Educador Nota 10: quando o entorno dos alunos entra em cena
Três projetos vencedores do Prêmio Educador Nota 10, que envolvem contextos e componentes curriculares diferentes, evidenciam como a estratégia favorece o engajamento dos estudantes e o desenvolvimento de aprendizagens significativas
POR: Paula SalasAs aprendizagens vão muito além do universo da sala de aula. Por isso, quando os professores trazem para seu componente curricular o contexto em que os alunos estão inseridos, é possível engajar a turma, favorecer o desenvolvimento integral dos estudantes e contribuir para que se tornem cidadãos críticos e atuantes.
Sueli Furlan, chefe do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP) e selecionadora do Prêmio Educador Nota 10, reforça que os alunos são sujeitos que estão em contato com a realidade e as vivências dos espaços públicos pelos quais circulam, e, por isso, esses aspectos não podem ficar de fora das aulas. “Tudo que vivemos gera aprendizado, e o que se vive no entorno faz sentido em todas as idades. O que muda é a capacidade de compreensão dos estudantes, que vai ganhando complexidade”, afirma a especialista.
Essa premissa atravessa três projetos vencedores da 24ª edição do Prêmio Educador Nota 10, que considerou iniciativas realizadas durante a pandemia, entre 2020 e 2021. Em realidades e componentes diferentes, professores dos Anos Finais do Ensino Fundamental compartilham o percurso e os resultados que obtiveram e mostram como adaptar essas práticas para outros contextos e para o momento atual.
Andanças virtuais e nos quadrinhos
Desde antes da pandemia, Paulo Roberto Magalhães, professor de Geografia na EMEF Duque de Caxias, em São Paulo (SP), transformou o espaço da cidade, mais especificamente o bairro da escola, em objeto de estudo em suas aulas. Ele criou a iniciativa das aulas públicas, nas quais saía com os estudantes para conversar e refletir sobre aspectos da Geografia enquanto andavam pelo bairro do Glicério, no centro da capital paulista – a NOVA ESCOLA já acompanhou uma das atividades em 2018. “A grande pegada do meu projeto é os alunos se sentirem pertencentes à escola e à cidade”, resume o educador.
Mas, durante a crise causa pela Covid-19, ele se deparou com um grande problema: como desenvolver esse olhar para a cidade sem poder sair de casa? Então, ele recorreu à tecnologia. “Paulo é um professor com o pé fora da escola. Ele trabalha com a Geografia ativa, em que o presencial é essencial. No entanto, conseguiu reinventar a maneira de dialogar por meio de um programa de caminhadas virtuais e produção de quadrinhos”, aponta Sueli.
O professor utilizou fotos e vídeos de um trabalho anterior para adaptá-los ao formato de história em quadrinhos (algumas em vídeo). A ideia veio a partir de um pedido da turma. “Eu tinha um aluno que adorava Geografia e queria que eu mandasse imagens e desenhos”, relata. A partir disso, ele decidiu fazer testes e obteve resultados positivos. Para a adaptação, utilizou diversas ferramentas digitais, entre elas aplicativos de edição de imagens e vídeos, como Colorize, Comica e Comica Vídeo, ToonApp e Reface. Para que os alunos se vissem representados nas histórias, ele criou avatares e personagens para toda a turma.
Pelo Google Tour Creator, o educador elaborou caminhadas virtuais pela cidade. Também gravou vídeos dando aula pelas ruas com o apoio de outro professor. Ele destaca que os alunos com deficiência participaram de todas as etapas do projeto realizando as mesmas atividades que o restante da turma. O educador contou com a parceria dos professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE).
Com essas ações, Paulo Roberto desenvolveu de forma mais significativa tudo o que estava previsto pela Secretaria de Educação. Ele pôde abordar a história do bairro e os conteúdos previstos no currículo de São Paulo, como o trabalho com cartografia, mudanças na paisagem, dinâmicas populacionais, desigualdade social, processos migratórios e a questão da moradia, entre outros aspectos ligados à cidade. “O território está sempre presente no currículo, tudo pode ser trabalhado atrelado ao espaço. A partir do contexto dos alunos, podemos abordar diferentes componentes, valorizar a cidade e promover o sentimento de pertencimento ao lugar onde moram. Eles se sentem valorizados”, conclui o professor. Segundo ele, dois dos principais resultados obtidos com o projeto são o engajamento dos alunos e a permanência deles na escola.
Paulo Roberto Magalhães
Componente: Geografia
Etapa: Anos Finais do Fundamental (6º ano)
Projeto: A escola pulou o muro em vídeos e quadrinhos
Escola: EMEF Duque de Caxias, em São Paulo (SP)
Continuidade do projeto
Ainda hoje, o professor utiliza materiais que foram produzidos durante o período remoto. Ele também está explorando outras estratégias para ampliar o que foi construído, além de aproveitar a possibilidade de retomar a ocupação da cidade.
