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Como combater o racismo na escola e o que fazer em casos de violência

Enfrentamento à discriminação contribui para combater discursos de ódio que permeiam a sociedade e estão por trás de ataques violentos às escolas

POR:
Ingrid Yurie

Ainda que a responsabilidade de enfrentar o racismo seja de toda a sociedade, a escola pode cumprir um papel importante nesse sentido. Foto: Getty Images

O ataque a uma creche em Blumenau (SC), ocorrido no último dia 5 de abril, apenas uma semana após o atentado na EE Thomázia Montoro, em São Paulo (SP), atualiza a triste estatística: 11 dos 24 ataques contra escolas registrados no Brasil nas últimas duas décadas aconteceram entre o segundo semestre de 2022 e agora.

Os dados compõem o relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental”, publicado em dezembro de 2022, no âmbito da transição governamental para a gestão Lula-Alckmin. O documento esmiúça a escalada da violência e explica que a guerra ideológica fundamenta grupos que promovem ataques a escolas, marcados pelo racismo contra as populações negra e indígena, o discurso de ódio contra pessoas LGBTQIAP+ e a misoginia.

Ao que tudo indica, uma semana antes do ataque à EE Thomázia Montoro, o agressor usou termos racistas em uma briga que supostamente teria sido pivô do ataque que sucedeu. No centro deste e de outros ataques à comunidade escolar, é comum que os agressores estejam ligados a fóruns online de disseminação de discursos de ódio, da cultura da violência e da desumanização do diferente.

Uma das facetas desse complexo cenário envolve ainda o alinhamento de alguns fatores importantes, como a censura e perseguição a professores, que o Brasil vive há anos, e o fechamento das escolas durante a pandemia.

“Por um lado, o Escola Sem Partido e outros movimentos para combater a abordagem de temáticas sociais nas salas de aula, como o racismo, fragilizaram esse trabalho importante dos professores. Por outro, temos o avanço das pautas e de discursos neoconservadores no Brasil e os estudantes, por dois anos, fechados em casa, sem poderem circular por outros conjuntos de argumentos e valores democráticos”, observa Luis Felipe da Silva Nóbrega, coordenador do Centro de Mídias Educacionais de Volta Redonda (RJ) e diretor da EM Walmir de Freitas Monteiro, na mesma cidade.

Sanderli Bomfim, pedagoga especialista em Relações Interpessoais na Escola e a Construção da Autonomia Moral, que se dedica a pesquisar racismo e adesão a valores morais entre adolescentes, concorda: “Assistimos, principalmente nos últimos anos, à ascensão da cultura da violência e à validação dessa postura em que o armamento é valorizado e quem pensa diferente não vem para dialogar, mas para ser exterminado. O outro é adversário. A escola, feita das mesmas pessoas dessa sociedade, reverbera esse extremismo”.

Visando combater a escalada da violência contra as escolas, nesta quinta, 6 de abril, o Governo Federal anunciou a criação de um Grupo de Trabalho interministerial. Coordenado pelo Ministério da Educação, o GT apresentará um conjunto de medidas para conscientizar a população e prevenir mais casos de ataque.

Ainda que a responsabilidade por enfrentar o racismo seja de toda a sociedade e que demande o respaldo de políticas públicas, a escola pode cumprir um papel importante nesse sentido, formando os sujeitos para a vida cidadã e democrática.

Racismo na Educação: o papel da escola para a solução

No Brasil, o racismo é estrutural e institucional. Isso significa reconhecer que todos que nascem imersos nessa cultura e nessa linguagem estão sujeitos a reproduzir e renovar essa violência. É por isso que a filósofa norte-americana Angela Davis diz que “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”, no sentido de que é necessário um esforço ativo contra essa violência tão entremeada ao nosso cotidiano.

“Reconhecer o racismo é o primeiro passo. Depois, é preciso uma educação em valores éticos, para a convivência e as relações étnico-raciais. Não somos todos iguais, e que bom, porque assim podemos celebrar essa diferença e crescer com essas trocas, formando uma sociedade mais equitativa e respeitosa”, diz Sanderli.

Isso envolve repensar coletivamente tudo o que constitui uma escola. Tem a ver com garantir condições de trabalho para os professores, representatividade e proporcionalidade no quadro de contratação de pessoas negras, sobretudo nos cargos de gestão, e atenção especial à garantia dos demais direitos dos estudantes, contando com a rede de proteção intersetorial para tanto.

Também passa por promover a gestão democrática e construir o Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola a partir da escuta dos estudantes, professores e familiares e do território, a fim de que aquele espaço tenha sentido para a comunidade.

No que cabe ao trabalho pedagógico, diz respeito a repensar o currículo e os materiais oferecidos aos estudantes. Este ano, a Lei 10.639, uma das que compõem o arcabouço legal de combate ao racismo na Educação, completou 20 anos. Ela aponta que apresentar as contribuições passadas e atuais dos povos negros e afro-brasileiros para o conhecimento humano e para a construção da sociedade brasileira é uma das formas de garantir que os estudantes tenham uma visão mais ampla do que nos constitui.

