MEC e CNE buscam acordo sobre o ciclo de alfabetização na Base
Terceira versão do documento prevê que ciclo se encerre no 2º ano do Fundamental, mas grupos têm se posicionado contra a mudança
POR: Laís SemisA notícia de que o Ministério da Educação (MEC) e Conselho Nacional de Educação (CNE) teriam decidido manter o término do ciclo de alfabetização para o 3º ano do Fundamental não procede. NOVA ESCOLA entrou em contato com pessoas nos dois órgãos envolvidas com o debate da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e apurou que ainda não há um consenso sobre o tema.
“O CNE ainda não tomou decisões sobre nenhum assunto relacionado à BNCC”, afirma César Callegari, presidente da comissão bilateral da Base no CNE. A última versão publicada do documento, apresentada pelo MEC em abril, previa que as crianças estivessem alfabetizadas até o fim do 2º ano. A questão teve grande repercussão entre professores e especialistas, já que adiantaria o processo em um ano.
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Atualmente, leis como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), assumido pelos governos federal, estaduais e municipais, prevêem que todas as crianças estejam alfabetizadas ao final do 3º ano do Ensino Fundamental. O Plano Nacional de Educação (PNE) estipula o mesmo em sua meta 5. “Esses dispositivos ainda estão em vigência, bem como as diretrizes curriculares. O que o MEC está propondo com a terceira versão da Base (v3) é uma alteração da regra vigente. Se ela prosperar dessa maneira, precisaríamos rever esses documentos também”, explica Callegari. “O CNE tem uma posição firmada pelo parecer 11/2010 [veja box abaixo] que explicitamente expõe sobre o ciclo de alfabetização de três anos. A posição do CNE pode ser mudada, mas ainda não firmamos nenhuma sobre a proposta da Base”, diz.
O QUE DIZ O PARECER EM VIGÊNCIA DO CNE SOBRE ALFABETIZAÇÃO
“Para evitar que as crianças de 6 (seis) anos se tornem reféns prematuros da cultura da repetência e que não seja indevidamente interrompida a continuidade dos processos educativos levando à baixa autoestima do aluno e, sobretudo, para assegurar a todas as crianças uma educação de qualidade, recomenda-se enfaticamente que os sistemas de ensino adotem nas suas redes de escolas a organização em ciclo dos três primeiros anos do Ensino Fundamental, abrangendo crianças de 6 (seis), 7 (sete) e 8 (oito) anos de idade e instituindo um bloco destinado à alfabetização.
Mesmo quando o sistema de ensino ou a escola, no uso de sua autonomia, fizerem opção pelo regime seriado, é necessário considerar os três anos iniciais do Ensino Fundamental como um bloco pedagógico ou um ciclo sequencial não passível de interrupção, voltado para ampliar a todos os alunos as oportunidades de sistematização e aprofundamento das aprendizagens básicas, imprescindíveis para o prosseguimento dos estudos.
Os três anos iniciais do Ensino Fundamental devem assegurar:
a) a alfabetização e o letramento;
b) o desenvolvimento das diversas formas de expressão, incluindo o aprendizado da Língua Portuguesa, a Literatura, a Música e demais artes, a Educação Física, assim como o aprendizado da Matemática, de Ciências, de História e de Geografia;
c) a continuidade da aprendizagem, tendo em conta a complexidade do processo de alfabetização e os prejuízos que a repetência pode causar no Ensino Fundamental como um todo, e, particularmente, na passagem do primeiro para o segundo ano de escolaridade e deste para o terceiro.”
Confira o parecer completo de 2010 aqui.
De acordo com Maria Helena Guimarães, secretária executiva do MEC e presidente do Comitê Gestor da BNCC dentro do ministério, a pasta se mantém com a posição apresentada na v3. “Nosso principal objetivo com a alfabetização até o 2º ano é combater a desigualdade do sistema. Hoje, as escolas particulares já mantêm esse processo para o 1º, no máximo, 2º ano. Não faz sentido esperar, sendo que temos evidências sólidas de pesquisas e experiências que mostram a importância de alfabetizar nos primeiros anos”, defende. A secretária executiva também apresenta o argumento de que algumas redes públicas já o fazem. “Todo mundo elogia o sistema de Sobral (CE) que segue esse modelo. O que o MEC está fazendo é algo que está sendo elogiado e que as particulares já fazem”, diz.
