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Raio-X da Base do Ensino Médio

Conheça a organização do documento, as principais discussões que a envolvem e os desafios que a Base ainda precisará enfrentar para se consolidar entre os professores

POR:
Laís Semis
Foto: Getty Images

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio pode causar um estranhamento à primeira vista. Ela deixa a critério do aluno a escolha por se aprofundar nas áreas que forem mais do seu interesse e busca aproximar o conhecimento da sala de aula do mundo real – aquele do emprego e das contas a pagar. Para compreender como ela está estruturada e as possibilidades que ela pode (ou não) trazer para professores e alunos, é importante entender primeiro a organização do documento.

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Vamos começar pelo básico: a Base do Ensino Médio é bem diferente da Base do Fundamental. Se no Fundamental todas as atuais disciplinas se mantiveram e houve um conjunto (grande) de habilidades para serem desenvolvidas ano a ano, no Médio os reflexos da reforma da etapa de ensino dão as caras. Entre as 13 disciplinas que atualmente fazem parte da grade curricular, apenas Língua Portuguesa e Matemática se mantêm como disciplinas e devem ser oferecidas nos três anos da etapa. Não há, no entanto, indicação de série para as habilidades propostas. As outras disciplinas foram organizadas por área do conhecimento, sendo elas:

-  Linguagens e suas Tecnologias (Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa)

- Ciências da Natureza e suas Tecnologias (Biologia, Física e Química)

- Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia)

Por essa estrutura, duas coisas ficam evidentes: Língua Portuguesa também integra a área de Linguagens, enquanto Matemática forma uma área própria, Matemática e suas Tecnologias. “Tal organização [por áreas] deve contribuir para a integração dos conhecimentos, entendida como condição para a atribuição de sentidos aos conceitos e conteúdos estudados nas escolas”, diz o texto da BNCC. No entanto, a falta de orientações poderá acarretar dificuldades para transpor essa interdisciplinaridade para a sala de aula, na opinião de Maria Amábile Mansutti, coordenadora técnica do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). “A prática docente e a sua formação não vão nessa direção da interdisciplinaridade”, atenta Maria Amábile. Para a especialista, o reconhecimento dos professores nas competências e habilidades propostas pela Base será um desafio. “A formação inicial e continuada é disciplinar, bem como a distribuição das aulas e recursos oferecidos para a sala de aula. Corremos um risco muito grande de ficarmos ainda mais reféns do livro didático”.

Diálogo com as “juventudes” e o mundo do trabalho
A reforma do Ensino Médio foi formulada sob a justificativa de combater os resultados ruins nas avaliações externas, frear a evasão e criar maior identificação dos jovens com a escola. Guiada por princípios da reforma, a Base tem por objetivo atender “a necessidade de não caracterizar o público dessa etapa como um grupo homogêneo”. Uma série de documentos oficiais já trouxeram esses indicativos, mas não foram os modelos que prevaleceram. Um parecer de 2010 do Conselho Nacional de Educação (CNE), por exemplo, já falava que deveriam ser previstos “currículos flexíveis, com diferentes alternativas, para que os jovens tenham a oportunidade de escolher o percurso formativo que atenda seus interesses, necessidades e aspirações, para que se assegure a permanência dos jovens na escola, com proveito, até a conclusão da Educação Básica”.

As próprias Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Ensino Médio, de 2013, falam sobre flexibilização de formatos, componentes curriculares, estímulo à criação de itinerários formativos e profissionalização. No parecer do CNE sobre as diretrizes, publicado em 1998, a flexibilização é colocada como “vantagem para estimular identidades escolares mais libertas da padronização burocrática, que formulem e implementem propostas pedagógicas próprias, inclusive de articulação do Ensino Médio com a Educação profissional”. Essa preocupação com o mundo real e a possibilidade de construir outros percursos seria a resposta para as aspirações presentes e futuras dos jovens na BNCC. Ao promover “competências que possibilitem aos estudantes inserir-se de forma ativa, crítica, criativa e responsável em um mundo do trabalho cada vez mais complexo e imprevisível”, a Base carregaria a expectativa de que a flexibilização, a articulação com o contexto local e a promoção de experiências mais articuladas com o mundo pessoal e do trabalho possam ajudar o jovem a se identificar mais e, consequentemente, permanecer na escola.

