulheres ou homens trans e as travestis (sempre mulheres).
Não-binária: identifica-se com mais de um gênero. Geralmente, entendem sua identidade como algo fluido, que vai além das categorias homem e mulher.
Agênero: não se identificam com nenhum gênero.
ORIENTAÇÃO SEXUAL
Heterossexual: sentem-se atraidos(as) amorosa e sexualmente por pessoas do gênero oposto.
Homossexual: atraidos(as) por pessoas do mesmo gênero.
Bissexual: relaciona-se com pessoas dos dois gêneros.
Assexual: aqueles que não sentem atração sexual por nenhum dos dois gêneros. Dentro dessa categoria, existe um espectro da assexualidade.
Panssexual: atraem-se por pessoas independente do seu gênero - sejam homens ou mulheres cis/trans, agênero ou não-binárias.
Além de conhecer (e se aprofundar) nesses conceitos, é interessante estar atualizado nos debates contemporâneos de gênero – por exemplo, alunos trans têm direito a usarem o nome social na escola.
"Desde 2018, os estudantes trans podem requerer em qualquer momento do ano a mudança de nome. Menores de idade também podem fazê-lo, mas precisam do consentimento dos responsáveis", explica Leonardo Café.
Confira a seguir três relatos de professores que fazem esse trabalho no Ensino Fundamental.
Coletivo estudantil para debater e pensar em ações
Notícias de um grupo de homens que sequestrava e abusava sexualmente de meninas nos arredores da escola assustaram um grupo de alunas dos Anos Finais da EMEF Saint-Hilaire, em Porto Alegre (RS).
“Elas tinham medo de vir para a escola”, relata a professora Maria Gabriela Souza, responsável pela biblioteca. Foi assim que surgiu o projeto Chama Violeta, que teve como foco discutir a violência sexual contra adolescentes. A iniciativa é realizada por um grupo de meninas que fazem parte do Grupo de Mediador@s de leitura Luisa Marques.
A professora conta que as alunas queriam fazer um projeto para alertar sobre violência contra a mulher e pensaram em utilizar a literatura para tratar de assuntos ligados às questões de gênero e educação sexual.
“Na escola, apostamos na leitura como forma de possibilitar o diálogo de temas [considerados] delicados”, contextualiza a educadora que orienta o coletivo. “Vivemos em uma sociedade machista, e não tem ninguém para falar que nenhuma pessoa pode mexer em nosso corpo sem nosso consentimento, que isso é errado”, diz a aluna Joana Dorneles, de 12 anos, uma das idealizadoras do projeto.
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O grupo de leitura acabou se tornando um coletivo estudantil majoritariamente feminino. “Com a literatura, elas conseguem ter abertura para falar. Elas fazem essas conversas com as crianças, adolescentes e com os adultos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) [da escola]”, conta Maria Gabriela. A educadora vê que a forma lúdica com que elas abordam temas sensíveis e o fato de serem alunas propondo essa conversa facilita esse tipo de proposta.
Para a estudante Emilie dos Santos, de 12 anos, também idealizadora do projeto, os temas trazidos pelo grupo são importantes, pois às vezes é o único momento que o assunto vai ser conversado com aquelas crianças e adolescentes.
“Muitas vezes não é falado em casa, porque as pessoas ficam presas [no sentido de ainda ser um tabu] para falar de violência sexual. Grazieli Passos, de 12 anos, outra idealizadora do projeto, destaca o cuidado com cada público, para usar sempre palavras que eles consigam entender.
Estudantes protagonistas
O coletivo se reúne quatro vezes por semana no contraturno escolar para discutir temas e demandas do cotidiano das meninas e traçar ações. Entre os assuntos presentes nos encontros do grupo estão menstruação e pobreza menstrual, relações sexuais na adolescência, gravidez precoce, saúde mental e identidade de gênero.
"Temos buscado fazer rodas de conversa e ter abertura para o diálogo para que todos consigam mostrar quem são", relata a aluna Joana. “Queremos criar um espaço de acolhimento, de não invisibilizar, mas dar condições para que se expressem”.
A dedicação das meninas tem rendido bons frutos. Elas se tornaram lideranças dentro da escola, e o grupo é constantemente procurado por outras estudantes que também querem participar do coletivo. “Elas têm uma força, uma alteridade, colocam-se no lugar das outras meninas. É um diálogo horizontal, diferente de quando vem um especialista falar [sobre esses mesmos temas]”, explica a educadora.
