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Afinal, o Escola Sem Partido é inconstitucional?

A lei permite que estudantes filmem seus professores durante as aulas com o intuito de denunciar doutrinação? Os canais de denúncia de professores “doutrinadores” são legais? Como o movimento contribui para a judicialização da Educação? Entenda os pontos de sustentação e conflito do projeto que almeja acabar com a “doutrinação na sala de aula”

POR:
Laís Semis
Crédito: Getty Images

É mais um dia que parece normal na rotina na escola... até que você é surpreendido por um fato inesperado. Pode ser a visita de um vereador para fiscalizar sua aula. Ou um vídeo em que você, professor, aparece dando aula (descontextualizado ou não). Ou ainda mensagens agressivas de um grupo de pais revoltados com o que você disse na sala. As consequências variam, conforme o caso. Pode ser que uma conversa aberta seja suficiente para resolver o conflito. Mas em outros casos, esses dois minutos de aula que viralizaram na internet podem render demissão e até mesmo ameaça de morte

(confira aqui relatos de quem enfrentou a situação).

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De um lado, o direito dos alunos e de seus responsáveis. Do outro, o dos professores. Algum desses direitos deve prevalecer ou eles podem coexistir? A criação do anteprojeto de lei do Escola Sem Partido (ESP), que serve de modelo para o desenvolvimento de projetos de lei municipais, estaduais e até mesmo federais, está apoiada em direitos previstos pela legislação (confira no infográfico abaixo). Por outro lado, o ESP já foi considerado inconstitucional pelo Ministério Público Federal (MPF) por conflitar com outros direitos previstos em lei.

Para Miguel Nagib, autor e coordenador do Movimento Escola Sem Partido, a proposta não cria direito ou obrigação que já não exista hoje. “Apenas repete, explicita e especifica preceitos, princípios e garantias constitucionais e legais em vigor no país”, escreve o advogado e autor do projeto em parecer sobre a constitucionalidade da proposta. Considerando a característica do público – estudantes de Ensino Fundamental e Médio – seria necessário, de acordo com Nagib, explicitar esses direitos. “[...] Esperar que sejam capazes de deduzir daqueles princípios e garantias as regras de conduta que devem ser observadas por seus professores em sala de aula é esperar por um milagre”, escreve.

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Algumas cidades e estados que aprovaram leis que usam como base os princípios do ESP têm sofrido ações de inconstitucionalidade – ou seja, são leis que vão contra os princípios determinados pela Constituição Federal (CF) de 1988. É o caso do estado do Alagoas e das cidades de São José do Rio Preto e Jundiaí, no interior de São Paulo. Embora as leis tenham entrado em vigor, estão sendo barradas. No caso dos municípios, as ações foram julgadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. “Apesar de terem sido casos específicos, como é o mesmo órgão julgador, a tendência é que a decisão se repita em normas do mesmo sentido no estado”, explica João Paulo Faustinoni e Silva, promotor de justiça do Grupo Especial de Educação do núcleo da capital do Ministério Público de São Paulo.

Todas as leis precisam considerar os objetivos da Constituição e não apenas a legislação sobre determinado ponto. “E pesar se a medida contribui ou afronta esses objetivos”, diz João Paulo. No entendimento do promotor alguns desses direitos seriam violados por normas como as propostas pelo Escola Sem Partido. Entre elas, estaria a livre a manifestação do pensamento, o preparo para o exercício da cidadania, o pluralismo político e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

No caso do Alagoas, o ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), julgou, em medida cautelar, a Lei estadual nº 7.800/2016, que instaurou na rede estadual o programa “Escola Livre” (baseado no ESP) como inconstitucional. A decisão não é final – será julgada definitivamente no dia 28 de novembro –, mas provisoriamente a lei está barrada. Estefânia Barboza, professora de Direito Constitucional na Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que a lei está suspensa até nova decisão, que dessa vez será colegiada (coletiva). “A declaração de inconstitucionalidade da lei tem que ser de dada por, pelo menos, seis ministros do Supremo”, diz Estefânia.

Se a decisão dos ministros do STF no dia 28 de novembro determinar a inconstitucionalidade da lei baseada no Escola Sem Partido, ela deverá servir de precedente para os demais casos relacionados. Como, por exemplo, o projeto que está sendo debatido na Câmara dos Deputados (saiba mais sobre o projeto que está sendo votado na Câmara aqui).

Outro processo que não trata diretamente do ESP, mas que na visão de Estefânia Barboza abre precedentes para o julgamento de que o projeto seja inconstitucional é o processo sobre as operações policiais nas universidades públicas. O caso aconteceu às vésperas do segundo turno das eleições em 2018, sob o argumento de fiscalização de suposta propaganda eleitoral irregular. “Os precedentes são a coerência entre as decisões tomadas pelo sistema judicial”, explica a professora da UFPR.

Em uma decisão, um determinado artigo ou trecho da lei declarado inconstitucional não gera necessariamente esse precedente, mas sim os fundamentos. “Se nos fundamentos, o Supremo já vem defendendo que existe uma liberdade dos professores dentro das escolas e das universidades, pluralidades de ideias e se entendem que isso é um tipo de censura a tentar controlar o que se ensina, eu entendo que pelos precedentes em conjunto será declarado inconstitucional”, diz Estefânia. A decisão do Supremo, no caso das universidades, ainda é provisória.