“Toda criança e todo adolescente têm direito a uma Educação de qualidade e inclusiva, baseada no reconhecimento e na valorização da identidade, da história e da cultura dos diversos povos que ajudaram a formar nossa sociedade multiétnica e multirracial”, diz o documento Indicadores da Qualidade na Educação: Relações Raciais na Escola, elaborado pela Ação Educativa, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e outras instituições.

Sanderli ressalta ainda que esse trabalho não pode ser pontual e se restringir a um único docente. Ele deve envolver a todos de forma interdisciplinar. “Deve ser um plano anual, feito de forma coletiva, sensível, que engaje professores, profissionais, famílias e estudantes”, orienta.

Por que não minimizar situações de racismo na escola

Ainda que o racismo seja um problema estrutural, é por meio das pessoas que ele se sustenta – nas falas, mas também nos não ditos, ações e negligências. Isso demanda da escola atenção a todas as relações que se estabelecem e a tomada das medidas necessárias para cada conflito que acontece. Esse trabalho é fundamental para deter as violências verbais e comportamentais e para que elas não escalem para as agressões físicas.

Nessa empreitada, também é preciso pensar a relação entre bullying e racismo. Sanderli explica que há diferenças e sobreposições. Ambos têm a intenção de ferir o outro e são violências graves. Mas o bullying acontece obrigatoriamente entre pares, é sistemático, de um mesmo autor para uma mesma vítima ou pequeno grupo e costuma acontecer longe dos olhos dos adultos.

Já o racismo, basta que aconteça uma vez para que se configure como tal. Pode partir dos adultos, acontece muitas vezes na frente dos outros e, ainda que se queira ofender uma pessoa específica, é mais uma ferida que se abre em toda uma população.

“Toda vez que uma criança negra sofre racismo, as consequências para ela são terríveis. Sua dignidade e sua subjetividade são feridas. Mas não apenas: é todo um coletivo de pessoas, é toda essa ancestralidade que é atingida”, dimensiona Fátima Santana, educadora da rede pública de Lauro de Freitas (BA).

Práticas efetivas no combate ao racismo

Conheça ações de escolas que expressam formas de combater o racismo na sociedade e na Educação. Créditos: Getty Images

Na EM Walmir de Freitas Monteiro, onde Luis Felipe é diretor, as agressões verbais e físicas entre os estudantes se mostraram especialmente acentuadas após a reabertura da unidade. “Notamos muitos conflitos de cunho racista, misógino, gordofóbico e afins”, relata.

Para encarar a situação, propuseram debates transdisciplinares sobre intolerância religiosa, capacitismo, questões de gênero e outras temáticas ligadas aos direitos humanos. “Já que isso poderia ecoar na comunidade de uma forma que não desejávamos, convidamos as famílias para a conversa”, diz o gestor escolar em referência à perseguição a educadores que abordam esses temas.

Além de sensibilizar os adultos e levar informações confiáveis acerca desse trabalho, contribuindo para a formação cidadã de todos, a escola também tem a oportunidade de reafirmar que o trabalho pedagógico é ancorado em um robusto conjunto de leis – um direito dos estudantes.

É nessa perspectiva de formação das crianças junto às suas famílias que há uma década o CMEI Dr. Djalma Ramos, em Lauro de Freitas, trabalha. “Este ano, por exemplo, estamos trabalhando com a cantora Larissa Luz [grande representante da música negra contemporânea] e convidamos as famílias para falar sobre quem é ela”, conta Fátima Santana, coordenadora pedagógica da unidade e mestra em Ensino das Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

“É um caminho que encontramos para formar os adultos, porque não adianta abordar o tema só com as crianças, ainda que quando perguntam a elas o que aprenderam na escola hoje, elas contem com suas próprias palavras conceitos que remetem aos ensinamentos de Nilma Lino Gomes e bell hooks, impactando diretamente toda a sociedade”, explica a educadora.

Quando chegou à escola em 2013, contudo, o cenário era outro. “Havia uma proposta pedagógica embranquecida em meio a um território de negritude”, relata. Teve início, então, um processo de escuta dessa comunidade e reformulação de sua forma de trabalhar, com quase toda a metodologia criada pelas próprias educadoras.

Assim, passaram a abordar os direitos de aprendizagem das crianças por meio, por exemplo, da vida e obra de Riachão, sambista baiano, e da confecção de uma boneca da escritora Carolina Maria de Jesus, que visitou as casas de cada uma das crianças com suas histórias.

“Uma mãe chegou a vir à escola para saber quem era essa tal de Carolina, porque a filha só falava dela. Fica muito evidente a importância de trazer as pessoas negras nessa perspectiva positiva”, explica Fátima.

