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Independência do Brasil: como preparar boas aulas de História sobre o tema

Ouvimos três professores sobre a construção de propostas que incluem novos personagens e perspectivas e análise de imagens e documentos – e preparamos uma charge que pode ser usada em sala de aula

POR:
Victor Santos

Monumento à Independência, localizado em São Paulo (SP). Professores buscam, cada vez mais, impulsionar a reflexão crítica dos seus alunos a respeito das simbologias tradicionais relacionadas a esse fato histórico. Foto: Getty Images

“Acredito que o nosso papel, como professores de História, é tentar mostrar para os alunos que as interpretações sobre o passado mudam à medida que o nosso presente também muda”, aponta o professor Sinesio Andrade Silva, que atua nos Anos Finais do Ensino Fundamental na EM José Veríssimo, no Rio de Janeiro (RJ). “O interessante, então, é usar efemérides como o 7 de setembro para propor discussões sobre por que essa data se tornou referência. Será que nós temos de aceitá-la do mesmo modo que as pessoas lá no passado a construíram?”

O marco trazido pelo bicentenário da Independência do Brasil (1822-2022) tem ajudado a colocar em evidência muitas reflexões como essa, trazida pelo educador. Ainda em 2021, a 13ª edição da Olimpíada Nacional em História do Brasil teve como tema justamente os 200 anos do 7 de setembro, rendendo uma exposição online de mais de 1.500 trabalhos de estudantes de todo o país. Já neste ano, algumas produções audiovisuais buscam apresentar diferentes olhares sobre essa questão, como o podcast Projeto Querino, idealizado e apresentado pelo jornalista Tiago Rogero e produzido pela Rádio Novelo, e a minissérie Independências, dirigida por Luiz Fernando Carvalho e com exibição prevista na TV Cultura a partir de setembro de 2022.

Essas iniciativas lançam luz em algo que já ocorre há bastante tempo: o esforço, por parte dos historiadores brasileiros, de conduzir estudos e pesquisas que tragam perspectivas como a dos povos africanos e indígenas para o centro do debate, afastando-se da visão eurocêntrica que, por muito tempo, predominou na historiografia nacional. E essa discussão reverbera nas salas de aula. 

“Não só a História, como a Educação do século 21 no geral, tem esse desafio de trazer à tona falas e narrativas silenciadas ao longo do tempo. Tanto o 7 de setembro quanto outros fatos históricos foram construídos sob uma lógica bem colonizadora”, destaca a professora Roberta Duarte da Silva, que leciona para os Anos Finais do Fundamental nas EM Professor Silvio Romero Vieira e Dom Carlos Coelho, ambas em Jaboatão dos Guararapes (PE). “Cabe a nós, então, levarmos para a sala de aula um olhar mais descolonizado. E esse é um movimento que muitas vezes vai de encontro aos currículos, livros didáticos e outros materiais que utilizamos de suporte, sendo uma luta cotidiana e diária”, completa Roberta, que também faz parte do time de formadores da NOVA ESCOLA.

Possibilidades de trabalho e início do planejamento

O professor Guilherme Barboza de Fraga, que leciona História na EMEF Rondônia, em Canoas (RS), comenta que, para turmas do 6º ao 9º ano, é possível iniciar esse “olhar descolonizado” aos poucos. “Podemos abordar desde o início desse ciclo escolar questões como a África antes da escravidão e os povos originários da América Latina. No 7º ano, por exemplo, podemos desconstruir essa ideia de descobrimento do Brasil e ligá-lo às grandes navegações e à expansão marítima”, sugere. “É preciso fazê-los pensar que a forma como os europeus intervieram nessas localidades não significa que ali foi o início da História.”

Em relação especificamente à temática da Independência, os três professores acreditam que as atenções que o bicentenário está recebendo rendem, de fato, possibilidades de trabalho com toda a etapa dos Anos Finais do Fundamental. “Faz muito sentido levar para a sala de aula questões, problemas e situações que o aluno está acompanhando. Em anos como este, de aniversário da data, a escola pode planejar ações educativas para todos os anos”, diz Sinesio.

Para exemplificar, a professora Roberta diz que atualmente desenvolve com alunos do 6º ao 9º ano um projeto sobre a Revolução Pernambucana (1817). “Vamos fazer uma peça teatral revivendo esse movimento. Vamos mostrar como ele teve sua importância ao ajudar a introduzir a ideia de independência do Brasil em meio às discussões que ocorriam à época.”

Ao levar o assunto para as turmas, continua a educadora, é importante que o planejamento seja construído em cima das reflexões críticas que se espera que os estudantes atinjam. “Na lógica do planejamento reverso, começamos a planejar já pensando nos resultados que queremos obter e aonde queremos que o aluno chegue”, sintetiza Roberta. “Então, se quer que o aluno problematize essa data, olhe para o 7 de setembro e reflita sobre a questão da independência, da liberdade e da identidade cultural e social construída no período. Como fazer com que ele tenha esse olhar? Um dos caminhos é trazer as narrativas que foram silenciadas ao longo da História.”

