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Entenda por que há tanta polêmica na Base de Educação Infantil

A inclusão de “oralidade e escrita” como campo de experiência é uma das principais polêmicas do documento e motivo de divergência entre especialistas da área

POR:
Laís Semis
Demonstrar interesse ao ouvir histórias lidas ou contadas, observando ilustrações e os movimentos de leitura do adulto-leitor é um dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento da Base. Crédito: Shutterstock

As audiências públicas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) têm sido dominada por temas que seguem a agenda de determinados grupos e acabam ofuscando muitos debates. Ainda assim, alguns assuntos têm ganhado espaço pela falta de consenso entre especialistas, instituições, professores e sociedade civil. E o caso mais marcante é o da “Oralidade e escrita” na Educação Infantil.

Até a segunda versão do documento, este campo de experiência era intitulado como “Escuta, fala, pensamento e imaginação”. Para Mônica Baptista, consultora sobre o tema da oralidade e da linguagem escrita nas duas primeiras versões da Base de Educação Infantil, houve um conflito pedagógico entre as equipes das segunda e da terceira edições. “A última versão rompe radicalmente com os processos e constrói um outro que, em muitos aspectos, é antagônico ao que se tem na segunda”, diz a especialista, que também é coordenadora do projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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“A questão da aprendizagem da leitura e da escrita é um ponto central na Educação Infantil”, diz Mônica. “Não podemos ignorar que essa é uma tensão da área. Também não podemos ser ingênuos e pensar que é uma mudança semântica, que só se alterou o título. É uma mudança de concepção”, completa. A alteração representaria uma redução conceitual do que havia sido proposto para este campo de experiência. A fala e escuta - que foram resumidos em “oralidade” - seriam atividades que além do dito, também incluiriam o presumido, as expressões corporais e o contexto enunciativo. A escrita também seria uma articulação de um processo complexo e o título inicial de “escuta, fala, pensamento e imaginação” teria a finalidade de evidenciar a constituição da linguagem e do pensamento.

O destaque dado à escrita na etapa também preocupa. Historicamente é uma temática delicada que dividiu a área. Existe uma pressão por parte da sociedade e de especialistas para que a etapa assuma um papel de preparação para o Ensino Fundamental e isso questiona a identidade da Educação Infantil”, explica Mônica. Ao lado de outros 15 especialistas que participaram da BNCC criaram um abaixo-assinado intitulado “Base Nacional Comum Curricular – Avanços para qual direção?” que questiona a proposta e o processo da última versão do documento. Nele, o grupo afirma que a alteração é “de um campo de experiência para disciplinas escolares, que, nesta etapa educacional, estreitam o conhecimento e se colocam muito aquém das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem das crianças”.

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De acordo com Mônica, houve uma tentativa de assegurar que o tema não estivesse ausente por ser um direito da criança aprender e se apropriar desse objeto de conhecimento. “Elas estão se perguntando sobre isso, mas ao mesmo tempo, tentamos romper com essa visão de que a Educação Infantil vai trabalhar na perspectiva do Fundamental”. Assim, de acordo com a segunda versão do documento, “a imersão na cultura escrita deve partir do que a criança conhece, das curiosidades que ela deixa transparecer, instigando-a a pensar, a formular hipóteses sobre a escrita, a dialogar com seus pares e com os adultos sobre essas curiosidades e a participar de situações de leitura e de escrita”. Os direitos de aprendizagem propostos nessa versão também contemplam a escrita no brincar, participar e explorar.

Crédito: Pixabay

A tentativa do grupo redator da versão 2 teria sido, segundo Mônica, garantir as especificidades da etapa ao introduzir essa temática. “Trabalhar leitura e escrita na Educação Infantil precisa levar em conta como esse sujeito interage com o conhecimento, que é de uma forma mais ampla e menos fragmentada do que em disciplinas, em conhecimentos”, diz.  “O sujeito vai construindo uma relação com a leitura e escrita e essa etapa não é o lugar em que se tem determinabilidade na alfabetização, isso é do Fundamental, apesar de ter uma contribuição significativa na formação de leitores e na inserção desse sujeito na cultura escrita”, explica.

A resposta sobre a mudança
De acordo com Andréa Patapoff, formadora de professores de Educação Infantil da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp) e uma das redatoras da terceira versão da Base de Educação Infantil, os redatores do documento não tiveram a intenção de colocar a alfabetização como prioridade deste campo de experiência. Para Andréa, houve um problema de interpretação sobre o título “Oralidade e escrita” que precisa ser avaliado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). “A interpretação ficou muito centrada na palavra ‘escrita’, mas gerou uma interpretação equivocada em grande escala. Se os profissionais da Educação têm enxergado a Base, que é um documento oficial, com essa ideia, acho que esse mal entendido precisa ser levado em conta e revisto”, comenta.

Ela conta que a ênfase na escrita partiu das contribuições dos 27 seminários estaduais da BNCC que aconteceram entre julho e agosto de 2016 e contaram com a presença de mais de 9 mil educadores, especialistas e instituições. “O texto propõe a inclusão de mais experiências correlacionadas à leitura, à escrita espontânea da criança e ao professor como escriba, mas nunca com a proposta da criança sair alfabetizada da Educação Infantil”, defende.

As mudanças da versão 3 também não representariam um risco para que a Educação Infantil se torne uma etapa preparatória para o Fundamental. “A criança precisa ser enxergada como um sujeito em desenvolvimento. Como tirar de cena oportunidades educativas que vão favorecer esse desenvolvimento? Não existe um caráter preparatório, a Educação Infantil já está na Educação Básica. A criança passa pelas etapas de ensino e vive um contexto de práticas educativas que precisar versar e dar ênfase no desenvolvimento contínuo”, diz Andréa.

