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Letramento midiático nos ajuda a conectar com o mundo

A educadora norte-americana Renee Hobbs defende que professores compreendam melhor como usar diferentes mídias em suas aulas para benefício dos alunos

POR:
Soraia Yoshida
Ilustração: Getty Images

Renee Hobbs é uma formadora de formadores. Ao citar as experiências de seus alunos – graduandos e professores na Escola de Comunicação e Mídia Harrington na Universidade de Rhode Island, nos Estados Unidos – ela se entusiasma como se estivesse falando de crianças que estão aprendendo a ler e escrever. A diferença está no grau de complexidade: uma das tarefas que passou aos professores incluía assinalar e destacar os pontos principais de um texto, analisar o ponto de vista do autor e opinar sobre aquele assunto. Dissertação? Nada disso: três tweets de 280 caracteres, como manda a plataforma. “É um ótimo exercício para professores porque o Twitter te obriga a ser conciso, então te torna um comunicador melhor”, afirma Renee.

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Desafios de expressão de ideias nas mais variadas plataformas e mídias compõem a carreira de Renee. Na primeira metade dos anos 1990, a educadora norte-americana criou o primeiro curso de letramento midiático e informacional (media literacy, em inglês) na Universidade de Harvard. Desde então ela escreveu livros que se tornaram referência no tema, como “Discover Media Literacy”, “Copyright Clarity” e “Create to Learn”, este último lançado no ano passado. Com Julie Coiro, ela criou um curso de graduação em alfabetização digital que está aberto não apenas a universitários, mas também alunos do Ensino Médio. Como pesquisadora, ela assinou mais de 100 artigos em publicações especializadas, um dos mais recentes na revista espanhola Comunicar. Ela é fundadora também do Education Media Lab, que oferece treinamento sobre letramento midiático e workshops para escolas e organizações.

Com toda sua experiência nessa área, Renee não enxerga o fenômeno das notícias falsas (fake news) como o “fim do mundo” e discorda daqueles que afirmam que não há salvação para esse mal. Segundo ela, o leitor deve buscar fontes variadas de informação para entender o que está acontecendo – não apenas a grande imprensa. “Não se deve construir hierarquias porque, veja só, fontes diferentes de notícias são boas para diferentes necessidades”, afirma. O importante, enfatiza, é garantir que as decisões tomadas sejam sempre baseadas em boas informações.

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Renee Hobbs, diretora do Education Media Lab: "Quando você consegue compartilhar
seus pensamentos com outra pessoa que passou pelo mesmo processo,
então você reflete sobre suas próprias ideias de maneira mais completa"   

Renee Hobbs conversou com NOVA ESCOLA sobre as possibilidades da alfabetização midiática e seu poder transformador na educação. A seguir, veja os principais momentos da entrevista.

Em que ponto estamos hoje do processo de letramento midiáticp e informacional? Já dominamos e filtramos a informação que chega via internet, TV, jornais da melhor maneira ou apenas consumimos o que aparece pela frente?
Alfabetização midiática não é uma propriedade que alguém pode ou não ter, algo como eu tenho e você, não. É um processo, um hábito que nossa mente desenvolve e que está enraizado na sociedade de informação. Nós temos vivido em uma sociedade de informação por muito tempo, o que traz muitas escolhas. Os critérios para essas escolhas variam bastante. Muitas pessoas buscam conhecimento para se manterem informadas, outras procuram entretenimento para se divertir e há pessoas que estão usando persuasão para influenciar a opinião alheia. Essa explosão de escolhas nos leva a escolhas complexas – e os seres humanos não gostam de complexidade. Se há um atalho, nós tomamos, se nos oferecem uma resposta simples, nós aceitamos. Diante de tamanho volume de informação, nós buscamos formas de reduzir a complexidade. Procuramos respostas simples e, nesse momento, há pessoas que estão usando a informação como uma arma para persuadir outras pessoas. Eles estão prontos para agir e criar uma polarização ainda maior.

Há meios de escapar da armadilha da simplificação?
O processo de alfabetização midiática oferece uma série de ferramentas para nos protegermos contra essa tendência de super simplificação ou deixarmos que nossas emoções interfiram em todas as decisões que tomamos. Eu diria que nos Estados Unidos, cerca de 30% a 40% das crianças no ciclo básico foram expostas a alguma forma de alfabetização midiática no contexto do aprendizado em sala de aula. Então ainda temos um caminho pela frente, mas avançamos em muitos pontos.

