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É preciso mudar o olhar e o tempo sobre a Arte na Educação Infantil

Ana Angélica Albano comenta o campo de experiência “Traços, sons, cores e formas”, proposto pela BNCC na Educação Infantil

POR:
Laís Semis
Foto: Edan Cohen/Unsplash

Os pais achavam estranho que a menina, que sempre se mostrava com coordenação motora para desenhos em casa, não tivesse o mesmo desempenho nas atividades de Arte na escola. Não entendendo o problema, o pai questionou a filha sobre as atividades. “Toda vez que eu começo alguma coisa, logo depois tem uma campainha que toca e eu preciso parar”, explicou a menina.

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Não é só o tempo de aprendizado que é diferente para cada criança. O tempo para se expressar e criar, dois elementos fundamentais para a Arte, também. Para Ana Angélica Albano, professora livre docente da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação da Unicamp, é preciso dar mais tempo para que as crianças desenvolvam suas criações. “O problema, às vezes, é como a gente administra o tempo, especialmente em Arte, que acaba ficando para o final da aula”, diz Ana. Mas, não é apenas o tempo de aula que precisa ser maior. O contato com materiais e técnicas também precisa ser maior.

O tempo das crianças

O tema da Arte para os pequenos foi debatido no “21º Seminário de Educação Infantil – As Bases e a Base na Educação Infantil: Reflexões Pedagógicas”, promovido pelo Prisma, o Centro de Estudos do Colégio Santa Maria. Para que as crianças possam desenvolver seus olhares e técnicas desde esta etapa de ensino, é preciso quebrar o mito de achar que é necessário apresentar uma novidade todo dia porque as crianças se cansam rápido das atividades.

Explorar territórios conhecidos também pode ampliar a forma como eles se relacionam e usam esses conhecimentos. “Criança precisa da repetição para aprender. A gente precisa continuar dando os materiais por um tempo para que elas aprendam a falar com aquele material”, afirma Ana Angélica. E, ao dar tempo para as crianças desenvolverem suas relações com os materiais e o mundo, o professor por vezes precisa reajustar seus olhares sobre as produções das crianças e processos do ensino de Arte.

A professora Ana Angélica durante o 21º Seminário de Educação Infantil do Colégio Santa Maria. Foto: Gustavo Almeida

Em uma ocasião, Ana comprou um rolo de papel pardo para a neta. A ideia era que ela tivesse todo o espaço que quisesse para desenhar do tamanho que quisesse. “Nesse dia, eu me achei o máximo”, conta a docente da Unicamp. A surpresa, no entanto, foi que ao invés de usar o espaço do papel, ela quis desenhar na lateral do rolo. “O rolo estava muito mais interessante e ela ficou ali explorando outras partes do material e essa foi a atividade dela”.

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Nos próximos contatos com o material, entretanto, a menina não só desenhou onde a princípio havia sido pensado para tal, como foi incluindo outros materiais na sua produção. Os materiais – sucata, fita crepe e livros com referências de imagens, por exemplo – foram oferecidos a ela sem instruções claras de como deveriam ser usados. A fita crepe, por exemplo, se tornou também superfície para ser desenhada. “Não falei ‘vamos desenhar em cima da fita crepe’. Eu disponibilizei o material e vi o que acontecia. Ela foi acrescentando e fazendo um pensamento visual”, analisa Ana Angélica.

O olhar do professor

“É muito comum ouvir: eu planejei super bem, mas não deu certo porque eles fizeram outra coisa”. Diante da situação, os professores podem se sentir um pouco frustrados. Mas um segundo olhar sobre a atividade pode mostrar o contrário. O exemplo disso é o próprio caso do rolo de papel pardo. “Talvez eu pudesse dizer que o uso do rolo estava errado porque eu queria que ela fizesse um desenho grande”, reflete Ana. “Mas a gente tem que observar para onde vai o desejo da criança”, pondera.