Questionamentos iniciais e contextualizações

“Os alunos muitas vezes se assustam quando eu digo: ‘quem proclamou a Independência não foi um brasileiro, e sim um português que, inclusive, foi imperador no Brasil e depois rei em Portugal”, conta o professor Sinesio. “Curiosidades assim chamam a atenção deles na hora de começar a abordar esse assunto.”

Esse comentário ajuda a resumir alguns dos pontos cruciais indicados pelos educadores para consolidar propostas sobre a Independência: incluir boas questões disparadoras e realizar um trabalho amplo de contextualização histórica, se possível, apoiado por imagens.

“Gosto muito de trabalhar com fontes visuais. Nos Anos Finais, isso é particularmente atraente – deixo que as imagens conduzam a conversa e vou mais provocando do que respondendo”, afirma o professor Guilherme. Autor de planos de aulas da NOVA ESCOLA que tratam das independências na América Latina, ele diz que, tanto em sala de aula quanto em seu canal do YouTube, busca descrever a conjuntura brasileira em meio às emancipações políticas que já vinham ocorrendo nos países vizinhos.

“Procuro focar inicialmente na Independência do Haiti, com as imagens mostrando a revolta dos escravizados e os seus líderes, que são homens negros, o que já gera reflexões iniciais – uma pessoa negra ocupando essa posição de destaque, com trajes militares, em pleno final do século 18, é algo que causa um ‘susto’ inicial”, observa. Em seguida, ele busca mostrar murais de Diego Rivera (1886-1957) que ilustram elementos e grupos sociais ligados à Independência do México, e imagens de figuras como Simón Bolívar (1783-1830), Manuela Sáenz (1797-1856) e José de San Martín (1778-1850), pontuando como integraram processos que levaram a emancipações na América do Sul hispânica.

Como explica a professora Roberta, esse encadeamento de conjunturas também inclui acontecimentos históricos que já vinham causando abalos no território que viria a ser nosso futuro país. “É importante destacar lutas que já aconteciam anteriormente e que muitas vezes são minimizadas, como a Inconfidência Mineira (1789-1792) e a Conjuração Baiana (1798-1799). Esses movimentos já traziam à tona essa questão do Brasil independente, e a baiana lutou por pautas importantes como a abolição da escravatura.” Para o professor Guilherme, o apelo imagético desses dois movimentos também funciona na sala de aula. “É interessante exibir os quatro líderes da Conjuração Baiana, todos homens negros, e pedir que os estudantes os comparem com os que estavam à frente da revolta mineira.”

Imagens oficiais e charges

Como reforçam os três educadores, a simbologia que envolve o 7 de setembro é grande, e avançar nesse trabalho com elementos visuais permite análises, desconstruções e mesmo a apresentação de figuras não tão conhecidas. O pontapé inicial, segundo eles, pode ser o próprio quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo (1843-1905). “Essa imagem, muito difundida, é ‘a imagem’ quando pensamos em 7 de setembro. Então, trago-a para problematização com meus alunos”, conta Roberta. “Aconteceu daquela maneira? Quais personagens estão presentes nessa cena? Eles são representantes de toda a população? Negros e escravizados, que eram a maior parte da população, estavam onde? Questões como essas ajudam a evidenciar a ausência de participação popular e o silenciamento de quem ficou à margem desse processo e permitem que eles comecem a compreender a narrativa construída no quadro, pintado mais de sessenta anos depois da Independência.”

Dessa forma, é possível “desmontar” os elementos da cena ali retratada. “Antes de mostrar o quadro, comento que a Independência já havia sido assinada pelo conselho de estado sob o comando da [imperatriz] Leopoldina. Ela enviou uma carta ao seu marido, o então príncipe-regente Pedro I, que estava em viagem”, explica Guilherme. “Assim, ao verem a tela de Pedro Américo, vêm as perguntas: ‘Por que uma espada, se ele tinha recebido uma carta com o documento assinado pela esposa?’. Aos poucos, os alunos vão captando a imagem heroica construída do homem levantando a espada em defesa dos interesses nacionais.”

Conforme as respostas dos alunos e as interações, salienta a professora Roberta, é possível avançar ainda mais nas reflexões. “Até que eles entendam que esse foi um movimento construído pela elite e que as pautas discutidas foram voltadas para esse grupo. Itens como a abolição da escravidão não foram abordados e nem mesmo um outro tipo de modelo de governo, porque tudo ali atendia aos interesses da elite colonial brasileira, nessa transição para Império.”