Em seu seu trabalho no Media Education Lab, você cita que o aprendizado midiático envolve habilidades de acesso (audição, leitura, compreensão), análise, colaboração criativa, além de reflexão. Qual dessas habilidades se mostra mais difícil no aprendizado do letramento midiático?
Reflexão é muito difícil. As pessoas pensam no ato de refletir como algo muito individual, por exemplo, eu estou sentada no meu escritório, refletindo, tendo grandes ideias e coçando minha barba (risos). Isso não é refletir. Reflexão é um diálogo, uma prática social. A reflexão acontece quando vamos ao cinema, assistimos ao fime e na saída eu te pergunto o que você achou. Eu digo: “Eu gostei do filme porque ele toca em questões sobre a minha geração, renascimento e me conecta com seus ancestrais”. Através deste diálogo, eu começo a entender qual o sentido que o filme tem para mim. E isso não é algo fácil de fazer porque muitas vezes você vai ao cinema com os amigos e ao final ninguém fala sobre o que assistiu porque todos estão cansados e só querem ir para casa ou preferem ir para o bar.

É correto dizer então que está nos faltando aquele momento em que pensamos sobre o que lemos ou vimos e depois expressamos essas ideias nas conversas com outras pessoas.
Isso mesmo. Quando você consegue compartilhar seus pensamentos com outra pessoa que passou pelo mesmo processo, então você reflete sobre suas próprias ideias de maneira mais completa. E para melhorar esse processo, somente com prática. Nas minhas aulas, eu percebi que criar é muito fácil para mim, mas pode ser muito difícil para algumas pessoas. Eu dou aula para professores do ciclo básico e eles me dizem que têm muito receio de atividades criativas. Em sua formação, eles foram ensinados a ser bons profissionais, só que o ato de criar é uma bagunça. Vocês, jornalistas, estão acostumados a criar textos em um padrão muito alto e nós, amadores, não temos como competir. Eu acredito que as pessoas precisam tomar para si esse poder da comunicação e criar suas próprias mensagens. Hoje, nós vemos isso emergindo porque as pessoas estão usando plataformas como o Facebook para criar suas mensagens e leva-las a um público muito maior do que o grupo de amigos. Eles estão se arriscando. Os professores precisam dizer que há riscos quando alguém coloca sua voz na arena pública, as pessoas podem aplaudir, mas também podem te criticar.

Mas o fato de que mais gente está se expressando de forma pública é positivo, principalmente para os jovens.
Sim, com certeza. O letramento midiático enfatiza a ideia de que as crianças podem aprender a expressar suas opiniões de maneira pública desde a infância. Se uma geração de crianças tiver esse letramento como parte de seu aprendizado e praticar com frequência, elas terão menos receio e se sentirão mais seguras a participar do processo democrático.


Como garantir que estamos dando todas as informações necessárias para que os alunos expressem seu conhecimento em diferentes disciplinas, durante todo o ciclo básico?
Esse é o tópico do meu novo livro, Create to Learn (Criar para Aprender, não traduzido para o português). Eu te faço uma pergunta: qual é a melhor maneira de avaliar se um aluno realmente aprendeu algo em qualquer disciplina? Dar a ele um teste de múltipla escolha ou fazer com que ele escreva uma dissertação sobre o assunto? Claro que é a dissertação porque ali ele tem chance de criar alguma coisa. Ao escrever você demonstra sua compreensão de uma forma infinitamente melhor do que ter de preencher um questionário. Isso é algo que os professores sempre souberam e por isso a maioria prefere as dissertações – elas nos oferecem o que está na mente daquele aluno. E você não tem como enganar em uma dissertação. É mais difícil de corrigir, mas é um método bem superior.

Agora, há versões da dissertação que podem ser muito poderosas e que não precisam ter o formato convencional. Por exemplo: fazer uma apresentação em PowerPoint que usa imagens e textos para mostrar que você compreendeu a ideia principal. Você também pode gravar um podcast de dez minutos explicando o tema com suas próprias palavras. Eu faço com que meus graduandos façam uma dissertação em três tweets. Para isso, eles precisam resumir, depois analisar e identificar o ponto de vista do autor. A partir do texto que leram, eles fazem um tweet sobre o assunto principal, o segundo em que mostram que entenderam a visão do autor e o terceiro, em que dão sua opinião. A escolha pela plataforma do Twitter os obriga a serem concisos. E isso os ajuda a se tornarem comunicadores melhores.

