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A BNCC e o construtivismo dialogam?

A Base não fala sobre como ensinar, mas é possível interpretá-la e trabalhar com as competências e as habilidades considerando a perspectiva piagetiana

POR:
Beatriz Vichessi
Ilustração: Luli Tolentino

Especialistas são claros e diretos ao responder a essa questão: não existe uma só linha da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que fale sobre construtivismo. Ela não assume nenhuma metodologia, não trata do “como” ensinar. Cabe às redes de ensino e às escolas selecionarem e utilizarem metodologias e estratégias didático-pedagógicas para alcançar o objetivo final: a aprendizagem e o desenvolvimento integral de todas as crianças e adolescentes.

Em resumo, o documento diz “o que” tem de ser contemplado durante toda a Educação Básica. Por isso, não há como cravar que a BNCC é construtivista. Mas agora vamos entender se há margem para trabalhar com essa perspectiva de ensino de forma alinhada ao documento.

 

 

 

O que é o construtivismo?

Definir o que é o construtivismo de forma segura, clara e compreensível é difícil, apesar de esse ser um termo fortemente usado em Educação. “Construtivismo não é um método de ensino, é uma forma de ler e interpretar o mundo”, diz Lino de Macedo, docente emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e autor do artigo O construtivismo e sua função educacional.

O biólogo suíço Jean Piaget dedicou sua vida para estudar o processo de aquisição de conhecimento pelo ser humano com crianças de quatro a 12 anos – e não buscou desenvolver uma metodologia de ensino. “A preocupação dele esteve focada na observação da qualidade do desempenho das crianças frente a uma ação proposta”, explica Lino. Piaget é um dos estudiosos que inspirou o construtivismo, ao lado de Lev Vygotsky e Henri Wallon.

“O construtivismo é uma teoria de aprendizagem que considera o sujeito como um ser ativo no processo de construção do conhecimento, por meio de experiências e interações com o objeto do conhecimento e na relação e interação com outros sujeitos. Para isso, ele precisa vivenciar situações significativas, colocando em jogo tudo o que sabe para construir um novo saber. Ou seja, nessa concepção, o conhecimento é construído e não transferido”, explica Sidecleia dos Anjos, formadora do Time de Formadores da NOVA ESCOLA e consultora pedagógica desta reportagem.

Evidentemente, as palavras de Piaget também são importantes para compreender o termo: “No construtivismo o conhecimento só pode ter o estatuto da correspondência, da equivalência, e não da identidade”. Isso quer dizer que, na perspectiva construtivista, por exemplo, podemos entender que a criança já sabe escrever desde o primeiro dia que se propõe a fazer isso, ainda que esse saber tenha muitos aperfeiçoamentos a serem conquistados para ser considerado a escrita convencional.

Dizer que o sujeito constrói o seu próprio conhecimento a partir das interações não significa que os alunos aprendem sozinhos e, por isso, o professor deve deixá-los soltos para aprenderem o que quiserem e como quiserem. Essa é uma percepção enraizada no imaginário de muitas pessoas que ainda não compreenderam o conceito da teoria construtivista.

Pelo contrário, é essencial que o professor construtivista expresse muita competência ao ensinar e avalie os estudantes constantemente, pois, na construção da aprendizagem, a mediação de um sujeito mais experiente é fundamental. É necessário que o docente identifique o que o aluno já consegue realizar, o que já sabe, e trace bons caminhos e boas intervenções para que ele alcance um nível superior de conhecimento. O papel do professor no construtivismo é essencial para o sucesso da construção de uma aprendizagem sólida.

O que marca mais profundamente a diferença entre o educador com perfil construtivista e aquele mais conteudista, tradicional, é que o primeiro entende e aceita o erro como parte do processo de construção da aprendizagem. No que diz respeito à rotina em sala de aula, ele não trabalha transmitindo conteúdos para depois cobrar a turma nem espera respostas que repitam as mesmas palavras utilizadas na aula ou encontradas no livro didático. “O educador construtivista discute com as crianças, faz perguntas inteligentes, apresenta situações-problemas, ajuda a turma a formular hipóteses, sistematiza a aprendizagem e o tempo todo avalia o percurso, as conquistas da turma”, diz Lino. Nesta reportagem, saiba mais sobre mitos e verdades a respeito do construtivismo.

 

 

É possível encontrar abordagem construtivista na BNCC?

Para os especialistas consultados pela NOVA ESCOLA, é possível enxergar trechos da BNCC que dialogam com a perspectiva construtivista. Tudo depende de quem lê o documento e da concepção de ensino e aprendizagem adotada.

A complexidade dessa pergunta pode ser entendida ao analisar os trechos relacionados à alfabetização. A Base dá ênfase ao uso de textos reais, que circulam na sociedade, inseridos nas práticas sociais – aspecto que faz coro com a perspectiva construtivista, tal como consta nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). No entanto, é essencial olhar para outros pontos antes de afirmar que o documento privilegia essa abordagem. Enquanto os PCN assumiram claramente a perspectiva construtivista, a BNCC tem um conjunto de habilidades focadas no desenvolvimento da consciência fonológica também, o que aponta, por sua vez, para atividades específicas para pensar o sistema de escrita.

“São habilidades que também dialogam com o construtivismo, desde que desenvolvidas em atividades que fazem os alunos investigarem o sistema de escrita”, explica Maria José da Nóbrega, mestre em Filologia e Língua Portuguesa e assessora pedagógica. Dentre essas habilidades, estão as que trabalham com listas de palavras para a turma pensar sobre a ortografia – por exemplo, sobre o uso do R e do RR.

