Matéria de capa | Inclusão

Inclusão: a escola é melhor quando é para todos

Apesar dos entraves que persistem dentro e fora da sala de aula, apostar numa escola aberta é o melhor caminho para incluir de verdade

POR:
Pedro Annunciato
JUNTOS: A turma da professora Marli, do 3º ano, da EMEF Paulo Nogueira Filho, em São Paulo

Lá vem o pequeno Leonel. Mãozinha direita tentando alcançar o corrimão, mãozinha esquerda na mão firme da professora Maria Lúcia Baptista Pereira Carramão. Descer a escada é tarefa desafiadora, mas não impossível - especialmente para ele, que tem a sorte de ter um amiguinho como Gustavo, que vai à frente, devagarinho, sem tirar os olhos dos pezinhos que avançam um degrau de cada vez. “Esse é o Leonel. Ele tem mucopolissacaridose”, adianta-se a professora. “O Leonel é muito bonzinho. Mas é daqueles que não vai…” E antes que a frase termina, a garganta de Maria Lúcia fica presa em num nó cheio de angústias e dúvidas. O que Leonel “não vai”? Ler e escrever? Fazer contas de divisão? Passar no vestibular?

Mas agora não há mais tempo para conversas. A turma do 1º ano precisa correr para a quadra, onde a criançada vai participar de uma recreação sobre segurança no trânsito. Os outros coleguinhas já foram. Leonel precisa chegar lá – e, pela pressa do passo, ele está ansioso para participar. Pelos corredores da EMEF Paulo Nogueira Filho, nota-se que o garoto não é o único com deficiência na escola da Zona Norte de São Paulo, considerada referência em inclusão na rede. O prédio de corredores amplos conta com adaptações arquitetônicas, como o piso tátil para cegos, banheiros para cadeirantes e um elevador que liga o térreo ao primeiro andar. São 33 alunos com diferentes tipos de deficiência nos dois turnos, com salas do 1º ao 9º ano. Aqui, o combinado é todo mundo brincar e aprender junto.

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Naquele finzinho do ano letivo, os livros e carteiras já davam lugar às confraternizações, com bexigas flutuando no ar e bolos preparados pelas mães. Numa sala do 3º ano, Juan corre sem parar com o amigo Felipe, mostrando que o isolamento não é um traço presente em toda pessoa com síndrome de Down, como já se chegou a pensar um dia. Logo em frente, outra turma do 3º ano canta músicas ensaiadas com a professora Marli, no momento em que Nicolas, também com síndrome de Down, se sente mais à vontade para sair do fundo da sala e interagir. Em outra sala, João Gabriel até se esquece do andador quando senta em roda com os colegas para brincar com as bexigas.

Enquanto isso, a coordenadora Roberta Claussen anda de lá para cá, levando pastas, abrindo portas, conversando com alunos e professores.

Entre uma pausa e outra, senta na sala da coordenação para falar um pouco do trabalho. “Temos fichas de cada um dos alunos com deficiência, onde a gente anota tudo o que observa neles”, diz a gestora, enquanto gira a cadeira e se estica para pegar, dentro de um armário atrás da mesa, a grande pasta com os 33 relatórios pedagógicos produzidos à mão por cada professor. No alto, aparece o nome do aluno, da turma, da professora regente, do diagnóstico clínico. “E aqui temos também o professor Paulo Cesar dos Santos, da SMR (Sala de Recursos Multifuncionais). Você tem que conhecê-lo.” Abaixo, uma tabela separa a descrição das características do estudante quanto aos seguintes aspectos: afetividade, socialização, cognição, oralidade, motricidade e meio social/ familiar. Por fim, aparecem as potencialidades observadas, as dificuldades observadas e os objetivos de aprendizagem.

Roberta conta que, de 2016 para cá, a escola tem ampliado os esforços para ser inclusiva. Ao sair para mais um passeio pelos corredores, a coordenadora cruza com Paulo Cesar dos Santos, o professor da sala de recursos multifuncionais – ou, como se diz lá, “o especialista em inclusão”. Sorridente e solícito, ele anda pela escola o tempo todo. “Eu não vou ser muito preciso quanto à questão do meu tempo de docência, mas já tenho uma década e meia oficialmente”, afirma Paulo. “O meu papel na escola é fazer uma parceria com o professor da sala regular. Por que uma parceria? Porque esse indivíduo, quando chega na escola, não é meu aluno. Ele vai compor um grupo, e ele pertence a este grupo. Se a gente pensa na inclusão, esse processo tem de acontecer no espaço que a criança frequenta, no espaço que é dela. E esse espaço de pertencimento é a sala de aula.”

Na prática, o professor analisa, juntamente com os colegas, caso por caso, e propõe um plano de desenvolvimento individual, que prevê ações focadas na sala de aula e, no contraturno, na sala de recursos. Uma vez por semana, Paulo atua dentro de cada sala regular “para apoiar o professor, e não o aluno”, como ele faz questão de ressaltar. No ano passado, cada um dos estudantes produziu, com apoio dele, um portfólio de atividades. Trabalhos artísticos, de escrita e de outros gêneros preenchem os envelopes construídos pelo próprio professor com folhas de papel-cartão e barbante.