Para ela, é importante que os professores procurem romper com os próprios tabus e preconceitos para poderem incentivar que os alunos falem de assuntos sensíveis. “Eu sou de uma geração que não podia falar desses temas, por isso eu defendo muito esse trabalho. É a esperança de um futuro em que elas não passem por constrangimentos, que estejam em espaços onde se sintam seguras”, acrescenta Maria Gabriela.
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Hoje, o Brasil está entre os países que mais mata pessoas trans, segundo o Transgender Europe (TGEU), organização sem fins lucrativos que monitora mais de 120 países. Dados divulgados pela Associação Nacional de Travesti e Transsexuais (Antra) revelam que, apenas em 2021, foram 140 assassinatos de pessoas trans.
“A escola deve ser um espaço de acolhimento e tem algo de errado quando é um lugar de violência", afirma Gabriela, do Unicef. Por isso, ela ressalta a necessidade de que os professores busquem informações e formações para garantir que todas e todos os estudantes sejam incluídos, que não tenham seus direitos violados. "É fundamental criar espaços seguros de escuta para que possam falar o que sentem.”
Sayonara teve a experiência de trabalhar a temática de forma interdisciplinar, em oficinas pedagógicas com rodas de conversas sobre alguns assuntos. "Os alunos traziam seus conhecimentos e, a partir disso, os professores podem trabalhar dentro de cada componente a temática", explica a professora.
Dentro do Observatório Trans, a professora compartilha ideias para abordar a temática. "A gente dá um norte para o professor pensar aquele tema para sua aula". Para realizar esse trabalho na prática, é fundamental a equipe escolar debater e estudar sobre o assunto e pensar em formas de levar a temática para os alunos..
A importância de tratar da questão desde cedo
Mas não é só entre os adolescentes que a temática deve ser trabalhada. Nos Anos Iniciais do Fundamental, ela pode (e deve) ser abordada também. A professora Girleide é prova disso.
"É um trabalho de sementinha. Não vai ter um reflexo amanhã, mas eles passam a refletir sobre isso, e eu percebo que tem dado resultado [que passaram a desconstruir a ideia do papel da mulher]”, conta a educadora. “Os mais velhos têm uma capacidade de comunicação e senso crítico maior, mas com os mais novos também é possível abordar a questão, mas de uma forma mais lúdica, por meio da brincadeira”, completa Gabriela.
Girleide utiliza vídeos, músicas e rodas de leitura para conversar sobre a temática. Na semana do Dia da Mulher, por exemplo, a professora levou histórias e reportagens de mulheres inspiradoras. “Passei vídeos sobre a Malala e a Frida Kahlo, entre outras. Depois fiz uma discussão de 15 minutos sobre o que assistiram.” Segundo ela, é importante preparar as crianças para conhecerem seus direitos. “Se passarem por alguma violência, vão saber falar, buscar ajuda e sair daquela situação.”
Além desse trabalho, o assunto está presente em outros momentos do ano, inclusive na hora das brincadeiras e jogos, quando não há distinção entre meninos e meninas.
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Ela lembra ainda de uma atividade que fez, no início do ano letivo, para falar da importância da identidade. Ela propôs que toda a turma desenhasse um ratinho a partir de orientações. “Cada um fez [um desenho] diferente, apesar de ser o mesmo comando. Eu levei as crianças a refletirem, olharem para si e se reconhecerem melhor. Elas passaram a ver que cada um tem características, desejos, vontades e tempos diferentes [e que é preciso respeitar todos].”
Quando há resistência das famílias
Mesmo no caso de questionamentos, é importante não deixar de lado o assunto. Entenda o que pode ser feito nessas situações
Ainda que se tenha abertura com os estudantes, é possível que venham questionamentos e resistência por parte das famílias. “Falar de Educação Sexual virou político, da tal 'ideologia de gênero'. É bem difícil”, afirma Denize Groff, professora de História na EMEF Maria Emília de Paula, em Sapiranga (RS).
Apesar disso, ela observa que os educadores têm respaldos legais, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e outros documentos orientadores que preveem esse trabalho. “Não estamos fazendo nada fora do que precisamos abordar, são temas necessários, mas sofremos desse impasse”, aponta a educadora. “Tem de conhecer as legislações nacionais e municipais para se respaldar”, sugere o professor Leonardo.
