Qual é o papel da escola na formação de leitores?
O Dia do Livro é apenas uma das oportunidades para refletir sobre boas práticas de leitura literária
POR: Bruno MazzocoCrianças lendo pelo simples prazer de entrar em contato com histórias e personagens é uma cena quase diária na Educação Infantil. Ao longo das etapas escolares, a prática vai rareando até se restringir a algumas aulas de Língua Portuguesa, principalmente nos Anos Finais do Ensino Fundamental. “Curiosamente, quando entra o professor especialista, o livro perde espaço. É um paradoxo”, diz Marcelo Ganzela, coordenador da licenciatura em Letras do Instituto Singularidades.
Celebrado no dia 23 de abril, o Dia Mundial do Livro é uma boa ocasião para pensar sobre atividades de leitura literária, afinal ela tem papel fundamental na formação de cidadãos conscientes e críticos. O texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) diz que a leitura literária amplia o repertório dos estudantes para que eles possam fruir do prazer da leitura, “reconhecer na arte formas de crítica cultural e política” e entrar em contato com diferentes visões de mundo.
“A capacidade de fabular está mais presente no universo literário”, diz a professora de Língua Portuguesa Ana Cláudia Santos, na EE Padre Paulo, em Santo Antônio do Monte (MG). “A leitura permite ir além da experiência cotidiana. Cada um interpreta a partir de suas vivências, e, quando a turma compartilha as interpretações, se alargam os horizontes de todos.”
O número de leitores de literatura vem caindo ao longo dos anos, como mostram a primeira e a última sondagens da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelos institutos Pró-Livro e Itaú Cultural. Em 2007, os leitores eram 55% da população; em 2020, 52%. Segundo critérios da pesquisa, para ser enquadrado na categoria “leitor”, bastaria ter lido um livro inteiro ou em partes nos três meses anteriores à resposta. Se a definição de leitor fosse mais ambiciosa, o percentual seria ainda menor.
Garantia de acesso aos livros
A mesma pesquisa traz números sobre a importância da escola para a formação do comportamento leitor. Entre os entrevistados considerados leitores, dois dos principais motivos para não ter lido mais – depois de fatores subjetivos como falta de tempo, preferência por outras atividades, falta de paciência e cansaço – são o preço do livro e a falta de acesso a bibliotecas.
Denise Guilherme, consultora em projetos de leitura e professora do curso de pós-graduação em literatura do Instituto Vera Cruz, destaca que as políticas de aquisição de títulos ampliaram o acesso ao livro na escola nos últimos 30 anos. Mas pondera que ainda há muito que avançar. “No geral, a escolha dos livros se orienta por questões temáticas e não por critérios literários”, observa.
Segundo a especialista, o prazer de ler vem da competência. “Quanto mais eu sei, mais eu sinto prazer”, diz Denise. Ganzela, do Singularidades, ressalta que, além do desenvolvimento de habilidades, a leitura literária na escola desperta os estudantes para o papel das artes. “O objetivo é formar pessoas que consigam se conectar com a literatura e, a partir daí, refletir sobre sua própria vida e sobre a condição humana.”
Para muitos estudantes, a escola é o principal – quando não o único – local de acesso aos livros. Além disso, nem todas as famílias conseguem introduzir as crianças no universo da leitura de forma adequada. “No Brasil, formar leitores deve ser uma tarefa da escola. Temos milhões de crianças filhas de mães solo. Não dá para imaginar que essas mulheres trabalham o dia todo para sustentar a família e ainda conseguem tempo e energia para ler com seus filhos”, afirma Denise.
Estímulo planejado à leitura
Para assumir esse protagonismo e inserir os estudantes no universo leitor, a escola deve se organizar para que o trabalho de leitura seja constante e se torne mais complexo ao longo do processo de escolarização.
A leitura na Educação Infantil ajuda na formação de vocabulário e na construção das frases. “Crianças muito pequenas que têm contato com livros começam a falar de uma forma muito mais organizada”, afirma Denise. Com o tempo, elas também percebem as diferenças entre a narrativa oral de histórias – que têm variações, acréscimos e omissões – e o livro escrito, que é uma obra finalizada e impressa, ou seja, permanece sempre igual.
No ciclo de alfabetização, o foco do trabalho docente é que os estudantes percebam a estruturação da língua para pensar o que e como escrever. As atividades de leitura compartilhada têm o potencial de evidenciar as regularidades da língua.
