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Educador antirracista, qual é o seu compromisso?

Ao levar uma perspectiva antirracista para a sala de aula, assume-se um compromisso não só com alunos negros, mas com toda a sociedade

POR:
Lavini Castro
Para ajudar a construir um projeto mais amplo de sociedade, com suas diversidades, é preciso utilizar o espaço da sala de aula para refletir os problemas sociais, entre eles, o racismo. Foto Lana Pinho/NOVA ESCOLA

Ao se perguntar sobre o compromisso ao assumir um trabalho pela perspectiva antirracista, devemos refletir: por que desenvolver uma educação antirracista? Por que fazer isso? Ou melhor: por quem fazer isso?

A resposta para essa pergunta começa com um compromisso que devemos ter, primeiramente, conosco, enquanto seres políticos, sociais e culturais, que desejam viver em uma sociedade mais democrática e, para isso, se posicionam de forma a valorizar a diversidade, aprendem a conviver com ela e a criar espaços de conscientização para que outras pessoas possam refletir sobre a riqueza cultural que existe no mundo. 

O outro compromisso que devemos ter é com o legado histórico e cultural dos grupos afro-brasileiros e indígenas, pois não duvido que, assim como eu, você também queira ser lembrado por fazer parte de uma geração de professores que impactou ao ensinar sobre a pluralidade histórica e cultural da humanidade, possibilitando, por meio  de nossos conteúdos, reflexões, provocações e problematizações sobre direitos, dignidade, existências e enaltecendo as contribuições de diferentes grupos humanos.

Assim, por último, o nosso compromisso acaba sendo com a sociedade, pois para ajudar a construir um projeto mais amplo de sociedade, com suas diversidades, é preciso utilizar o espaço da sala de aula para refletir os problemas sociais. Esse é o sentido da educação. 

Quando Paulo Freire (2003) dizia que “educação é o processo constante de criação do conhecimento e de busca da transformação-reinvenção da realidade pela ação-reflexão humana”, ele nos ajudava a pensar sobre o processo de aprendizagem como um mecanismo significativo para a vida, para nossa existência enquanto seres humanos.

Reflexão-ação para mudar

Assim, e diante dos problemas raciais, nosso compromisso enquanto educadores antirracistas é gerar a criação de um conhecimento com base em conteúdos que provoquem pensar sobre o problema do racismo e o quanto ele afeta nossas relações sociais. Isso abre caminho para buscarmos por uma reflexão do quanto isso nos afeta negativamente, podemos, então, propor ou provocar estratégias de mudanças para que possamos idealizar novas realidades em que seja possível experienciar a ideia de uma sociedade sem racismo. Dessa forma, por meio da reflexão-ação, podemos reinventar novas realidades humanas. 

É verdade que a sala de aula é um reflexo da sociedade racista, ou seja, o que ocorre em sociedade, respinga na sala de aula. Portanto, discriminações, preconceitos, racismos e outras opressões ocorrem também na escola, como um micro-palco social. Entretanto, podemos articular, através do “esperançar” de Paulo Freire, novas realidades sociais. Como isso é possível? Partindo da provocação de professores engajados em questionar o racismo em sociedade, podemos criar possibilidades antirracistas e idealizar uma realidade sem racismo, aí o palco da sala de aula que servia de reflexo do que ocorria na sociedade, passa a ser cenário de novas possibilidades afetivas e comportamentais, em que experimentamos outros compromissos enquanto atores sociais e políticos. 

Diante da realidade do racismo, não dá para manter uma postura de neutralidade, até porque a neutralidade na prática não existe, de fato. Ao afirmar que: “prefiro não me meter nesse assunto”, ou que esse é um assunto de pessoas negras e indígenas, bem mesmo se silenciar diante do problema do racismo, já define uma escolha. 

É muito comum ouvir relatos de profissionais da educação que dizem: na minha escola não tem alunos negros/indígenas, então, não abordamos a temática racial. Nesse caso, há dois equívocos. Um: branco também é uma raça. Dois: esse é um pensamento atrelado à ideia de que a educação para as relações étnico-raciais é um problema dos negros/indígenas - o que não é verdade -, que só devemos abordar o problema do racismo se ele acontecer de forma bem direta e consciente na presença de pessoas negras. Porém, pense, caro colega, se o racismo é estrutural, nosso trabalho educacional é combater a estrutura por meio dos questionamentos criados para provocar a conscientização desse problema. 