E essa dissertação poderia fazer uso de outras mídias.
Há nove formas diferentes que poderiam ser usadas, assim como o texto dissertativo: alunos podem criar um website, um blog, um vídeo, um podcast, fazer uma imagem, infográfico, vlog, animação, uma produção remix. Os textos também são válidos, meus alunos criam formas alternativas, mas continuam escrevendo suas teses acadêmicas. Essa geração cresceu vendo e usando imagens para se comunicar, é uma linguagem muito fácil para eles. A criação de uma nova mídia funciona como um rascunho para o texto e, com isso, eles vão escrever dissertações melhores porque exercitaram sua criatividade no processo de expressar suas ideias naquele formato.

Você disse que esse aprendizado pode começar nos anos iniciais da escola. Pode me dar um exemplo?
Essa abordagem funciona maravilhosamente nos primeiros anos do Fundamental. O professor pode pedir aos alunos para criar um vídeo explicativo, desses que vemos direto no YouTube. São vídeos que ensinam a fazer algo ou explicam um determinado assunto: como consertar a máquina de lavar, como construir legos, etc. O professor pode dizer às crianças: “Vamos fazer um vídeo do tipo ‘como fazer’”. Os alunos podem ter muitas ideias e concluir que devem fazer um vídeo sobre como tomar conta de um animal de estimação. As crianças vão trabalhar de maneira colaborativa, cada um cuidando de uma parte, um como apresentador, outro atrás da câmera, outro na produção. Elas vão criar um roteiro, planejar o que vai aparecer em cada cena e têm que trazer objetos para compor as imagens, por exemplo, como gatos e cachorros vão ao banheiro. E como eles não podem mostrar a coisa de verdade (risos), eles têm que descobrir outras maneiras de representar isso. Dessa forma, eles desenvolvem habilidades sofisticadas de pensamento crítico. Essa é uma experiência de aprendizado muito mais transformadora do que a simples aula expositiva.

Ao trabalhar de maneira colaborativa, esses alunos também vão exercitar e desenvolver habilidades socioemocionais. Você acredita que esse aprendizado é essencial no currículo e deveria constar da formação dos professores ou basta incluir atividades como essa em sala de aula para dar conta?
Da forma como você coloca isso me lembra o trabalho de Paulo Freire. Todas as ideias de alfabetização midiática têm raízes no momento em que educadores norte-americanos tomaram conhecimento do trabalho de Paulo Freire no Brasil, nos anos 1970. Ele reconheceu que nós não poderíamos pensar em termos de educação como um modelo bancário, movendo as propriedades intelectuais de uma cabeça para outra através de aulas. Essa é uma ideia estúpida, que funciona para uma minoria, em geral elites, e é um desserviço para todos os outros. Dessa forma, ele traz um aprendizado baseado na comunidade colaborativa e considera habilidades socioemocionais. Isso é transformador. Então, eu sinto que a única maneira de os professores compreenderem essa pedagogia é experimentando na prática, como se fossem alunos. É por isso que eu peço uma criação conjunta de mídia dos meus alunos professores. Para os meus graduandos, o projeto era escolher uma mídia e criar algo que representasse seu aprendizado. O truque é que a colaboração entre eles deveria ser feita de maneira completamente digital (risos). Isso quer dizer que os professores e alunos nunca se encontrariam na mesma sala, era tudo online. Não é demais? Colaboração não precisa ser cara a cara, pode ser online porque hoje temos essas grandes ferramentas que nos permitem comunicar e colaborar, como conversas por vídeo e Google Doc, em que podemos escrever de maneira conjunta e elaborar projetos criativos incríveis. O que mais me deixa animada é que isso pode ser feito entre professores de todas as regiões do país, explorando sua compreensão de si mesmos como cidadãos do mundo.