Na visão da professora Ana Cláudia, é ao longo do Ensino Fundamental que se consolida o gosto dos alunos pela literatura. Essa sedução pode partir, nos primeiros anos, de uma opinião qualificada sobre determinada obra. Mais do que dizer se gostam ou não da história, os estudantes devem ser estimulados a observar aspectos de linguagem, temática e enredo para basear suas opiniões.
Depois, à medida que os anos avançam, é possível aprofundar esses tópicos e acrescentar pontos como tipos de narrador, construção de personagens e foco narrativo, em atividades que vão da leitura compartilhada à produção de resumos e resenhas críticas.
Em qualquer etapa, oferecer diversidade literária aos estudantes é fundamental para alcançar o objetivo maior: o desenvolvimento do gosto pela literatura e o estímulo ao pensamento crítico. “Precisamos quebrar a predominância de autores homens e brancos nas listas de obras estudadas”, afirma Ganzela. “A literatura deve oferecer a diversidade da experiência humana”, completa Denise. Para ela, além da origem etnossocial dos autores, é importante variar gêneros, formatos, narradores e conflitos.
Para apresentar esse farto cardápio aos estudantes, é preciso que o professor seja um leitor literário proficiente e que se paute pela intencionalidade pedagógica.
A chave pode estar em definir o que se pretende trabalhar com determinado título. Além disso, conhecer a turma é fundamental. “É preciso saber o que eles são capazes de ler para oferecer um desafio adequado. Não adianta colocar Grande Sertão: Veredas para um grupo que está acostumado a ler Crepúsculo”, diz Ganzela.
O professor recomenda também que os professores estejam ligados nas temáticas sensíveis do mundo contemporâneo e no entorno dos estudantes na hora de planejar. Assuntos do momento ou questões fundamentais podem ser discutidos com a turma e servir como ponto de partida para a escolha de títulos.
Três dicas para se tornar um professor leitor
Dominar a leitura é questão de prática, mas isso não significa que a melhor estratégia seja montar uma lista enorme de livros para ler no menor tempo possível. Vale a mesma lógica usada para propor atividades na escola: o desafio deve ser condizente com o estágio de fluência leitora. Siga estas dicas para formar ou aprofundar seus hábitos de leitura:
1) Inicie com leituras curtas
“As crônicas são um bom começo, pois são curtas e geralmente dialogam com a nossa época”, resume a professora Ana Cláudia Santos;
2) Busque temáticas familiares
Ao ler um conto ou romance sobre um assunto que já conhecemos ou dominamos, a tarefa se torna menos árdua e podemos prestar atenção em diferentes aspectos da obra;
3) Compartilhe suas impressões com alguém
Ao relatar nossas experiências de leitura, somos levados a organizar e a consolidar nossos pensamentos. Ao trocar ideias com alguém que leu a mesma obra, podemos matizar e enriquecer nossas opiniões. Uma ótima sugestão é montar um clube de leitura durante a formação em serviço.
A construção de um currículo literário
Tendo em vista a importância da escola para a formação de leitores, políticas de acesso à literatura, como o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), têm papel essencial na construção do acervo das bibliotecas escolares. Mas isso é apenas o começo. Das medidas ao alcance de professores e gestores, a constituição de um currículo literário faz muita diferença na organização pedagógica.
“O currículo literário é um conjunto de escolhas que definem práticas de leitura partindo de perguntas: que leitor formar? Quais os melhores títulos para chegar aos objetivos estabelecidos? Quais práticas de leitura e escrita podem contribuir para isso?”, explica Denise. Para chegar a essas prioridades, a especialista sugere que a escola defina percursos que nortearão o trabalho ao longo dos anos. “Se a ideia for abordar os tipos de narrador, pode-se começar com obras com narradores convencionais, depois o narrador que 'conversa' com o leitor, o narrador não confiável, que engana o leitor, e assim por diante”, completa.
“Esse é um currículo de aproximação dos estudantes com o livro. Tem muita aula de literatura em que se fala tudo sobre o autor e o contexto, mas não se lê nada do autor. O currículo literário privilegia o contato com o texto”, diz Ganzela.
No ensaio O direito à literatura, o sociólogo e crítico literário Antonio Candido indaga se a literatura poderia ser colocada ao lado de necessidades básicas como alimentação, moradia, saúde e Educação. Ele conclui que sim, pois “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”, e a elenca como uma necessidade universal, que precisa ser satisfeita. Portanto, vale a pena o esforço dos educadores para garantir esse direito.
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