A especialista argumenta que é preciso considerar os campos de experiência como oportunidades de apropriação de conhecimentos. “Existem outros campos relacionados a outras linguagens e tudo vem nessa relação de brincadeiras, interação social, vivências e oportunidades, e não de sistematização. Enxergar ‘escrita’ como sinônimo de ‘alfabetização’ é um grande equívoco”, considera.

Ter contato com diferentes instrumentos e suportes de escrita é um dos objetivos de aprendizagem e desenvolvimento previstos pela terceira versão da Base. Crédito: Kelly Sikkema/Unsplash

O QUE MUDOU

Confira a diferença entre a “Escuta, fala, pensamento e imaginação” da segunda versão da Base e a “Oralidade e escrita” da terceira:

Quantas vezes a palavra “escrita” aparece na explicação do campo de experiência na v2?
Versão 2: quatro
Versão 3: dez

O que a introdução do campo de experiência da v2 diz sobre o tema?
Versão 2: “A gestualidade, o movimento realizado nas brincadeiras ou nos jogos corporais, a apropriação da linguagem oral ou em Libras, a expressão gráfica, musical, plástica, dramática, escrita, entre outras, potencializam a organização do pensamento, tanto na capacidade criativa, expressiva e comunicativa, quanto na sua participação na cultura. [...] A imersão na cultura escrita deve partir do que a criança conhece, das curiosidades que ela deixa transparecer, instigando-a a pensar, formular hipóteses sobre a escrita, a dialogar com seus pares e com os adultos sobre essas curiosidades, a partir de situações de leitura e de escrita, aprendendo a ler o mundo das imagens, das letras, dos números e dos textos.”

Versão 3: “Ouvir a leitura de textos pelo professor é uma das possibilidades mais ricas de desenvolvimento da oralidade, pelo incentivo à escuta atenta, pela formulação de perguntas e respostas, de questionamentos, pelo convívio com novas palavras e novas estruturas sintáticas, além de se constituir em alternativa para introduzir a criança no universo da escrita. Desde cedo, a criança manifesta desejo de se apropriar da leitura e da escrita: ao ouvir e acompanhar a leitura de textos, ao observar os muitos textos que circulam no contexto familiar, comunitário e escolar, ela vai construindo sua concepção de língua escrita, reconhecendo diferentes usos sociais da escrita, gêneros, suportes e portadores. Sobretudo a presença da literatura infantil na Educação Infantil introduz a criança na escrita: além do desenvolvimento do gosto pela leitura, do estímulo à imaginação e da ampliação do conhecimento de mundo, a leitura de histórias, contos, fábulas, poemas e cordéis, entre outros, realizada pelo professor, o mediador entre os textos e as crianças, propicia a familiaridade com livros, com diferentes gêneros literários, a diferenciação entre ilustrações e escrita, a aprendizagem da direção da escrita e as formas corretas de manipulação de livros. Nesse convívio com textos escritos, as crianças vão construindo hipóteses sobre a escrita que se revelam, inicialmente, em rabiscos e garatujas e, à medida que vão conhecendo letras, em escritas espontâneas, não convencionais, mas já indicativas da compreensão da escrita como representação da oralidade.”

O que prevê para bebês com relação à escrita?
Versão 2: Não prevê.
Versão 3 (de zero ano a um ano e seis meses*):
- Demonstrar interesse ao ouvir histórias lidas ou contadas, observando ilustrações e os movimentos de leitura do adulto-leitor (modo de segurar o portador e de virar as páginas);
- Ter contato com diferentes instrumentos e suportes de escrita.

O que prevê para crianças bem pequenas com relação à escrita?
Versão 2: Não prevê.
Versão 3 (de um ano e sete meses a três anos e 11 meses*):
- Demonstrar interesse e atenção ao ouvir a leitura de histórias e outros textos, diferenciando escrita de ilustrações, e acompanhando, com orientação do adulto- -leitor, a direção da leitura (de cima para baixo, da esquerda para a direita);
- Manusear diferentes instrumentos e suportes de escrita para desenhar, traçar letras e outros sinais gráficos.

O que prevê para crianças pequenas com relação à escrita?
Versão 2:
- Registrar experiências pessoais ou atividades realizadas na escola em fotografias, vídeos, desenhos e escrita (convencional ou não);
- Produzir suas próprias escritas, convencionais ou não, em situações com função social significativa;
- Levantar hipóteses sobre textos escritos sobre as características da escrita: frases, palavras, espaços em branco, sinais de pontuação e outras marcas, compreendendo que a escrita é uma representação da fala.
Versão 3 (de quatro anos a cinco anos e 11 meses*): 
- Expressar ideias, desejos e sentimentos sobre suas vivências, por meio da linguagem oral e escrita (escrita espontânea), de fotos, desenhos e outras formas de expressão;
-
 Escolher e folhear livros, procurando orientar-se por temas e ilustrações e tentando identificar palavras conhecidas;
- Recontar histórias ouvidas para produção de reconto escrito, tendo o professor como escriba;
- Produzir suas próprias histórias orais e escritas (escrita espontânea), em situações com função social significativa;
- Levantar hipóteses sobre gêneros textuais veiculados em portadores conhecidos, recorrendo a estratégias de observação gráfica e de leitura;
- Identificar gêneros textuais mais frequentes, recorrendo a estratégias de configuração gráfica do portador e do texto e ilustrações nas páginas;
- Levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e textos, por meio de escrita espontânea.

* A nomenclatura das faixas etárias é diferente nas duas versões do documento. Enquanto a v2 divide os objetivos de aprendizagem por bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas, a v3 os divide por idade.