E ao ter o sentimento de pertencer ao mundo, eles desenvolvem interesse pelo que acontece do outro lado do planeta e refletem sobre diferenças culturais e sociais, como acontece agora com o Movimento pelos Direitos das Mulheres. Você acha que mudanças como essa devem vir de cima para baixo ou devem ser produzidas primeiro na base e ganhar legitimidade até chegar às instâncias superiores?
Eu sou uma grande apoiadora do movimento de baixo para cima. Quando comecei a dar aulas para professores sobre educação midiática no Harvard Institute, em 1993, foi o primeiro programa do tipo para professores no país. As pessoas não tinham ideia do que significava educação midiática. Éramos 100 professores na sala, sem apoio do Ministério da Educação, do Departamento de Estado da Educação, de nenhum superintendente ou diretor. Os professores vieram por conta própria, por serem apaixonados pelo que faziam e por sentirem que esse conhecimento era importante para seus alunos. Como o sistema educacional americano é descentralizado, ainda hoje não temos uma política federal e apenas alguns estados estabeleceram o ensino de letramento midiático. O que nós conquistamos em termos de currículo foi fruto do trabalho que os professores fizeram lá atrás, convencendo seus diretores e superintendentes de que isso era importante e teria um grande impacto nas escolas.

Então eu acredito que professores podem e devem se engajar em um movimento de baixo para cima. Mas essa é a experiência nos EUA. Na Europa, há pessoas que incentivam uma política de cima para baixo, colocando o letramento midiático na agenda e apoiando financeiramente iniciativas. Qual desses métodos você acha que daria mais certo no Brasil?

Aqui no Brasil, em geral as coisas acontecem de cima para baixo, mas eu acredito que seria muito bom se os professores se sentissem mais empoderados para que o aprendizado contemplasse o currículo nacional e também local. Então, também seria ótimo haver um movimento de baixo para cima.
Esse sentimento com relação aos professores é muito importante. E se esses professores vão se unir para movimentar de baixo para cima, eles precisam conversar e ter tempo para refletir. Como falamos há pouco, em termos de prática social, discutir suas ideias e entender suas necessidades de maneira mais profunda. Eles precisam ter a oportunidade de crescer como uma comunidade e contar com associações e parcerias público-privadas, com apoio da sociedade – para que eles sejam empoderados ainda mais. Esse seria um modelo maravilhoso.

E agora, vamos falar de fake news.
Ah, eu sabia que em algum momento chegaríamos lá (risos). 

Você disse que vivemos num tempo em que temos uma abundância de informações e que há gente disposta a usar isso para nos convencer de alguma coisa. O assunto notícias falsas ganhou muita relevância. NOVA ESCOLA criou um projeto chamado Mentira na Educação, não!, para checar o que é verdade e o que é mentira quando se fala em gestão da educação pública. Mas pensando no Brexit no Reino Unido, na eleição de Donald Trump, por mais que se diga “Isso é real porque saiu no New York Times, no Washington Post, na BBC, no Guardian”, muita gente ainda acredita nos boatos que chegam via WhatsApp. Na sua opinião, essa é uma luta que vale a pena ou estamos diante de uma batalha perdida? 
Eu acho que aqui no Brasil vocês não têm o mesmo nível de desconfiança em relação à grande imprensa, da mesma forma que temos hoje nos Estados Unidos. E acho que vocês têm muita sorte – seus leitores confiam em vocês. Então, valorizem esse confiança, sejam confiáveis. Eu gosto muito da ideia desse projeto de vocês de apontar as mentiras, isso é muito bom. Mas gostaria de dizer uma coisa: eu não gosto da ideia de criar uma hierarquia em termos de notícias. que diz que o Washington Post é sempre melhor do que o New York Times, que é sempre melhor do que a CNN, que é semore melhor do que o jornal local. Não crie essas hierarquias porque, veja só, diferentes fontes de notícias são boas para diferentes coisas. Todos sabemos que os jornais locais compreendem melhor seus leitores. Se eu quero consertar minha máquina de lavar roupa, o Washington Post não vai me ajudar, melhor recorrer a um vídeo no YouTube. Vamos reconhecer que usar diferentes fontes é bom e vamos valorizar precisão, justiça e equilíbrio – as práticas fundamentais do Jornalismo contemporâneo. O jornalismo é apenas uma das muitas escolhas em matéria de informação em nossa sociedade. Há o ponto de vista da testemunha ocular, opiniões de pessoas sobre o assunto. Em resumo, encontre seus amigos e considere a diversidade. Vamos todos sair da bolha e ir para uma grande festa que é o mundo e nos conectar, apesar de nossas diferenças. A mídia pode nos levar a pessoas que estão fora do nosso círculo de amigos, trazer novas vozes e perspectivas. O que importa é que nós tomemos nossas decisões de maneira bem informada. Isso dá apoio à democracia.

 

 

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