A posição se mantém não só para a questão, como também para outros temas, como os campos de experiência da Educação Infantil. “A Base proposta para essa etapa está bastante compatível e alinhada com a alfabetização até o 2º ano. O CNE está analisando as propostas e não sabemos ainda qual é a posição do órgão sobre esses temas. Mas a do MEC é clara”, afirma Maria Helena. “Qualquer palpite que o MEC der nesse momento é querer antecipar os fatos. Temos um processo de diálogo acontecendo e não é o momento de afirmar nada. Não há negociação, acordo nem decisão nenhuma. Estamos dialogando”, ressalta.
Muito além de definir um ano
Para o Callegari, fixar um teto para a alfabetização não é uma boa orientação e a BNCC pode contribuir para criar parâmetros para o processo. De acordo com ele, colocar o marco de conclusão até o 2º ano pode passar a mensagem errada de que as crianças que não atenderem a essas expectativas devem ser reprovadas. “Minha posição pessoal é relativizar a questão do ponto de chegada e pensar que os cinco anos do Fundamental são um processo de construção e consolidação de alfabetização. Podemos ter pontos intermediários de alcance e avaliação, mas falar em dois ou três anos é uma questão secundária. Interessa o processo e o progresso”, argumenta.
Anna Helena Altenfelder, pedagoga e presidente do conselho administrativo do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), também acredita que a Base precisa estabelecer o passo a passo dos objetivos de aprendizagem. “Alfabetização é um processo. Se apropriar dos conhecimentos necessários não acontece de uma hora para outra. É importante saber o que aprender em cada etapa”, diz. A posição do Cenpec é de que algumas dessas aprendizagens que compõem o processo de alfabetização não podem esperar até o 3º ano. Para a organização, a experiência com a cultura letrada também precisa ocorrer desde a Educação Infantil. “O que não significa ultrapassar o direito das crianças dessa faixa etária de brincar e explorar diferentes campos de experiência. Mas este direito precisa estar articulado com o de aprender”, defende Anna.
O que a especialista explica é que a política de ciclo de alfabetização acabou fazendo que algumas escolas passassem a trabalhar o tema apenas no final desse período e não ao decorrer dele. Ao concentrar no terceiro ano, torna as intervenções necessárias tardias para garantir a alfabetização ao fim dele. Para Anna Helena, a preocupação dos secretários de Educação e de outros grupos que têm se manifestado nas audiências públicas da Base deve ser considerada na decisão do CNE. “Eles falam a partir da experiência real que acontece nas escolas. Embora o Cenpec veja com preocupação pela questão da equidade, é importante que o Conselho considere todas as preocupações e defina o que precisa ser aprendido em cada uma das etapas”, diz.
Magda Soares, professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e figura importante em debates sobre alfabetização, acredita que esse processo acontece ao longo de toda a vida. “Quando você tem dúvidas sobre a escrita de uma palavra, de qual é a relação fonema-grafema, você vai ao dicionário para ver como ela é e, nisso, você está se alfabetizando”, exemplifica. “Essa discussão sobre quando começa e quando acaba não tem sentido se você entende como um processo contínuo. Essa fixação de definir 2º ou 3º ano é apenas uma forma de colocar uma expectativa nos professores, nas escolas, nos pais, de modo que o processo se faça de alguma forma”, opina.
Para a professora, um processo bem orientado pode garantir que a criança se aproprie do sistema alfabético até o 2º ano. “Se você quer chamar isso de alfabetização, tudo bem. Mas é um conceito restrito de alfabetização. Para a criança, além de ficar decodificando, saber também escrever e ler pequenos textos, é preciso de mais um ano. Quer dizer, não interessa quando você inicia, mas você tem que dar continuidade e a Base tem que garanti-la”, defende.
A secretária executiva do MEC espera que os dois órgãos possam entrar em consenso para que a Base siga o cronograma de homologação ainda em 2017. “Esse processo está em andamento há muito tempo e nosso objetivo é manter o diálogo e encontrar caminhos”, diz Maria Helena.
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