Em casos mais graves, como situações de assédio moral contra professores que abordam a temática, a professora e ativista Sayonara sugere procurar ouvidorias e canais de denúncia.
Tema de aula, de pesquisa e de projeto de lei
Na EMEF Maria Emília de Paula, nas aulas de Denize, a temática das mulheres é estudada em diferentes momentos. “Quando tratamos de História, sabemos que a sociedade é muito machista e patriarcal, por isso dá para falar desde os povos antigos até o Brasil República.”
Ela relata que, muitas vezes, o assunto parte dos próprios alunos. “No 6º ano, eu estava apresentando [a programação dos conteúdos do ano que iam ver] sobre a Grécia e Roma Antiga. As meninas falaram que queriam aprender sobre as mulheres”. Com esse pedido, combinamos que iam discutir a diferença entre ser mulher e homem naquelas civilizações”.
Outro exemplo que ela dá é no 9º ano ao tratar da República. “As meninas ficam muito indignadas quando falamos que só os homens podiam votar. Assim, elas percebem que as mulheres são subestimadas e conseguem fazer um paralelo com a casa delas, na divisão das tarefas domésticas. Elas trazem muito do dia a dia e como o passado ainda é presente.”
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Denize também conta que os alunos são estimulados a desenvolver projetos de iniciação científica a partir de temáticas que lhes interessam. Por debater o assunto em suas aulas, ela já foi convidada para orientar alguns desses trabalhos que traziam fortemente a temática de gênero.
Um deles é o projeto E se fosse com você? A pesquisa surgiu em um grupo de meninas do 7º ano, que queriam estudar questões ligadas a violência contra a mulher. No ano seguinte, elas continuaram desenvolvendo ações de conscientização sobre a temática. Até que chegaram a apresentar na Câmara Legislativa Municipal um projeto para garantir que a temática seja abordada na escola.
“Eram meninas novas [na época estavam no 8º ano] querendo falar com um grupo majoritariamente de homens. No início, não deram atenção, mas depois viram que elas estavam trabalhando há dois anos com o assunto e abriram espaço”, lembra a educadora. No fim, elas deixaram o seu legado: foi aprovada uma lei municipal para garantir esse debate em todas as escolas como forma de prevenção à violência contra a mulher.
Em 2020, quando elas estavam no 9º ano, deram continuidade ao trabalho de forma remota, com foco em violência doméstica e empoderamento. Foram realizadas rodas de conversa para debater a questão e organizados momentos só com os meninos, para que eles pudessem se expressar, e outros só com as meninas. Também foi criado um clube feminista na escola.
O trabalho foi ampliado para as turmas de Anos Iniciais. As meninas faziam rodas de leitura e atividades com os pequenos. “Trabalhamos muito a questão de mudar para o futuro ser mais promissor. Se as crianças forem educadas de forma diferente, é possível ter mais equidade”, finaliza Denize.
Pontos de atenção para realizar o trabalho
Leonardo Café e Gabriela Mora apontam cuidados para abordar e pensar a temática
“Como adultos de referência, é preciso estar atento a possíveis reproduções de desigualdades de gênero”, pontua a especialista do Unicef. “Temos de prestar atenção naquilo que parece natural, porque as violências [muitas vezes] estão naturalizadas. Silenciar episódios de violência na escola são práticas que colaboram com a manutenção da discriminação”, complementa Leonardo, que reforça a importância de buscar formação continuada para não reproduzir esses estereótipos.
Gabriela também destaca a necessidade de criar um espaço seguro para a escuta e o debate, mas alerta para a forma de acolher as vítimas. “É preciso ter cuidado para não revitimizar as vítimas ao serem escutadas, pois elas já o foram novamente ao refletir sobre a violência e que nada muda.”
Ela sugere atividades com diversas abordagens para dar espaço a perfis diferentes e estimular a expressão, criando um ambiente acolhedor para que todos possam falar de seus sentimentos e experiências. Isso inclui os meninos, pois eles são, socialmente, mais reprimidos emocionalmente. “Se temos masculinidades mais positivas, todo mundo ganha, e isso deve ser feito desde a primeira infância”, diz Gabriela. Se desde cedo os meninos são estimulados a se expressar, eles conseguem lidar melhor com os próprios sentimentos e podem prevenir ’explosões’ de raiva que resultem em respostas violentas
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