Para Sueli, com a volta ao modelo presencial, os avanços com o uso da tecnologia não devem ser esquecidos. “O que se aprende não se deixa de lado. Devemos continuar utilizando tecnologias que façam sentido para nossas propostas”, afirma. Esse trabalho com recursos digitais deve ser aliado aos esforços da recomposição de aprendizagens e à oferta de vivências que exigem estarem juntos presencialmente.
Sugestão para se inspirar
Para a selecionadora do Prêmio, há três aspectos que devem servir de inspiração: inclusão de todos os alunos como um princípio; planejamento que integra aprendizagens do componente curricular com uso de ferramentas digitais e participação dos alunos em todas as etapas e decisões.
Pesquisadores da história local
Em São Bento, zona rural do Maranhão, os alunos de Francilda Fonseca Machado, professora de História na EM Santa Bárbara, moram em regiões quilombolas. Durante o ensino remoto, ela sugeriu que os estudantes pesquisassem com as famílias ou pessoas próximas narrativas que falassem um pouco sobre aquela comunidade. “Nossa região não tem acesso à internet. Então, eu elaborei roteiros humanizados em que estabelecia uma conversa entre eles”, explica a educadora.
Nesse formato, ela propôs atividades que estimulam a investigação dos estudantes do 6º ano. “Após a leitura do material, eles passaram para uma parte de experimentação dentro do contexto do quintal de suas casas.”
Para dar repertório aos estudantes, a professora trouxe reflexões sobre fontes históricas, sugeriu leituras e apresentou aspectos importantes desses registros históricos. “Enviei um roteiro, e eles foram convidados a observar objetos que os pais utilizavam mais antes, e hoje usam menos”, conta. A partir dessa investigação, os alunos fizeram miniaturas de objetos antigos da comunidade, como relógio, pilão, chaleira e fita-cassete – como é possível ver na imagem abaixo. As produções foram entregues, e a docente montou uma exposição na escola para que todos entrassem em contato com a pesquisa e as fontes históricas descobertas pelos alunos.
Outro exemplo de pesquisa de campo foi quando, ao abordar os conteúdos de arqueologia, a educadora solicitou que eles fizessem uma escavação no quintal para encontrar vestígios de antigos habitantes. Eles encontraram rochas, restos de sandálias, raízes, conchas, entre outras peças.
Durante o percurso, mesmo que apenas por material impresso, os alunos faziam devolutivas das descobertas por textos, fotos ou desenhos. “A principal dificuldade foi a comunicação, mas, por meio de roteiros, estabelecemos uma forma de nos conhecer, de ter uma ligação [considerando que eram alunos que estavam entrando na escola]. Eu sempre dava devolutivas sobre o que eles entregavam. Então, apesar da distância, construímos esse vínculo.”
Francilda diz que ela também descobriu questões, objetos e práticas que desconhecia. “Foi muito importante ver como eles se tornaram autônomos. Por mais que tivessem o meu apoio [pelos roteiros enviados], eles eram protagonistas da busca pelo conhecimento.”
As últimas etapas do projeto foram realizadas durante a retomada gradual das aulas presenciais. “O espaço da pesquisa foi ampliado. Saímos das casas para olhar para o entorno da escola”, relata. “Estamos em uma realidade em que o acesso à pesquisa é difícil. Quanto mais eles conseguirem desenvolver essa pesquisa no próprio entorno, melhor.”
A valorização da história local e das narrativas familiares aproximou os pais e responsáveis da escola. “Hoje, os estudantes têm também um sentimento de pertencimento. A escola está em uma área remanescente quilombola, é uma história que está na família deles, e eles sentem a necessidade de conhecê-la. Eles estão com muita vontade de pesquisar, estão mais envolvidos. Também há uma maior presença dos responsáveis”, afirma a educadora.
Francilda Fonseca Machado
Componente: História
Etapa: Anos Finais do Fundamental (6º ano)
Projeto Meu quintal, meu campo de pesquisa
Escola: EM Santa Bárbara, em São Bento (MA)
Continuidade do projeto
Com a nova turma do 6º ano, a professora está utilizando as metodologias que usou no projeto com o mesmo propósito de valorizar o entorno: que os alunos vivenciem a História. Ela também ampliou o trabalho para todas as turmas dos Anos Finais. “Tudo que estudamos, depois eles pesquisam no entorno da escola ou levam para casa e trazem para a sala de aula”, comenta.