Nesta sexta, dia 9 de novembro, 116 promotores e procuradores de Justiça "lançaram um manifesto" em apoio ao ESP. O texto, que repudia os "professores ativistas", é uma versão revisada do parecer escrito por Miguel Nagib. Possui substituições, algumas inserções e outras exclusões de palavras, mantendo praticamente o mesmo texto.

O que disse a ministra do Supremo Cármen Lúcia no caso das universidades

“Universidades são espaços de liberdade e de libertação pessoal e política. Seu título indica a pluralidade e o respeito às diferenças, às divergências para se formarem consensos, legítimos apenas quando decorrentes de manifestações livres. Discordâncias são próprias das liberdades individuais. As pessoas divergem, não se tornam por isso inimigas. As pessoas criticam. Não se tornam por isso não gratas. Democracia não é unanimidade. Consenso não é imposição.”

“Também o pluralismo de ideias está na base da autonomia universitária como extensão do princípio fundante da democracia brasileira, que é exposta no inc. V do art. 1o. da Constituição do Brasil.

Pensamento único é para ditadores. Verdade absoluta é para tiranos. A democracia é plural em sua essência. E é esse princípio que assegura a igualdade de direitos individuais na diversidade dos indivíduos. ”

“Toda forma de autoritarismo é iníqua. Pior quando parte do Estado. Por isso os atos que não se compatibilizem com os princípios democráticos e não garantam, antes restrinjam o direito de livremente expressar pensamentos e divulgar ideias são insubsistentes juridicamente por conterem vício de inconstitucionalidade.”

FONTE: Medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental 548/Distrito Federal

Os canais para denunciar professores "doutrinadores" estão dentro da lei?

Poucos estados e municípios possuem de fato alguma lei que respalde as ações baseadas no Escola Sem Partido. De acordo com levantamento realizado por NOVA ESCOLA em abril deste ano, apesar de haver 147 projetos de lei em todo o país relacionados ao ESP ou proibindo conteúdos de gênero nas escolas, apenas 18 estavam em vigor. Isso não impede que o incentivo a expor professores “doutrinadores” aconteça nas redes. Entre os casos que ganharam notoriedade nacional, está o da deputada estadual eleita por Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo (PSL). Logo após o resultado das eleições deste ano, um card pedindo atenção dos estudantes catarinenses começou a circular pelo Facebook e WhatsApp:

“Segunda-feira, 29 de outubro, é o dia em que os professores doutrinadores estarão inconformados e revoltados. Muitos deles não conterão sua ira e farão da sala de aula um auditório cativo para suas queixas político-partidárias em virtude da vitória de Bolsonaro. Filme ou grave todas as manifestações político-partidárias ou ideológica”

No card ainda constavam o pedido de envio do material para um número de celular, em que fosse descrito também o nome do professor, da escola, cidade e garantindo o anonimato das informações. O material era assinado pela deputada eleita. Não muito tempo depois, variações de texto, cores e layouts do mesmo card ganharam as redes sociais em outros estados.

O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) considerou o canal de denúncias ilegal e entrou com uma ação (em andamento). O promotor de justiça Davi do Espírito Santo considerou que a deputada eleita estava implantando um “regime de delações informais e anônimas, objetivando impor um regime de medo e terror nas salas de aula”. Além disso, que ela estaria “desafiando e humilhando professores com suas postagens”. A ação passou por análise do Juiz da Vara da Infância e da Juventude da Capital que determinou que a deputada eleita "se abstenha de criar, manter, incentivar ou promover qualquer modalidade particular de serviço de denúncias das atividades de servidores públicos" e retire do Facebook a publicação que incentiva as denúncias. A decisão é liminar, o que significa que é provisória e deverá ser julgada em instâncias definitivas.

Crédito: reprodução/Facebook

Na decisão liminar, o  juiz Giuliano Ziembowicz pondera o direito de livre manifestação de pensamento da deputada do PSL. No entanto, ele avalia que a publicação nas redes sociais de Ana Caroline Campagnolo “vai além do exercício da liberdade de pensamento e expressão de ideias e críticas, pois convida alunos da rede de ensino a exercer atividade que julga do interesse dos mesmos, criando, inclusive 'canal de denúncias”.

Aluno pode gravar professor em sala?

Pelo menos 20 estados brasileiros possuem leis que regulamentam ou proíbem o uso de celular dentro da sala de aula. Essas leis estabelecem que celulares e outros dispositivos eletrônicos sejam usados somente para fins pedagógicos com acompanhamento do professor e, fique claro, com sua devida permissão. “Quem estimula esse tipo de vigilância, de denúncia, além de estar contrariando essas leis, está acarretando um desserviço à melhoria da qualidade da Educação”, afirma o promotor João Paulo Faustinoni e Silva, de São Paulo.