Luiz Carlos Menezes, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e leitor crítico da Base, considera, porém, que esse indicativo ainda fica superficial no texto. “A BNCC poderia sinalizar um pouco melhor como isso deve acontecer. Senão, o risco é que as escolas mais tradicionais acabem fazendo mais do mesmo”, diz.

Os itinerários formativos propostos pela reforma do Ensino Médio abrem muitas possibilidades de formato para as escolas. Crédito: Shutterstock

Esse viés profissionalizante tem sido motivo de volumosas críticas por parte de alguns especialistas, sindicatos, associações e educadores. “O que é proposto para o Fundamental é considerado como preparação para a entrada de nossas crianças no mundo produtivo”, diz Inês Barbosa, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), da Universidade Estácio de Sá e presidente da Associação Brasileira de Currículo (ABdC). “No caso do Médio, como os alunos já têm idade para trabalhar, a proposta rouba tempo de qualificação e entrega esse tempo ao empresariado [com a profissionalização]”.

LEIA MAIS A discussão sobre competências, a polêmica mais recorrente da Base

A discussão sobre o tema começou muito antes da Base do Ensino Médio – a própria escolha do uso dos termos “competências” em relação a “direitos de aprendizagem e desenvolvimento” causou grande polêmica. Como a estrutura de competências associadas aos conteúdos disciplinares remete às políticas educacionais propostas por Fernando Henrique Cardoso nos anos 1990 e muitas instituições e fundações do setor privado têm acompanhado de perto a construção do documento, há um receio de que a Educação Básica se volte às questões práticas e imediatas do setor produtivo. Nos folhetos distribuídos pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), ao longo das audiências públicas da Base em 2017, além da “imposição” dos conceitos de competência, as críticas se concentravam também no suposto diálogo da Base com a reforma trabalhista promovida pelo governo Michel Temer, a Lei da Terceirização e como a redução do currículo estaria associada à privatização da Educação.

A proposta da Base para cada área do conhecimento
A Base do Ensino Médio prevê o aprofundamento e ampliação dos conhecimentos estabelecidos para o Fundamental. Na área de Linguagens e suas Tecnologias, o foco é a “ampliação da autonomia, do protagonismo e da autoria nas práticas de diferentes linguagens”, englobando aqui as artísticas, corporais e verbais. Dessa forma, cada componente da área (Arte, Educação Física, Língua Inglesa e Língua Portuguesa) contribuiria, por exemplo, para interpretar criticamente os atos de linguagem e a cultura de convergência, entendendo arte, mídia, mercado e consumo. Em Língua Portuguesa como componente curricular, segue-se a lógica do aprofundamento analítico das linguagens. Nela ganham destaque a cultura digital, os novos letramentos que a envolvem, os processos de circulação de informação e a hibridização dos papéis de produção e consumo.

Para Matemática e suas Tecnologias, para além da resolução de problemas, espera-se que a utilização de conceitos, procedimentos e estratégias sejam usados para formular problemas, descrever dados, e desenvolver o pensamento computacional. Mesmo sendo um único componente que forma uma área do conhecimento, é esperado que os estudantes possam construir uma visão mais integrada da Matemática e de sua aplicação na realidade – para isso, o texto coloca que é preciso levar em conta as vivências cotidianas dos estudantes. De acordo com o documento, é esperado que os aprendizados da área “deem sustentação a modos de pensar criativos, analíticos, indutivos, dedutivos e sistêmicos e que favoreçam a tomada de decisões orientadas pela ética e o bem comum”.

Os conhecimentos contextualizados também fundamentam a área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias. Sua proposta é que “os estudantes possam construir e utilizar conhecimentos específicos da área para argumentar, propor soluções e enfrentar desafios locais e/ou globais, relativos às condições de vida e ao ambiente”. A integração de Biologia, Física e Química deve proporcionar a ampliação das habilidades investigativas e também se aprofundar conceitualmente nas temáticas exploradas pela Base do Fundamental: Matéria e Energia, Vida e Evolução e Terra e Universo.

