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Como pensar em um currículo para 2023 que considere os desafios atuais?

Apesar do fim do continuum curricular, muitas escolas ainda precisarão criar estratégias para recompor as aprendizagens e garantir o direito de todos à Educação

POR:
Ingrid Yurie
Foto: Getty Images

Embora o continuum curricular tenha se encerrado em 2022, muitas escolas e redes de ensino terão de seguir desenvolvendo e implementando estratégias para atender às diferentes demandas das turmas. “Trabalhamos intensamente para que as crianças aprendessem no ensino remoto, mas não foi o suficiente por uma série de razões, e o período presencial que tivemos desde então também não deu conta de recompor todas as aprendizagens”, diz Marlucia Brandão, diretora da EMEF Professora Laurea Freire Brumana, em Marataízes (ES). “Por isso, vamos continuar com a flexibilização do currículo neste ano para que as crianças possam avançar na trajetória escolar.”

Vigente entre 2020 e 2022, o continuum curricular foi uma política pública proposta pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) que permitiu a priorização de habilidades e competências essenciais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e seu desenvolvimento ao longo desse biênio, flexibilizando os currículos das redes e garantindo um desenvolvimento contínuo das aprendizagens dos estudantes. Seu objetivo era dar conta dos impactos do ensino remoto emergencial, como as aprendizagens que não aconteceram ou não se consolidaram remotamente. 

“Foi uma política importante para que as escolas criassem estratégias para recompor aprendizagens e não penalizassem as crianças com uma possível retenção”, avalia Amábile Pacios, presidente da Câmara da Educação Básica do CNE e vice-presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP). 

Agora, o esforço para recompor e promover aprendizagens, levando em conta a bagagem dos alunos, precisa continuar. Isso não significa, contudo, fazer mais do mesmo. “Podemos aproveitar este momento para pensar um currículo que não seja conteudista, mas que desenvolva os estudantes integralmente e permita que eles sejam autônomos, com seus projetos de vida, colocando em prática a BNCC”, aponta Mozart Ramos Neves, diretor de Articulação e Inovação do Instituto Ayrton Senna e ex-membro do CNE. 

Como estruturar o currículo para 2023?

Bruna Albieri Cruz da Silva, coordenadora pedagógica na EMEF Maria Chaparro Costa, da rede municipal de Bauru (SP), conta que para 2023 foi preparado um currículo ancorado na BNCC e no currículo da cidade, mas com espaço para alterações. O plano é acolher os alunos e promover um diagnóstico das turmas logo no início do ano letivo para, então, voltar ao documento e adaptá-lo às demandas identificadas. “Temos liberdade para trabalhar em cima do que o estudante realmente precisa, com flexibilização. Assim, conseguimos avançar mais onde é possível e retomar o que é necessário.” 

Adotar essa postura diante do currículo, que privilegia o estudante e seus conhecimentos, também é a recomendação do professor Francisco Thiago Silva, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Ele é responsável pela formulação do chamado currículo de transição, que pensa a Educação no pós-pandemia pautada no papel social da escola pública de democratizar o acesso ao conhecimento a todas e todos. “O currículo de transição propõe adaptar toda a organização do trabalho pedagógico de acordo com o contexto de cada escola: desde a busca ativa até repensar tempos, espaços e metodologias de trabalho e implantar formas de avaliação mais humanas. É respeitar a singularidade, a subjetividade de cada espaço escolar”, explica o docente. 

Francisco Thiago reforça que não se trata de um currículo mínimo, mas de priorizar o que não foi trabalhado com as turmas e aproveitar o que rendeu nas aulas remotas e engajou os alunos para recompor as aprendizagens. Metodologias ativas e uma interdisciplinaridade estruturante, transversal e presente ao longo de todo o ano também estão entre as recomendações. “Um dos maiores desafios é garantir a autoria curricular, ou seja, que cada escola tenha seu próprio currículo com o DNA pedagógico da instituição. Ele também deve reverberar em práticas mais humanizadas, ainda que o documento seja norteado pela BNCC, pelas Diretrizes e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais”, destaca o especialista. 

Diferentes necessidades e realidades

Outro ponto importante, segundo Francisco Thiago, é criar um currículo que dê conta de turmas de um mesmo ano com níveis de aprendizagem muito diferentes entre si e entre os estudantes de cada uma. “É preciso descobrir, por meio de provas, sondagens e conversas com os alunos e com as famílias, como foi o período da pandemia, como está a consolidação dos conteúdos essenciais daquele ano e o que os estudantes não conseguiram aprender. E, então, trazer tudo isso para o currículo”, indica. 

Para lidar com esse cenário de desigualdades de aprendizagem, comum nas escolas, mas agravado desde o início da pandemia, a coordenadora Bruna comenta que os professores vêm propondo diferentes planejamentos para uma mesma turma. Assim, o mesmo conteúdo é trabalhado com a turma toda, mas com objetivos pedagógicos diferentes para cada grupo de estudantes, de acordo com suas necessidades. Também são usados materiais e atividades complementares específicos. 

Para a diretora Marlucia, durante todo esse processo, é importante garantir que os alunos não sejam responsabilizados por suas defasagens. “Se tiver uma turma com menos carga de conhecimento do que a outra, não é [o caso de] olhar para ela como a que não sabe, a que vai dar trabalho, mas a que vai precisar de mais apoio e cuidado de toda a escola”, orienta. Ela também ressalta a necessidade de avaliar o desenvolvimento de cada um de diferentes formas e em momentos variados, e não esperar o final do período para corrigir rotas e promover aprendizagens. 

No planejamento do currículo, Mozart convoca os educadores a ir além do que já sabem fazer e refletir sobre o que faz sentido manter e onde há espaço para mudanças. “O ano de 2023 é de experimentação, trazer a pesquisa-ação, fazer com que os estudantes trabalhem em grupo e busquem soluções para problemas reais, fora da escola, com criatividade, pensamento crítico e uso de tecnologias digitais. Tudo isso conectado às aprendizagens curriculares e ao desenvolvimento integral”, sugere. 

Trabalho em equipe para um currículo significativo

Para que um currículo ganhe vida na escola e efetivamente seja implementado, é essencial que seja construído coletivamente, por toda a comunidade escolar, inclusive as famílias. Para tanto, é possível reservar algumas datas para rodas de conversa e pequenas reuniões para apresentar as ideias iniciais e ouvir a opinião de todas e todos sobre a proposta, as dúvidas e o que gostariam de acrescentar. Fazer perguntas mais específicas, como pedir indicação de livros para as aulas de Língua Portuguesa ou questionar qual problema do bairro seria interessante a escola abordar, pode ajudar a incentivar a participação de todos. 

“Além do trabalho colaborativo para construir o currículo no começo do ano, temos diálogo constante com os professores no dia a dia para acompanhar como estão as aulas e o desenvolvimento dos estudantes”, afirma a coordenadora pedagógica Bruna. “A elaboração do currículo não pode se encerrar só nesse planejamento inicial, pois faz parte de implementá-lo estar perto dos docentes o tempo todo para intervir e apoiá-los.” 

Nesse processo, vale incentivar que eles troquem experiências, que expressem seus desejos e receios e que formem grupos para se auxiliarem ao longo do ano, independentemente da área e do ano para o qual lecionam. “Isso proporciona a oportunidade de um currículo interdisciplinar, que articule conhecimentos de Biologia e Geografia, por exemplo”, acrescenta Mozart. “Para ter essa visão integrada do todo, é preciso que os professores trabalhem juntos, criem pontes entre os temas que vão abordar e pensem em maneiras criativas de levar isso para as turmas.”