A crítica de muitos especialistas construtivistas sobre o trabalho com a consciência fonológica é que o aluno “sai” do texto para explorar palavras fora dele, soltas. No entanto, de acordo com Maria José, essas situações são legítimas. “Você parte do texto, sai dele para fazer uma investigação focada em algum tema que tenha significado para as crianças, e volta ao texto para seguir com os estudos”, explica. Essas saídas, inclusive, segundo ela, às vezes são inevitáveis porque os textos trabalhados em sala nem sempre reúnem o que o professor precisa discutir com os estudantes. “Não faz sentido forçar uma situação, usar um texto irreal, sem uso social, daqueles criados pela escola, para trabalhar a questão que se quer estudar”, explica Maria José.

Ao olhar para o documento de forma integral, de acordo com Lino, ele revela que as competências elencadas têm valor para a vida toda e não só para alcançar a etapa seguinte da escolaridade. “Ele dialoga com o construtivismo quando propõe competências e habilidades que tem a ver com algo muito maior que a vida escolar”, diz o especialista.

O documento também valoriza propostas que motivam e engajam os alunos nas aprendizagens. “Isso combina com o espírito construtivista”, afirma Lino. Piaget criava situações-problemas visando conhecer o que a criança pensava sobre determinado assunto e a deixava explorar, se colocar. A mesma crítica positiva vale para o fato de o documento propor que o educador seja um bom promotor de rodas de conversa e de debates, a fim de estimular os estudantes a pesquisar, estudar e buscar o conhecimento.

Em todo o texto, nota-se que a BNCC, tal como a perspectiva construtivista, também valoriza muito a formação docente e a centralidade do aluno. Desmancha-se a ideia de que o professor sabe tudo e o aluno não. “Está claro que os estudantes sabem muitas coisas e o professor não sabe tudo, está sempre em aperfeiçoamento, pesquisando”, destaca Lino. 

Priscila Mello Almeida, professora da EMEB Professor Milton Soares de Camargo, em Tietê (SP), conta que trabalhar dessa maneira ainda não é algo trivial para grande parte dos educadores. “A forma de planejar muda, a gestão da sala de aula é outra também. Há quem tenha medo de perder o controle da turma porque o aluno fica no centro de tudo”, fala a docente.

 

 

Trabalhar com habilidades é ser construtivista?

Uma das grandes novidades da BNCC é a proposta de desenvolvimento de habilidades e competências pelos alunos – sem focar nos conteúdos que devem estar contemplados a cada ano. “Algo muito novo ainda na educação brasileira, que requer investimento em formação docente e olhar atento para proporcionar experiências de aprendizagem potentes para os alunos alcançarem as habilidades, são as ações realizadas pelos estudantes que os fazem chegar até elas”, diz Sidecleia Anjos, formadora do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (Icep) e membro do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.

Mas, se fizermos uma leitura mais conservadora do documento, é possível ler a BNCC e trabalhar centrando-se em conteúdos. Por exemplo, ao explorar cada habilidade como uma etapa a ser vencida e deixada para trás, como se ela fosse o suficiente, o famoso jeito “lição dada, lição aprendida”.

Em contraposição, na perspectiva construtivista, é preciso trabalhar as habilidades de forma conjunta, de modo que umas estejam atreladas às outras. “Pressupõe-se a ideia de as competências serem desenvolvidas progressivamente, ao longo dos anos, com várias propostas pedagógicas para conjuntos de habilidades”, afirma Maria Alice Junqueira de Almeida, coordenadora de programas e projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Mais que uma somatória de aprendizagens, nessa progressão, o esperado é que saberes sejam entrelaçados e complementares.

No momento atual, quando as redes estão voltadas para a recomposição das aprendizagens, vale chamar a atenção para as habilidades que estão sendo chamadas prioritárias. “O trabalho com elas, somente, não basta. É apenas para este momento emergencial”, explica Maria Alice. Essa priorização curricular, que elencou as aprendizagens essenciais, está relacionada com a flexibilização curricular e o currículo contínuo sancionado durante a pandemia.

 

E os campos de experiência da Educação Infantil?

Para o trabalho com bebês e crianças, a BNCC propõe cinco campos de experiências, nos quais os pequenos podem aprender e se desenvolver. Em uma primeira leitura, a ideia de “experiência” dialoga diretamente com o construtivismo. No entanto, Lino explica que simplesmente proporcionar experiências não basta para desenvolver um trabalho à luz do construtivismo.

O educador pode convidar a turma a experimentar mas ficar restrito à experiência, como se ela se bastasse por si. “Se considerarmos as ideias de Piaget, não pode ser assim. Ele tem de ir além com as crianças, fazer a leitura da experiência”, explica Lino. Em outras palavras, isso quer dizer recuperar, digerir, discutir e interpretar a experiência. No texto de Piaget, tem a ver com abstração.

Na prática, isso quer dizer que, ao propor experiências com água, a escola não pode ficar restrita às propostas de sentir e de observar. As crianças precisam ser convidadas a entender mais sobre aquele elemento. Por exemplo, que o gelo se transforma em líquido com o passar do tempo e que a água evapora se exposta ao calor. É assim que os pequenos passam a desenvolver aprendizagens a partir das experiências e brincadeiras propostas pelo professor.

Consultoria pedagógica: Sidecleia dos Anjos, formadora do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.