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Caminhos para promover a cultura de paz nas escolas

Espaço para diálogo e o cultivo da resiliência e da empatia são elementos-chave para que toda a comunidade escolar conviva de forma íntegra e respeitosa

POR:
Beatriz Vichessi

A cultura de paz tem espaço para ser construída pela comunidade escolar quando são priorizados o educar para atitudes e valores morais e éticos e a construção de um cenário inclusivo.

Os ataques às escolas em São Paulo e em Blumenau, entre o fim de março e o início de abril deste ano, reacenderam o debate sobre a importância de fomentar a cultura de paz nas escolas. Quando abordamos esse tema, compreender o panorama mundial faz muito sentido. Isso porque coloca em evidência algo muito precioso: o diálogo, que deve pautar as relações entre as pessoas.

A busca pela paz é tão antiga quanto a existência de confrontos interpessoais – partindo da ideia de que há conflitos quando alguém tenta impor ao outro a sua percepção ou aspiração e, sobretudo, se o fizer de maneira rude, intimidadora ou ameaçadora, entrando na esfera da luta e do abuso de poder.

É possível entender melhor a busca pela paz entre os países ao estudar a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, após a Segunda Guerra Mundial. A entidade tem, desde a sua fundação, o objetivo de unir todas as nações do mundo em prol da paz e do desenvolvimento, com base nos princípios de justiça e dignidade humana e no bem-estar de todos. Ela incentiva que os países procurem soluções em conjunto para os desafios globais, preservando os interesses e as soberanias nacionais. Assim, é possível sintetizar a ONU em uma palavra: diálogo.

“A cultura de paz, a cooperação e a empatia fazem parte da nossa biologia desde os primórdios. Os seres humanos vivem e precisam viver em colaboração, criando vínculos de amor”, afirma Laura Gorresio Roizman, autora do livro Paz, como se faz? Semeando cultura de paz nas escolas (Unesco e Palas Athena, 2021).

A cultura de paz

A cultura de paz tem espaço para ser construída pela comunidade escolar quando são priorizadas a construção e a vivência em um cenário inclusivo, o educar para atitudes e valores morais e éticos e o movimento de engajamento contra a violência. E na escola não faltam oportunidades para trabalhar tudo isso.

“A sala de aula não pode ser mais só o lugar para o aprendizado linear e quantitativo. Ela é um espaço de acolhimento para superar a realidade de violência e de desamor que estamos enfrentando no mundo, para conversar e aprender a conviver e desenvolver qualidades socioafetivas e a resiliência”, diz Laura. 

Segundo ela, ao ampliar as competências da escola para além do ensino de conteúdos curriculares, dá-se a chance de os estudantes se expressarem, se sentirem pertencentes a grupos saudáveis, despertarem seus potenciais e se desenvolverem como sujeitos autônomos, criativos, sensíveis à realidade do outro e não violentos. Ao mesmo tempo, é preciso pôr fim ao que ainda resta na escola relacionado à submissão, ao autoritarismo e à obediência passiva, o que cala crianças e jovens, afastando o interesse deles em fazer parte da comunidade escolar.

Como instaurar a paz nas escolas?

Essa não é uma pergunta fácil de ser respondida se estivermos à espera de soluções simples e de retornos imediatos. Luciene Tognetta, pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem - Unicamp/Unesp), aponta que não podemos desistir de encontrar respostas para a questão e nos darmos por satisfeitos, aceitando somente medidas de contenção para combater a violência, achando que elas bastam a longo prazo e que é possível seguir assim, com medo e sob policiamento constante.

Se assim fizermos, estaremos somente adiando os problemas e, como já disse claramente Telma Vinha, coordenadora do Gepem, depois do ataque à escola paulistana EE Thomázia Montoro: “vai acontecer de novo, só não se sabe onde”.

A boa notícia é que atualmente temos em voga na Educação brasileira a promoção de uma série de elementos que corroboram a cultura de paz: a valorização da gestão democrática, a promoção do protagonismo estudantil e as próprias competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Entre essas competências, algumas destacam o desenvolvimento da comunicação, o autoconhecimento, o autocuidado, a empatia, a cooperação, a responsabilidade e a cidadania.

Roda de conversa restaurativa

Outra ferramenta que tem estado cada vez mais presente nas escolas para promover a cultura de paz é a roda de conversa restaurativa, em que as partes são ouvidas após um confronto. Essa prática empodera, responsabiliza e sensibiliza não só agressor e vítima como todos que participam do momento. No círculo restaurativo, todos ocupam a mesma posição, falam e ouvem, olham e são olhados. E têm como centro o conflito a ser resolvido de forma pacífica, respeitosa, criando uma nova rede de significados. 

“Só quando escutamos e somos escutados é que entendemos e somos entendidos”, ressalta Maria Helena Marques, chefe do departamento pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de Santos (SP), que tem a justiça restaurativa como política pública desde 2017.

Ela explica que a formação de educadores sobre justiça restaurativa e o trabalho com os círculos restaurativos imprimem à escola seu papel de laboratório de cidadania, uma oportunidade para enxergar a legitimidade do outro. “A escola é o lugar por excelência para isso porque é o primeiro espaço do qual a criança participa depois da família.”