Os avanços no CMEI nesta década de trabalho foram significativos. Hoje, é parte da cultura da escola que as crianças se elogiem com frequência, os conflitos diminuíram e há mais identificação com os brinquedos afirmativos – aqueles que representam a diversidade característica de nossa sociedade. “Também criamos um coletivo de professoras pretas para nos fortalecer. Hoje somos quatro com mestrado e uma com doutorado”, comemora a educadora.

O conjunto de ações retratado por essas duas escolas expressam formas de combater o racismo na sociedade e na Educação, bem como de prevenir que a violência aconteça no ambiente educacional. Ainda assim, nada confere à escola um caráter antirracista permanente e nem imune a casos de racismo entre os estudantes.

“Aqui fazemos um policiamento ostensivo do racismo e sempre informamos [os casos] às famílias. Se acontece uma vez, fazemos uma roda de conversa. Na segunda vez, levamos a discussão para a turma, e nunca precisamos passar desse ponto”, relata Luis Felipe.

Vale lembrar que quando nos referimos a crianças e adolescentes, dizemos que eles “reproduzem o racismo”, e não que “são racistas”. Isso serve para enfatizar que ninguém nasce com preconceitos raciais, mas que isso é ensinado a partir do convívio com outras pessoas. Também contribui para destacar que a Educação pode ajudar a evitar que eles se tornem adultos, aí sim, efetivamente racistas.

Quando um caso de discriminação acontece entre os estudantes, a orientação é parar tudo e endereçar a questão junto a todos os envolvidos. “Eu aposto no diálogo, só não pode deixar passar. É [necessário] reunir o grupo e discutir. Depois, fazer um planejamento das aulas a partir desse ponto”, indica Fátima.

Os especialistas também recomendam acolher a vítima em primeiro lugar, nomeando que se trata de um caso de racismo e que isso será cuidado. Em relação ao agressor, é aconselhado explicar o que é racismo e provocá-lo a indagar-se sobre a motivação deste ato e o mal causado diretamente à vitima, mas também a toda a comunidade negra. “Não adianta só suspender o aluno”, afirma Sanderli.

Ambas as famílias devem ser avisadas, e é preciso dar especial atenção aos responsáveis pela vítima. Na condução desse processo, não cabe incluir professores negros que não estavam presentes no momento só pelo fato de serem negros, e vale o cuidado de perguntar aos envolvidos se desejam permanecer.

Quando o racismo vem da equipe escolar

Práticas racistas também são exercidas por professores e outros integrantes da equipe escolar. Elas podem aparecer de maneira sutil, como acontece no “racismo moderno”, conceito estudado por Sanderli, que trata da violência que não é expressa por falas diretas, como xingamentos, mas por meio de ideias e posturas como “ser contra cotas, achar que existe racismo reverso, que racismo é coisa do passado e até na noção de meritocracia”.

Assim, as escolas devem formar também seu quadro docente e de outros profissionais para as relações étnico-raciais. “É muito interessante porque nessas conversas também aparecem a homofobia, a gordofobia e a xenofobia, que precisam ser abordadas”, destaca Fátima.

Mas o diálogo tem limite: “Algumas coisas podemos conversar, mas em outras a Lei deve ser aplicada”, pontua Luis Felipe. No Brasil, racismo e injúria racial são crimes e podem levar à prisão por até cinco anos. O primeiro trata da discriminação de uma etnia em geral, por exemplo, negar o acesso à escola por motivo relacionado à raça. O segundo diz respeito a ofender outra pessoa usando elementos de sua raça, etnia, cor, origem ou religião.

O que fazer diante de ameaças

O relatório “O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil” indica atenção a estudantes que demonstram um interesse incomum por assuntos violentos (tais como obsessão por armas de fogo ou massacres), atitudes violentas (verbais ou físicas), recusa de falar com mulheres, agressividade e uso de expressões pejorativas ao falar com mulheres e meninas, capacitismo, racismo, LGBTQIAP+fobia e exaltação a ataques em ambientes educacionais ou religiosos.

Também vale formar os pares para estarem atentos a esses comportamentos fora da escola, como nas redes sociais.

Se a escola desconfia que algo não vai bem com um estudante, é necessário agir coletivamente para que a responsabilidade não recaia sobre uma única pessoa. O primeiro passo é entrar em contato com a família imediatamente e avisar a Secretaria de Educação para buscar apoio e orientações.

Se a família se mostrar indiferente ou se o caso avançar para uma ameaça, a polícia e o Ministério Público devem ser envolvidos. Se pessoas específicas forem ameaçadas, elas também devem ser avisadas e afastadas da escola. “É preciso fazer de tudo para abortar o ataque, nem que isso envolva passar por cima de protocolos e burocracias demoradas. Tem de agir na hora”, reforça Sanderli.