Já o que fundamenta as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas é “a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos”. É esperado que a partir da construção de hipóteses e elaboração de argumentos os alunos desenvolvam a capacidade de diálogo, possam compreender e problematizar categorias, objetos e processos. “Aprender a indagar, ponto de partida para uma reflexão crítica, é uma das contribuições essenciais das Ciências Humanas e Sociais Aplicadas para a formação dos estudantes do Ensino Médio”, diz a BNCC.

Na avaliação de Luiz Carlos Menezes, a aprendizagem por ações e o conhecimento contextualizado são ganhos que a Base traz. “Há uma mudança do conhecimento acadêmico abstrato, baseado em memorização, pelo conhecimento contextualizado e articulado. Embora isto também esteja presente no Fundamental, é uma característica mais forte no Médio”, explica o professor.

Competências e habilidades: o mínimo comum é mesmo o mínimo
Cada uma das áreas na Base do Ensino Médio conta com competências específicas. Estas devem ser desenvolvidas não somente na parte comum do currículo, mas também nos itinerários formativos. As competências trazem um conjunto de habilidades associadas. “Mas o detalhamento desses tópicos no documento é maior no Fundamental”, diz Maria Amábile. Na Base do Ensino Médio, o número de competências e habilidades é dividido da seguinte forma:

 

Área do conhecimento

Competências específicas

Habilidades

Linguagens

7

28

Ciências da Natureza

3

23

Ciências Humanas

6

31

Matemática

5

52

Língua Portuguesa

7
(usa as mesmas competências de Linguagens)

53

 

Língua Portuguesa traz uma organização diferenciada: embora as habilidades se relacionem com uma ou duas competências específicas, elas são apresentadas em campos de atuação social (vida pessoal, artístico-literário, práticas de estudo e pesquisa, jornalístico-midiático, vida pública). Aqui fica mais claro o contato do aluno com o mundo real, que entra via notícias, redes sociais e impacto de políticas públicas.

No total, temos 7 competências e 53 habilidades em Língua Portuguesa. Para fins de comparação, vale dizer que só em Língua Portuguesa para o 1º ano do Fundamental são previstas 64 habilidades (contando as específicas da série e as que são comuns aos outros anos iniciais, mas devem ser introduzidas já no 1º ano).

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Para Maria Amábile, o texto cumpre com a proposta de continuidade do que foi estabelecido para o Ensino Fundamental, mas traz orientações muito diferentes ao considerar a profundidade de detalhamento. “Se no Fundamental partimos do pressuposto que o detalhamento vai ajudar na construção dos currículos e no trabalho de sala de aula, por que partir de um pressuposto diferente se as condições do trabalho docente e cultura nas duas etapas são semelhantes?”, questiona. O ponto também é apontado por Carlos Menezes, como algo que pode ser melhorado. “Não se trata do número de competências e habilidades definidas para cada área, mas dos fundamentos, que não estão explicitados”, diz.

Inês Barbosa, da UERJ, critica tanto o excesso de conteúdos previstos para o Fundamental quanto o que foi dedicado à etapa final da Educação Básica. “No caso do Fundamental, não deixa espaço para os supostos acréscimos do currículo. É um controle completo do que se ensina nas escolas. No Médio, o mínimo estabelecido pela Base é quase nada”, diz a especialista em currículos.

Desafio para o Ensino Médio
Uma das principais propostas de uma Base Nacional Comum Curricular é que ao definir os conteúdos que todas as crianças e adolescentes devem aprender ao longo da Educação Básica se garanta a equidade de ensino. No entanto, como a flexibilização dá mais autonomia e pede uma mudança na cultura escolar, há um risco potencial – já previsto pelo próprio parecer do Conselho Nacional, de 1998: o de que a autonomia venha a reforçar privilégios e exclusões.

Mesmo as organizações que defendem a existência de uma base como promoção da equidade, como o CENPEC, apontam que se por um lado a flexibilidade e autonomia dadas aos estados nesse processo são interessantes como possibilidade de se conectar mais à realidade dos jovens e dos contextos locais, existe o alerta. “É preciso avaliar e garantir as condições técnicas e financeiras nas diferentes regiões brasileiras, que são diversas e limitadas”, diz Maria Amábile Mansutti. “A consequência pode ser de não conseguir oferecer tudo a todos que precisam e termos uma ferramenta de desigualdade, neutralizando os efeitos desejados pela Base”.

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