Esse trabalho é um desafio para todos na escola. “A questão das relações é onde imbricam as coisas. Aqui não seria diferente. Somos humanos, falhos, e existem diferentes concepções em torno da Educação. A gente ainda esbarra em algumas concepções de descrença ante o aluno. Ainda tem. Pouco, mas tem”, confidencia o educador.

A luta para tornar a escola inclusiva não é fácil, principalmente diante da necessidade de dar atenção a cada aluno. “Tenho 25 crianças, não consigo sentar individualmente com o Nicolas, por exemplo. O Paulo consegue que ele faça as coisas porque pode sentar com ele”, revela a professora Marli. O menino passa a maior parte do tempo ocupado com letras móveis coloridas. Mas como ele não é alfabetizado, Nicolas só consegue tirá-las do pote e colocá-las de volta nele. “Quando ele termina, um coleguinha derrama de novo as letras e ele faz tudo de novo”, conta a docente.

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Maria Lúcia também não consegue sempre desenvolver atividades pedagógicas com Leonel. O plano de desenvolvimento do garoto previa três objetivos de aprendizagem: o primeiro era ensiná-lo a sentar e ficar menos no chão; o segundo, ajudá-lo a não colocar tudo na boca; o terceiro: auxiliá-lo a não bater constantemente os objetos nas superfícies que encontra pela frente. “O Paulo afirma que ele avançou, mas eu não consigo ver…Só percebo que passei a ser um referencial para ele, que não gosta de ser tocado, mas que, para mim, olha e pega na mão”, relata Maria Lúcia.

A grande preocupação dela e dos colegas diz respeito ao segundo objetivo. Todo mundo está sempre atento com pontas de lápis, brinquedos, papéis ou qualquer outra coisa que ele possa colocar na boca. Para distraí-lo, a professora encontrou uma solução: abriu a porta do armário próxima à carteira do aluno e pendurou um pedaço de arame nela. Na ponta do arame, prendeu uma desgastada galinha de borracha, sempre pronta a ser mordida pelo Leonel.

Vale a pena?

Em 2008, o Brasil aprovou o que Maria Teresa Égler Mantoan, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Diferença (Leped), considera ser “a mais avançada legislação do mundo” em termos de inclusão. A lei garante o direito dos alunos com deficiência de não apenas frequentar a escola regular, como também ter acesso a todos os recursos necessários para superar as barreiras ao seu desenvolvimento. “A legislação trouxe uma ideia nova e poderosa. Com ela, vem também a dificuldade de ser bem assimilada”, afirma Maria Teresa, que participou da construção do marco legal atual.

A dificuldade em tornar a inclusão real tem provocado discussões sobre esse pilar central da política brasileira. Parte das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAEs) e de outras entidades reivindica alterações que permitam a recriação das salas especiais. Vale lembrar que as escolas especiais continuam existindo e são legais, segundo a legislação atual. “É importante que, antes de pensar em reforma do sistema, o MEC faça um balanço sobre o que deu certo e o que deu errado na política atual. Precisamos saber quais são os pontos frágeis e fazer uma revisão que aponte para o alargamento da política, e não por um retorno dela”, defende Liliane Garcez, gerente de programas do Instituto Rodrigo Mendes.

A maioria dos especialistas ouvidos por NOVA ESCOLA defende que os ganhos que a socialização na escola regular proporciona são enormes para todos. A psicanalista Cristina Abranches é diretora-superintendente do Centro de Atendimento e Inclusão Social (Cais), a antiga Apae de Contagem (MG). O centro funcionava como uma escola especial e hoje só faz atendimentos no contraturno. “Desde então, nossos resultados melhoraram enormemente. O jogo social da escola regular ajuda as crianças a desenvolver potencialidades que antes ficavam invisíveis na escola especial”, afirma Cristina.

Essas são as evidências que sustentam a crença do professor Paulo no poder da inclusão. Quando perguntado sobre esse tema, ele responde com uma história. “Nós temos uma aluna cadeirante que tem os membros encurtados, interação tátil limitada, baixa visão, não oraliza, se alimenta por sonda, usa uma traqueostomia.” Diante de tantas dificuldades, conta, a mãe considerou tirá-la da escola. “Eu disse a ela: ‘Ainda que a sua filha venha só para ficar olhando para o teto, o teto daqui é diferente do teto do quarto dela. E, no caminho da casa à escola, ela sente o carro chacoalhar, o ventinho no rosto, ouve barulho de buzina. Isso a ajuda a se conectar com o mundo’. Quando eu terminei, a mãe concordou e lembrou que a filha ficava agitada na hora de ir para a escola e tinha dias melhores.”

O professor pausa e conclui: “Veja como é importante garantir para esse indivíduo estar junto de todos. Ele tem direito”.

A INCLUSÃO EM DADOS

29% das escolas da rede pública têm dependências consideradas acessíveis, com recursos como elevadores ou rampas, piso tátil, etc. 

39% das escolas da rede pública têm sanitários acessíveis aos alunos com deficiência.


Fonte: MEC/Censo Escolar

Fontes: site Inclusão Já, de Maria Teresa Mantoan, Meire Cavalcante e Claudia Grabois/MEC/Censo Escolar
Consultoria: Maria da Paz Castro

Fotos: Tuane Fernandes