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Grupo monopoliza audiência da Base em Florianópolis e tira voz dos professores

A discussão de disciplinas foi ofuscada por discursos passionais contra a presença do termo “gênero” no documento

POR:
Laís Semis
Audiência pública em Florianópolis foi a terceira de uma série de cinco que acontecem nas diferentes regiões do país até o dia 11 de setembro. Crédito: Laís Semis

“Me causou estranheza e indignação que os Planos Nacional e Estaduais de Educação tenham sido votados sem a ideologia de gênero por pressão da população e a Base, ao contrário do que muitos disseram aqui, esteja cheia dela.” Assim foi a manifestação de Geane Vieira, contadora e assessora parlamentar da Câmara de Vereadores de Itajaí na audiência pública da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) realizada na última sexta (dia 11) em Florianópolis (SC). Não foi uma participação isolada. Muito pelo contrário.

Geane fez o primeiro de dez discursos sequenciais sobre a menção a gênero na Base. Ela argumentou que a inclusão do termo fará com que “professores ensinem e questionem aos alunos se eles são, de fato, homens ou mulheres”. Depois, tiveram a palavra integrantes da Pastoral Familiar, do apostolado católico, do Conselho da Renovação Carismática Católica, um empresário, um vereador e professores de História e de Ciência Política, todos de Itajaí, cidade a 94 km da capital catarinense. Nos discursos, eles atacavam a suposta intenção de desconstruir a identidade dos alunos.

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Articulado, esse grupo dominou boa parte da tarde da audiência (veja abaixo outras discussões de destaque)Nesse cenário, César Callegari, presidente da comissão da Base no Conselho Nacional de Educação (CNE), teve de intervir. Um dos membros do grupo admitiu que se organizaram para pautar o tema na audiência. Callegari então lembrou ao público que o regimento da audiência prevê que a “manifestação ou fala, com posicionamento oficial, será feita por apenas um representante de cada órgão e entidade presente”.

César Callegari interveio para garantir o direito de fala de todos os participantes. Crédito: Laís Semis

“Me parece que outros membros da comunidade de Itajaí querem se posicionar na mesma direção do que já se precedeu. Queria pedir a colaboração do vereador Beto Cunha, que parece uma liderança importante na cidade, para falar pelo restante da comunidade e darmos espaço para outras temáticas presentes da Base”, disse o presidente da comissão. Depois do vereador, um coronel do exército e um médico ainda se pronunciaram contra a presença do tema no documento.

Em meio aos que pediam a retirada do termo “gênero” do documento, a pedagoga Júlia Siqueira da Rocha fez um contraponto. Para ela, as falas anteriores desrespeitariam o trabalho dos professores, que não deveriam ser vistos como meros repassadores de conteúdos. “Nós formamos gente e formamos pela Ciência, pela Filosofia e pela Arte. Só há uma forma de não trabalhar gênero na escola: tirando as pessoas da escola”, disse ela. “Tirem professores e alunos e não será necessário. Caso contrário, gênero é uma das dimensões do humano e a terceira versão do documento precisa explorá-lo ainda mais”, concluiu.

A organização de grupos para intensificar a presença de um tema nas falas têm sido uma constante em todas as audiências da Base. Em Manaus e Florianópolis, aconteceu com a questão de gênero. Em Olinda (PE), foram os professores de Educação Física que se organizaram para pautar a necessidade da presença de um profissional da área na Educação Infantil.

“Por ser uma audiência pública, não existe um controle dos assuntos que vão ser tratados, então pode acontecer de um grupo grande começar a se manifestar numa sequência que acaba monopolizando o debate”, reconhece Eduardo Deschamps, Secretário de Educação de Santa Catarina e presidente do CNE. Para ele, apesar desse movimento, é possível identificar outros tópicos que precisam ser trabalhados no documento, além das indicações que o órgão vem recebendo pelo email cne.bncc@mec.gov.br.

O problema, quando esse monopólio acontece, é que ele tira a voz dos professores do debate. E, na prática, não se discute como e em que pontos a Base deve melhorar.

Eduardo Deschamps (à esquerda) afirma que apesar da organização de determinados grupos, o CNE tem recebido contribuições importantes nas audiências públicas e também por email. Crédito: Laís Semis

A Base além de gênero
No pouco espaço que sobrou para professores e a Base, estes foram os temas mais discutidos:

- A pouca referência a tecnologia e pensamento computacional na Base foi uma das questões apontadas por especialistas e professores. Leila Ribeiro, coordenadora da comissão de Educação Básica da Sociedade Brasileira de Computação, explicou que um dos fundamentos da área é a resolução de problemas, habilidade requisitada a outras disciplinas e essencial para o cotidiano dos alunos. “É uma habilidade cada vez mais requisitada para que os alunos consigam desenvolver as suas potencialidades em todas as suas áreas”, disse ela.

Leila também afirmou que é preciso explicar o mundo digital para os alunos. “A gente diz que crianças e adolescentes são uma geração digital, mas eles não entendem esse mundo. Para eles, é mágica como ele funciona, do mesmo jeito que era mágica como os fenômenos da natureza aconteciam há alguns séculos e hoje eles são explicados por meio da Química, Física e Biologia”, atentou Leila.

- A ausência de uma base para Ensino Religioso foi considerada problemática. “Temos práticas que ainda mantêm catequização nas escolas. Já outras propostas entenderam que a disciplina é o estudo respeitoso e científico do fenômeno religioso. Essa visão não afronta o estado laico e não tem motivo de ficar de fora da regulamentação”, defendeu Elcio Cecchetti, do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso. A disciplina integrava a Base até a sua segunda versão.

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- Com a reforma do Ensino Médio, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) sofreu alterações. Uma delas foi a obrigatoriedade do ensino da Língua Inglesa em vez da oferta de uma Língua Estrangeira Moderna a escolha da comunidade escolar, o que tem gerado preocupação aos professores que lecionam outros idiomas. “Consideramos que houve um retrocesso nessa medida”, avaliou Gisela Spindler, representando as associações de professores de alemão de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e das regiões Norte e Nordeste. De acordo com ela, a mudança não respeita a pluralidade cultural, as correntes imigratórias para o Brasil e os projetos em andamento nas escolas. “Diante da LDB, as instituições fizeram suas escolhas, investiram na formação de professores, buscaram parcerias nacionais e internacionais e se organizaram para oferecer a língua que pudesse alavancar o maior número de oportunidades aos seus alunos procurando interligar as aprendizagens com as perspectivas de futuro deles”, defendeu.

- Em menor número, algumas pessoas criticaram a: a) a organização do documento por competências; b) as poucas habilidades dedicadas à criação; c) o campo de experiência “oralidade e escrita” na Educação Infantil; d) o eurocentrismo do ensino de História; e) a falta de diálogo de modalidades esportivas como beisebol, críquete e softbol com a cultura brasileira.

Mais duas audiências acontecem nos próximos meses para encerrar a passagem do documento pelas cinco regiões do país. Uma será São Paulo, em 25 de agosto, e outra em Brasília, em 11 de setembro. Até esta data, é possível enviar contribuições sobre a terceira versão da Base para o CNE pelo email cne.bncc@mec.gov.br.