Tenha a mente aberta para a interculturalidade

Não podemos esquecer que vivemos numa sociedade estruturada pela mentalidade e perspectiva racistas, portanto, há uma hegemonia de pensamento que interfere em escolhas e comportamentos e, graças a esse pensamento, pessoas foram hierarquizadas racialmente. Por isso, para enfrentar o racismo é preciso se posicionar, é preciso um querer mudar e não ter uma postura de neutralidade porque ser neutro nessa perspectiva é compactuar com o pensamento hegemônico racista.

Azoilda Loretto da Trindade (2013) diz que “qualquer caminho trilhado no sentido de lidar com as diferenças no cotidiano escolar não é neutro, assim como não deve ser encarado como ideal, mas como algo vivo orgânico dentro das relações estabelecidas”. Isso significa dizer que ensinar sobre educação para relações étnico-raciais é ensinar compromisso de respeito com a dignidade da existência dos grupos raciais oprimidos em nossa sociedade por conta de sua estética racial, de sua cultura e de sua história. 

Não há como ter uma postura de neutralidade diante de como os problemas raciais nos afetam, por isso devemos sempre nos perguntar: como nos sentimos diante da questão racial, como a racialização das pessoas nos afetam, como sentimos as culturas africanas, afro-brasileira e indígenas, trazendo para a consciência como verdadeiramente essas histórias e culturas nos atravessam. Assim, podemos refletir como estamos reagindo à presença dessas culturas e, dessa forma, é possível perceber que não há em nós uma neutralidade, mas escolhas, muitas vezes, influenciadas por uma cultura hegemônica.

Tomar consciência desse mecanismo, do quanto somos afetados pelos aspectos culturais hegemônicos, é fundamental, bem como manter a “mente aberta” para aprender com as diferentes culturas que nos atravessam, pois como já nos dizia a professora Petronilha Beatriz (2013), o importante é não só aprender sobre novas culturas, mas aprender como as diferentes culturas se comunicam, e que aprender através dessas culturas nos enriquece enquanto humanidade. Ao criarmos uma relação afetuosa positiva com as culturas, podemos avaliar sobre novas escolhas e nos organizar enquanto uma sociedade que preza pelas existências e contribuições dos diversos grupos raciais.

Mas nosso compromisso também deve ser com letramento racial, pois nem sempre apelar para o  respeito para com a diversidade tem efeito. Nem todos operam neste nível de consciência humana em que é fundamental o respeito mútuo. Ou seja, uma posição liberal, com base na subjetividade, não é base para um compromisso pedagógico crítico e questionador da mudança na educação, é preciso letramento racial e regulamentações para promover mudanças. 

Muitas vezes, o posicionamento escolhido ocorre devido ao conhecimento que traz conscientização e reforça algum tipo de mudança. Por isso, precisamos estudar conceitos e teorias que nos auxiliam a entender as relações racias, esse é outro compromisso que temos que ter com a Educação Antirracista. Portanto, não há educação antirracista sem posicionamento político e letramento racial. 

Precisamos superar uma visão de diferença que acaba hierarquizando os grupos raciais para entendermos uma pluralidade de sujeitos e suas ideias, saberes, contribuições e existências. Uma educação que provoque esses entendimentos daquilo que sou e daquilo que não sou, mas que me ensina como conviver com a diversidade é o que precisamos.

Educação antirracista é compromisso com a sociedade

Então, professor, questione o porque você faz o que você faz. Qual é o seu compromisso? Porque além de sermos sujeitos históricos, políticos e culturais a nossa história, as nossas escolhas e aprendizagens culturais interferem no nosso posicionamento. Por isso, a mente deve estar aberta para aprender sobre e com aquele que na relação é o outro. Devemos entender que o nosso compromisso além de ser conosco deve ser também com os nossos alunos e com a sociedade que estamos ajudando a construir. O silêncio diante do racismo só ajuda a manter a mentalidade hegemônica racista. 

Entender as nossas escolhas, entender o que nos influencia em nosso comportamento é um passo importantíssimo para a tomada de consciência da realidade racial brasileira e perceber o quanto somos afetados pelo racismo.

A mudança de referencial pode nos ajudar a desconstruir algumas verdades e nos conectar com o valor da existência humana, assim será possível, por exemplo, numa sala de aula antirracista, perceber:

  • a sabedoria da população indígena
  • desconectar da tendência que naturaliza o negro como escravizado reconhecendo seus saberes
  • abandonar expressões elitistas

Tais percepções trazem mudanças referenciais,conceituais e representativas que fazem parte de uma mentalidade mais crítica, nos auxiliando a crescer e amadurecer enquanto sociedade. É por isso que fazemos o que fazemos. O nosso compromisso ao atuar com a Educação Antirracista não é somente com os estudantes negros, é um compromisso com a sociedade.

Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.

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