Em Santa Catarina, o  juiz Giuliano Ziembowicz também considerou  a prática sugerida pela deputada eleita como ilegal, baseado justamente na lei que veda o uso de aparelhos eletrônicos nas salas de aula catarinenses. Além disso, para ele, o pedido de gravar as manifestações “fere diretamente o direito dos alunos de usufruírem a liberdade de expressão da atividade intelectual, científica e de comunicação e que deve ser exercida em sala de aula e no ambiente escolar independentemente de censura ou licença, assim como o direito à 'liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber', bem como ao ‘pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas'” (leia a decisão liminar completa aqui).

Como o Escola Sem Partido contribui para a desvalorização do professor

O ESP chegou instaurando pânico moral entre pais e responsáveis, criando uma cultura de constante vigilância dentro das salas de aula. Sem a definição clara do que seria a “doutrinação”, é necessário questionar se a ação do professor passível de “denúncia” se trata de algo pontual ou que possui frequência dentro de seus discursos.

Considerando a escola como um espaço democrático, deveria haver um esforço na própria comunidade escolar para resolver a questão, através do diálogo com os professores e gestores. “Um aspecto grave desses projetos de lei é que espaços que, por essência, são de construção coletiva, de diálogo, de liberdade, de estabelecimento de confiança e de participação da comunidade passam a ser tutelados excessivamente pela lei ou por autoridades externas”, pondera o promotor João Paulo. O movimento de levar às autoridades de justiça problemas que competem à escola é chamado de juridificação e judicialização dos ambientes educacionais.

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Para Estefânia Barboza, a Educação não é a única área que vem sofrendo com o processo de judicialização. “Há um olhar para o Judiciário como se ele fosse o grande espaço de moralização da sociedade”, diz. Ela explica que houve um movimento que levou muitas questões a partir da Constituição de 1988, de proteção de minorias diretamente para o Judiciário. “As crises políticas levaram várias questões para o Judiciário e, agora, isso acontece na Educação porque há um movimento contrário aos direitos de liberdade já garantidos na Constituição”.

Crédito: Getty Images

Envolver agentes externos à escola é uma atitude legítima, desde que algum direito ou dever não esteja garantido pela instituição de ensino ou, em uma segunda instância, pelo órgão superior à ela – no caso, a Secretaria de Educação. Para que as instituições educacionais responsáveis pelo trabalho pedagógico possam atuar sobre o problema, é necessário que tenham conhecimento sobre o caso. Levar uma questão à diretoria da escola e até à secretaria da rede, a pessoa procurar diretamente um advogado ou outra fonte, é passar por cima das instituições educacionais. Ao abrir uma denúncia externa ou viralizar o conteúdo online, perde-se uma grande oportunidade de exercer a democracia, cidadania e diálogo na escola.

O projeto Escola Sem Partido traz outros problemas. “Entendo que esse tipo de iniciativa parte de uma premissa de desconfiança do docente e de uma suposta não possibilidade de responsabilização dele, o que é falso”, diz João Paulo Faustinoni e Silva, do grupo especial de Educação do núcleo da capital do Ministério Público de São Paulo. Segundo ele, já há normas que possam coibir e oferecer medidas para qualquer excesso em sala de aula, como os estatutos do magistério e do servidor público. “Uma escola aberta, plural, que tenha conselhos funcionando e associações de pais devidamente representadas consegue fazer esse acompanhamento e, se for o caso, denunciar”, diz.

Para o promotor de São Paulo, a prática proposta pelo ESP também violaria outro princípio da Constituição (Art. 206, inciso V): a valorização dos profissionais da Educação. Ela iria contra as políticas públicas mundiais que são proclamadas como um modelo de sucesso educacional. “As reformas na Finlândia, por exemplo, tomam o caminho oposto a esse”, pondera João Paulo. “Há valorização desses profissionais, também do ponto de vista de valorização social da carreira, e autonomia das escolas e dos professores, com pouco controle externo em relação a conduta deles”.

Poucas evidências, muito espaço na pauta

O grupo especial de Educação do núcleo da capital do Ministério Público de São Paulo é responsável por casos de violação ou ameaça a interesses difusos relativos ao direito à Educação e aos princípios assegurados na Constituição Federal. João Paulo diz que, concretamente, o tema aparece muito pouco. Entre os casos mais notórios, estariam o de fiscalização de salas de aula por vereadores.

“Na elaboração desses projetos de lei há pouco embasamento científico e empírico estatisticamente relevante”, considera. “Não me parece que as redes sociais sejam um bom termômetro para se criar leis”. Para o promotor, podem se tratar de casos excepcionais de desrespeito em um grande universo de aulas por dia, considerando as 184,1 mil escolas que existem no Brasil.

A proporção que o tema estaria tomando na pauta do Legislativo e também da imprensa local e nacional seria preocupante, considerando a relevância do tema perante outros problemas que a Educação brasileira enfrenta, como aprendizagem, formação e infraestrutura. “Estamos deixando outros temas que impactam na qualidade. Já temos um problema sério de falta de valorização dos professores que pode se ampliar com essa suspeita sobre os docentes”, diz João Paulo.

Para saber mais sobre as propostas do projeto do Escola Sem Partido que tramita na Câmara dos Deputados, clique aqui.

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