As charges também podem ser úteis no sentido de perceber o viés elitista e excludente que envolve o 7 de setembro. “Tem uma que costumo mostrar, com dois homens comemorando a Independência e uma mãe com uma criança no cantinho”, lembra o educador Guilherme. “Aí a criança pergunta: ‘O que é a Independência?’. E a mãe diz que ‘deve ser um novo produto inglês’.” Para apoiar o seu trabalho reflexivo em sala de aula sobre a Independência do Brasil, a NOVA ESCOLA elaborou uma charge exclusiva que pode ser utilizada com os seus alunos. 

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Análise de documentos

A abordagem imagética aparece também como estratégia para apresentar personagens e acontecimentos desconhecidos de boa parte dos estudantes. “A participação das mulheres é pouco trabalhada e precisa ser mais explorada”, reforça o professor Guilherme. “Trago imagens como a Maria Quitéria vestida de soldado nas lutas de Independência na Bahia, além da pernambucana Barbara de Alencar, da mineira Barbara Heliodora e da baiana Maria Filipa de Oliveira.”

A figura de Maria Quitéria, inclusive, se relaciona com o fato de que a Independência do Brasil envolveu muitas lutas. “É crucial mostrar que não foi só o Grito do Ipiranga. Houve um processo em julho de 1825, na Bahia, com a participação de várias camadas da sociedade em lutas armadas, e teve a Batalha do Jenipapo no Piauí, entre outras lutas em diferentes localidades.” É nesse momento que, segundo o educador, é possível transitar das imagens para a análise de documentos. Em uma experiência recente, ele montou um mural online com a turma usando o Padlet, que mesclou imagens, pesquisa em diferentes fontes e reflexões sobre esses personagens invisibilizados e batalhas que se seguiram ao 7 de setembro.

Para o professor Sinesio, esse caminho de estimular o contato dos alunos com a pesquisa em documentos históricos rende oportunidades de aprendizagem potentes. Ele conta que o site do Arquivo Nacional disponibiliza documentos digitalizados, e alguns se relacionam com as guerras de Independência. Há imagens da Maria Quitéria e mesmo cartas. “Gosto de pensar como brincar com essas coisas. Por exemplo, ao pegar uma carta, ou um documento da época, e pedir para os alunos a decifrarem, dá para ir sentindo a turma e, se estiver difícil, decodificar parte da carta para eles. Às vezes eles reclamam dizendo: ‘Mas tem de ler nessa letrinha aqui?’. E eu digo: ‘É, nessa letrinha aí mesmo’”, diverte-se, ao recordar. “O interessante é essa oportunidade de colocá-los em contato com aquilo que o historiador faz, como a leitura e a interpretação de documentos.”

Olhar crítico e relação com o presente

Pelos relatos dos educadores, ficam notórias as muitas camadas de reflexão, que atingem diferentes simbologias, que permeiam o ensino da Independência do Brasil. “É importante enfatizar que não houve unanimidade, o que houve foi sangue. Ela se consolidou por meio de conflitos armados dos quais a família real saiu vitoriosa”, pontua o professor Sinesio. “E isso se reflete até mesmo no verde e amarelo da bandeira brasileira, que são cores de famílias nobres europeias. A narrativa de que o amarelo representa nossas riquezas [como o ouro] e o verde nossas florestas é apenas uma releitura republicana.”

O educador Guilherme também realça que é interessante puxar essa constatação de que a bandeira republicana atual possui apenas ligeiras modificações em relação à do Império. “Então, vale questionar o que de fato mudou depois de 1825, quando foi reconhecida pelos portugueses. O que melhorou na vida do povo? Porque, na prática, não houve transformações substanciais na vida da população: a escravidão permaneceu, assim como a concentração fundiária e a desigualdade social. Isso permite refletir sobre a ideia de construção desses 200 anos.”

Assim, a chave, segundo os professores, é conduzir reflexões que dialoguem com aquilo que ocorreu em 1822. “Gosto de pedir que os alunos imaginem esse mesmo processo de independência acontecendo atualmente, como se o Brasil ainda fosse colônia”, indica Roberta. “Como acham que esse movimento aconteceria? Como seria a participação popular? Quais atores seriam coadjuvantes? Vejo essa como uma boa maneira de fazê-los refletir, criar conexões e ir além, quem sabe até imaginando outros cenários.”

De acordo com ela, é preciso trazer criticidade para que essa data seja cada vez mais trabalhada de outras maneiras, que vão além do discurso cívico-militar, e com outros tipos de homenagens, discussões e pautas. “É necessário descolonizar esses fatos históricos consagrados e entender como essas narrativas estão inseridas em contextos mais complexos, como o do racismo estrutural que ocorre no Brasil até hoje.”

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