Com os estudantes que realizaram o projeto vencedor, que hoje estão no 7º ano, ela também deu continuidade às experiências de 2021. “Temos trabalhado com oficinas em sala de aula nas quais os próprios alunos são os oficineiros. Uma das que fizemos foi de abano [espécie de leque], que é um utensílio bastante usado nas comunidades. Dois alunos foram mediadores do conhecimento”, explica.
Sugestão para se inspirar
Francilda diz que o projeto pode ser adaptado para diferentes contextos. “Quando falamos de quintal, pode ser a vizinhança, o bairro. Há muitas oportunidades também para espaços urbanos.”
O essencial para ela está em conhecer os alunos e entender suas necessidades. “Trabalhar o pertencimento deles à realidade na qual estão inseridos. Professor e estudantes podem desvendar juntos. O educador se torna também pesquisador”, aponta.
Outro aspecto relevante é registrar esse percurso. “Quando construímos um registro de elementos que são importantes para nós, construímos nossa história.”
A ciência da cultura pop
Um pokémon da caatinga. Essa é a premissa por trás do projeto Um Ensaio Biocultural. O autor, Linaldo Luiz de Oliveira, professor de Ciências da Natureza na EMEF Iraci Rodrigues de Farias Melo, em Mogeiro (PB), pensou em aproximar o universo dos alunos do currículo. “Eu queria unir elementos culturais da cidade com aquilo que tirava a atenção deles da aula.”
Com isso em mente, ele levantou uma discussão sobre a diversidade natural que aparecia na série Cidade Invisível, produção brasileira disponível na Netflix. Em seguida, eles fizeram a leitura de artigos produzidos por cientistas da região, e o professor propôs que se tornassem pesquisadores para entender aspectos ligados à caça no local – atividade que está muito presente no contexto dos alunos. “Os caçadores eram pais, vizinhos e familiares dos alunos. Assim o contexto familiar começou a entrar no trabalho”, destaca.
Após as entrevistas, os alunos realizaram a análise dos dados. “Fizemos um aulão [por videochamada] com um professor de Matemática sobre porcentagem”, explica. Depois desse estudo, tiveram um encontro com um pesquisador, no qual puderam compartilhar e discutir o que haviam descoberto.
O projeto e a investigação da região não pararam por aí. O professor teve a ideia de relacionar um elemento popular entre os alunos com as suas aulas: Pokémon. Na franquia, as personagens são inspiradas em animais reais. Ele propôs então que os alunos desenvolvessem seus fakemons, nome dado aos personagens criados por fãs, baseados em animais da caatinga. “Cada um tinha uma ficha técnica. Eles precisavam me mostrar se tinham evolução, principais ataques, habitat, características reais e classificação biológica [filo, classe, ordem, família, gênero e espécie].”
Para divulgar as produções, os alunos foram divididos em “casas”, como no universo de Harry Potter, às quais chamaram de Crotaculus, Iguana e Plancus. “Eles criaram memes para divulgar dados reais e as criações”, relata. Essas criações foram digitalizadas e serão reunidas em um e-book. Todos os pokémons serão expostos no centro cultural da cidade.
A etapa inicial do projeto foi realizada de forma remota, com a parcela dos alunos que tinham acesso à internet. A outra parcela acompanhou o percurso com atividades impressas. Em agosto de 2021, os estudantes retornaram presencialmente de forma gradual, e o projeto continuou até o final do ano. “Essa contextualização fez com que eles se interessassem mais, porque estavam vendo coisas que viviam e tinham uma aplicação”, comenta o professor.
O engajamento, tanto no período remoto quanto no presencial, foi essencial para garantir as aprendizagens previstas no currículo e desenvolver outros tipos de competência. “O grande resultado foi o que isso gerou na vida deles. Eles se tornaram protagonistas, mais autônomos e criativos, conheceram mais a própria cultura e tomaram posse da própria identidade”, conta Linaldo.
Linaldo Luiz de Oliveira
Componente: Ciências da Natureza
Etapa: Anos Finais do Fundamental (9º ano)
Projeto: Um ensaio Biocultural
Escola: EMEF Iraci Rodrigues de Farias Melo, em Mogeiro (PB)
Continuidade do projeto
Hoje, o educador prevê adaptar o trabalho que fez no ensino remoto, mas dessa vez para estudar aspectos ligados à botânica, valorizando a diversidade regional. “Estudar a flora, as plantas locais, os remédios e chás que são produzidos pelas rezadeiras”, explica. No entanto, no lugar dos pokémons, será criado um herbário na escola.
Sugestão para se inspirar
O professor Linaldo considera que o trabalho pode ser replicado em qualquer realidade e, se possível, em parceria com mais componentes. “Tente investigar elementos da cultura local para inserir nesse contexto a aprendizagem da sala de aula”, recomenda.
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