"Gênero” e “orientação sexual” têm saído dos documentos sobre Educação no Brasil. Por que isso é ruim?
Desde 2011, quando o projeto Escola sem Homofobia foi criado, os termos são alvo de pressão de setores conservadores da sociedade e do congresso
POR: Laís SemisAtualizado no dia 13 de abril de 2017, às 15h
Não é de hoje que termos ligados à noção de identidade de gênero e orientação sexual incomodam quando aparecem em documentos oficiais sobre Educação no Brasil. A encrenca de setores conservadores da sociedade e do congresso com os conceitos (entenda o que eles significam no quadro abaixo) ficou evidente já em 2011, quando o projeto Escola sem Homofobia estava pronto para imprimir e distribuir materiais direcionados à formação de professores sobre essas questões. Deputados ligados a entidades religiosas foram contra o projeto, apelidado pejorativamente de "kit gay". Nada saiu do papel.
Três anos depois, o Plano Nacional da Educação (PNE) foi aprovado sem o trecho que falava sobre gênero. Frases como "superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual" foram substituídas por "erradicação de todas as formas de discriminação", sem citar quais eram os tipos de discriminação. A mudança foi feita depois de pressões realizadas pela sociedade civil e por deputados. Em 2015, os planos municipais e estaduais de Educação, que deveriam prever o que seria da área nos próximos dez anos, acompanharam o movimento. Cidades como São Paulo e estados como Pernambuco e Espírito Santo suprimiram as referências à diversidade sexual, orientação sexual e gênero.
“Tratar desses temas vai contra o que algumas pessoas acreditam que seja o conceito de família. A questão se relaciona com homossexualidade, construções familiares e identidade. A retirada dos conceitos é uma pauta proselitista [que tem o objetivo de converter alguém para alguma ideia ou causa] de um passado há muito tempo distante e que não condiz com a realidade do país nem da escola atualmente”, aponta Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
O deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) ganhou notoriedade ao transformar esse assunto em uma das suas principais agendas de campanha.
ENTENDA OS CONCEITOS
Orientação sexual: “capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas”.
Identidade de gênero: “experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”.
Fonte: Princípios de Yogyakarta, documento internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero
Em 2017, o documento da vez foi a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Dois dias depois de enviar uma versão prévia da terceira e última versão do documento a jornalistas, o Ministério da Educação (MEC) entregou o texto ao Conselho Nacional da Educação (CNE), órgão que está responsável por elaborar um parecer antes da homologação. A BNCC, no entanto, chegou aos conselheiros com uma sutil alteração: foram retirados os termos “gênero” e “orientação sexual” de trechos específicos (leia as mudanças no quadro abaixo). Membros da bancada evangélica comemoram. O MEC justificou a mudança dizendo que o documento “passou por ajustes finais de editoração/redação que identificaram redundâncias” e que “em momento algum as alterações comprometeram ou modificaram os pressupostos da Base Nacional Comum Curricular”.
EM DOIS DIAS, O QUE MUDOU NA BNCC
Os trechos que passaram por alterações estão grifados em amarelo e os termos retirados estão subscritos.
Página 14
"Art. 16 Os componentes curriculares e as áreas de conhecimento devem articular em seus conteúdos, a partir das possibilidades abertas pelos seus referenciais, a abordagem de temas abrangentes e contemporâneos que afetam a vida humana em escala global, regional e local, bem como na esfera individual. Temas como saúde, sexualidade e gênero, vida familiar e social, assim como os direitos das crianças e adolescentes, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90), preservação do meio ambiente, nos termos da política nacional de educação ambiental (Lei nº 9.795/99), educação para o consumo, educação fiscal, trabalho, ciência e tecnologia, e diversidade cultural devem permear o desenvolvimento dos conteúdos da base nacional comum e da parte diversificada do currículo."
Página 19
Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro, com acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, orientação sexual, idade, habilidade/necessidade, convicção religiosa ou de qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer. Qualquer outra natureza, reconhecendo-se como parte de uma coletividade com a qual deve se comprometer.
Página 301
(EF08CI11) Selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) e a necessidade de respeitar, valorizar e acolher a diversidade de indivíduos, sem preconceitos baseados nas diferenças de sexo, de identidade de gênero e de orientação sexual.