Para além do dia, semana ou mês da paz

Eventos pontuais não bastam para desenvolver uma Educação para a paz

Ações que celebram o dia, a semana ou o mês da paz são importantes e válidas para a sensibilização inicial da comunidade escolar, mas não suficientes para desenvolver uma Educação para a paz, segundo Nádia Maria Freire, coordenadora do Grupo de Estudos Educação para a Paz e Tolerância (Geepaz), da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Sobre isso, vale recorrer ao que disse Jean Piaget, que à luz de sua época escreveu sobre o tema: “a verdadeira Educação para a paz deve consistir não em um simples ensino das ideias pacifistas”.

Para Luciene Tognetta, do Gepem, a sociedade em geral ainda tem um conceito de paz muito romântico. De acordo com ela, a chave para aprofundar o que se entende e se vivencia como paz é compreender sobre a tolerância como virtude moral e sobre a dignidade humana.

“O conceito de moral precisa ser retomado nas escolas, conforme o professor Yves de La Taille [professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)] tem dito”, reforça Luciene. “É preciso promover discussões sobre o real, sobre a escolha de ser um sujeito moralmente autônomo [que, ao tomar decisões, leva em consideração as próprias perspectivas e também as dos outros, seus sentimentos e direitos], além de conversar sobre questões morais como arrependimento, vergonha, admiração, autoconhecimento e responsabilidade.”

Tudo isso faz com que alunos, professores e toda a comunidade escolar possa pensar sobre o que regula nossa existência. “Precisamos de um currículo que preze a convivência, que expresse intencionalmente o conteúdo moral a ser trabalhado em sala de aula”, diz Luciene. Isso pode ser feito, por exemplo, valorizando discussões e reflexões sobre temas que permitem explorar o assunto, com enredos literários, acontecimentos históricos e questões da ciência e da geopolítica, não encerrando, assim, os conteúdos curriculares em si mesmos.

Paz construída na prática e a longo prazo

Em Santos, no litoral paulista, conflitos e confrontos nas escolas não são varridos para debaixo do tapete. A Secretaria Municipal de Educação conta com mais de 80 professores formados em justiça restaurativa, além de cinco educadores que atuam como facilitadores volantes e visitam escolas da rede quando acionados.

“Temos também parceria com os grêmios de escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos (EJA) e damos palestras sobre bullying, de modo que esses alunos passam a ser multiplicadores depois”, conta Fabíola Barcelos Grilo, coordenadora do Programa de Justiça Restaurativa do Núcleo de Educação para Paz da Secretaria Municipal de Educação de Santos. Ela explica que a rede investe na cultura do diálogo, do acolhimento. “É isso o que às vezes falta para um aluno: receber atenção. Então, para nós, falar sobre convivência pacífica é tão importante quanto o ensino de conteúdos.”

Nos tempos atuais, depois dos ataques e das ameaças violentas às escolas entre março e abril, Fabíola afirma que a cultura de paz segue sendo o grande investimento da rede. “Ainda assim, medidas preventivas precisam e devem ser tomadas para garantir a segurança de todos. A Guarda Municipal está na porta das escolas, temos um aplicativo disponível com um botão de alerta e as polícias Civil e Militar para nos auxiliar”, comenta. “Mas é fundamental que, paralelamente, a violência e a cultura de ódio sejam desconstruídas no dia a dia.”

Diálogo para a cultura de paz nas escolas

Na UME Lourdes Ortiz, também em Santos, a professora Katia Rua Nogueira da Silva, que leciona Ciências, é uma das educadoras que participou das formações promovidas pela Secretaria Municipal de Educação. Ela atua como facilitadora e mediadora de justiça restaurativa. “Trabalho com esse conceito não só quando temos um problema a ser resolvido na escola e sou chamada pela gestão para ajudar em um círculo restaurativo; eu uso as ferramentas em sala de aula, no dia a dia”, relata.

Segundo ela, a proposta é fazer com que os envolvidos em um problema se enxerguem no lugar do outro, de forma a resgatar a humanidade que parece estar escondida no clima de animosidade – por vezes violento – que tenha se instaurado. “Às vezes, o problema é um aluno ter colocado apelido no outro, que se sente ofendido. Para resolver isso, posso simplesmente chamar os dois para que conversem, falem sobre seus sentimentos, se aproximem, se conheçam. E oriento o diálogo, faço a mediação. Não tem solução mágica, é um resgate de valores”, salienta Katia.

Quando necessário, o tema que provocou o desentendimento pode ser levado para uma conversa com a turma, de modo que todos possam refletir sobre o assunto, se colocar e ouvir os colegas. “Para que todos falem, usamos o bastão da palavra, que passa pela mão de quem quiser se pronunciar respeitosamente”, conta a docente.

Soluções compartilhadas

Em outras situações, quando o problema se apresenta de forma mais delicada, envolvendo ameaças entre famílias que tomam a frente de confrontos entre estudantes, por exemplo, são agendados os círculos restaurativos e o conselho tutelar pode ser convidado para participar, bem como todos os envolvidos. “A gestão escolar organiza o círculo. Atuo como mediadora para que todos possam falar de forma respeitosa. Não buscamos culpados, e sim responsáveis; não buscamos punições, mas soluções compartilhadas por meio do diálogo”, ressalta a professora.

“Paz não significa ausência de conflitos, e sim considerá-los como oportunidade de desenvolvimento”, destaca Nádia Maria Freire, do Geepaz. “É natural haver conflitos na escola. O que não podemos é deixar que ela se torne um espaço sem diálogo sobre eles, porque aí há violência”, completa Katia. “É emocionante ver, ao fim de um círculo restaurativo, agressor e agredido se cumprimentarem, tendo se entendido, prontos para retomar a rotina escolar pacificamente”, conclui.