O grande objetivo da atividade, na verdade, era que ela se expressasse e criasse algo. O que aconteceu. Por isso, vale a pena que o professor faça uma análise sobre as atividades que não deram certo porque o resultado foi diferente do planejado. “Às vezes, é o professor que não olhou com atenção, mas a atividade deu certo, sim”.

Espaço para a autoria

Como docente da Unicamp, Ana Angélica acompanhou os estudantes que cumpriam estágio em escolas e retornavam com essas experiências para debater na universidade. “Em 21 anos, o que observei é que pouco mudou no trabalho dos professores em relação à autoria”. Entre o que não mudou estão os desenhos para colorir e as cópias de desenhos e quadros consagrados. “Isso é exatamente o oposto de criar e exercitar a autoria”. E a escola precisa abrir espaço para esse exercício.


O QUE DIZ A BNCC

 “Com base nessas experiências, elas se expressam por várias linguagens, criando suas próprias produções artísticas ou culturais, exercitando a autoria (coletiva e individual) com sons, traços, gestos, danças, mímicas, encenações, canções, desenhos, modelagens, manipulação de diversos materiais e de recursos tecnológicos. Essas experiências contribuem para que, desde muito pequenas, as crianças desenvolvam senso estético e crítico, o conhecimento de si mesmas, dos outros e da realidade que as cerca. Portanto, a Educação Infantil precisa promover a participação das crianças em tempos e espaços para a produção, manifestação e apreciação artística, de modo a favorecer o desenvolvimento da sensibilidade, da criatividade e da expressão pessoal das crianças, permitindo que se apropriem e reconfigurem, permanentemente, a cultura e potencializem suas singularidades, ao ampliar repertórios e interpretar suas experiências e vivências artísticas.”

 Base Nacional Comum Curricular, Campo de Experiência “Traços, sons, cores e formas”, p. 39

“Naturalmente as crianças se expressam nos lugares que elas estão”, diz a especialista que tem como hobby fotografar crianças desenhando em situações cotidianas. Em comum, entre as fotos tiradas por ela nos projetos sociais que atuam nas periferias de São Paulo até os parquinhos públicos da França, há o movimento de crianças que, sem a intervenção de adultos, rabiscam criações, sentimentos e histórias com os materiais que possuem à disposição.

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As possibilidades estão dentro das próprias crianças. É preciso abrir os caminhos. Como exemplo, Ana Angélica compartilha uma experiência que ocorreu quando supervisionava estágios de Arte na Unicamp. “Uma professora trouxe para a sala árvores incríveis desenhadas pelos alunos e eu perguntei como tinha acontecido”. As árvores não eram o estereótipo dos desenhos infantis que ilustravam as copas como arbustos padrões. Isso porque quando seus alunos perceberam que a maioria das lendas brasileiras aconteciam em florestas, a professora decidiu fazer uma imersão no tema. Ao explorar o pátio da escola em busca das árvores que comumente desenhavam, os pequenos se deram conta na observação de que elas eram muito variadas. “Com o exercício da observação, aos poucos, começaram a aparecer folhas e galhos”, relata. Mas a imersão nas árvores, não parou por aí.

As árvores estereotipadas que costumamos reproduzir em desenhos

Constatando com a turma as árvores que existiam na natureza, ela voltou à criação do desenho ao trazer as árvores criadas pela pintora Tarsila do Amaral. Ao questionar as crianças sobre as árvores inventadas pelos artistas e propor um outro desenho do mesmo tema, a professora abriu espaço para que as crianças ampliassem seu repertório e exercitassem sua autoria.

O caminho para que as crianças ganhem autonomia nas suas criações não seria interferir nas produções, mas dar instrumentos e vivências para que o repertório de quem está produzindo se modifique e possa se refletir no que estão produzindo. Muitos caminhos podem ser tomados para se chegar lá. Eles podem ser mais espontâneos como a introdução de diferentes materiais para que as crianças possam explorar como acharem mais atraentes dentro de seu pensamento visual – como o rolo de papel pardo – ou realizadas com uma finalidade mais clara ao fim de um processo. Os processos não se excluem, mas se somam.

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