Por que manter essas palavras no texto é importante
O MEC diz que a retirada dos termos de alguns trechos foi para evitar a redundância. De fato, não é de todo o documento que desaparece a palavra “gênero”. No entanto, a antropóloga Michele Escoura, pesquisadora do Núcleo de Marcadores Sociais da Diferença da Universidade de São Paulo (USP) e do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Unicamp, explica que, dependendo da corrente teórica adotada, o termo “gênero” não necessariamente engloba todas as discussões, de identidade de gênero à orientação sexual. “Seria preciso entender qual é o entendimento do MEC sobre o assunto”, diz. A preocupação dela é que a ausência dessas expressões leve a uma visão redutora do assunto. “Pode acontecer de equipes pedagógicas entenderem que trabalhar gênero só diz respeito a falar sobre violência contra a mulher, por exemplo”, explica Michele.
ENTENDA Em fevereiro de 2015, NOVA ESCOLA publicou uma reportagem de capa (veja imagem ao lado) sobre como a escola trata com preconceito quem desafia as normas de papéis masculinos e femininos. Clique aqui para acessar
Para Anna Penido, diretora do Instituto Inspirare, integrante do Movimento pela Base Nacional e uma das leitoras críticas da BNCC, o MEC deu um passo atrás no respaldo do tema, o que pode desencadear uma reação em cadeia nos estados e municípios na hora de elaborar o currículo. “É como se a orientação nacional dissesse ‘esse tema não precisa estar tão explicitado’ no currículo. Não estando explicitado, quem vai bancar isso sozinho? Se o MEC banca, redes e escolas se sentem mais fortalecidas para fazer o mesmo”, questiona. “Com isso, o Estado está se desresponsabilizando de ter materiais pedagógicos, garantir formação continuada e de construir políticas públicas que visem de maneira mais incisiva combater discriminações contra estudantes homossexuais e transgêneros, por exemplo”, diz Michele.
Daniel Cara, da Campanha, explica que, no processo de escolarização, muitos foram impedidos de concluir seus estudos por conta de preconceitos de colegas, professores e até da família. E a escola não pode ser conivente com qualquer tipo de discriminação, especialmente quando ela se torna recorrente e vira um caso de bullying (entenda aqui). “Bullying é uma das causas de abandono dos estudos no Brasil. Precisamos ter essa preocupação porque o abandono está ligado a um processo educacional falho. Não podemos mascarar essa realidade. Se a Base não pode contribuir com isso, é lamentável. Perde-se uma oportunidade ímpar de fazer esse debate”, comenta Idilvan Alencar, secretário de Educação do Ceará e presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed).
Repercussão
A explicação do MEC realmente não convenceu e a alteração – e, principalmente, a forma que ela foi feita, sem avisar ninguém – gerou críticas de organizações ligadas à Educação. Para Idilvan, do Consed, a retirada de última hora das expressões foi desrespeitosa com os participantes do debate de construção da Base. “Se essa explicação que o MEC deu se trata mesmo apenas de redundância e não tem nada de ideológico por trás, é muito simples de resolver esse impasse: é só incluir o termo de volta. São poucas palavras em um documento de tantas páginas”, aponta. Outros secretários estaduais concordaram com a reclamação de Idilvan, que levou o tema ao Consed para discutir os possíveis encaminhamentos.
Anna Penido, do Instituto Inspirare, lembra que o MEC não deixou de explicitar outras formas de diversidade no texto. “Só os termos ‘gênero’ e ‘orientação sexual’ foram retirados. Eu não vejo um motivo para essa exclusão que não seja evitar polêmica. Certamente essa mudança se deu por conta de pressão ou do receio de sofrer pressão de grupos mais conservadores da sociedade”, diz.
Outras instituições também mostraram preocupação com as alterações feitas na Base Nacional Comum Curricular. O Movimento pela Base, formado por diversas organizações a favor da construção colaborativa do documento, disse que “foi surpreendido pela retirada de menções a identidade de gênero e orientação sexual do texto” entregue ao Conselho Nacional de Educação e reforçou que defende e estimula o respeito à diversidade. “Embora o atual texto da Base siga defendendo a pluralidade, a diversidade e o combate ao preconceito, acreditamos que identidade de gênero e orientação sexual, pela sua relevância, devam estar explicitamente colocadas ao longo do texto”, publicou o Movimento.
A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) também se expressou sobre o tema. Em nota, o órgão disse que busca “uma Educação que, para além da inclusão, reconheça a expressão de gênero, orientação sexual e identidade de gênero, como sendo questões fundamentais para nossa constituição como pessoas de direitos” e que a exclusão dos termos “além de ferir a constituição federal, vai contra todos os debates realizados durante os últimos anos nos espaços constituídos de forma democrática”. A ABGLT apela para que o CNE reinsira os termos no documento final, que deve ser homologado no segundo semestre deste ano.
No dia 13 de abril, relatores do Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) se posicionaram sobre a discussão afirmando que a “discussão sobre gênero e diversidade sexual é fundamental para prevenir estereótipos de gênero e atitudes homofóbicas entre estudantes”.
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