Como promover a cultura de paz nas escolas?
Apesar das tragédias e de toda a dor, é possível que a escola construa uma convivência que supere a violência
POR: Pedro Annunciato
O dia 13 de março de 2019 jamais será esquecido por todos que trabalham pela Educação, que acreditam na Educação. Porque naquele 13 de março de 2019 a crença de que um mundo melhor é possível, de que vale a pena gastar a vida para ensinar, de que a escola é o espaço onde as diferenças podem conviver em harmonia, ficou suspensa. Naquele 13 de março de 2019, as coisas perderam o sentido.
Afinal, de que adianta sair de casa de manhã para encarar uma sala de aula? Para ser xingado pelos alunos? Para apanhar? Para ser morto por assassinos cruéis? Por um momento, nos imaginamos no lugar da coordenadora Marilena, que naquela manhã de 13 de março de 2019 recebia os alunos da EE Raul Brasil no saguão de entrada – sorrindo com eles, quem sabe. Por um momento, pensamos que este país violento, estúpido, corrompido até a medula, não tem mais jeito.
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Na terça-feira seguinte ao massacre, 19 de março, a mais antiga escola da cidade de Suzano (SP) reabriu as portas. Não houve aulas. A direção, os funcionários, os professores e dezenas de psicólogos e técnicos da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo prepararam um dia de acolhimento e escuta, aberto aos jovens, mas também às famílias. Do lado de fora, dava para ouvir um pouco do que acontecia lá dentro. Uma trupe de palhaços voluntários estava no pátio brincando com os adolescentes, que cantavam, riam e pisavam com força no chão de concreto, como se corressem e saltassem de um lado para o outro. De quando em quando, um grupo de alunos deixava a escola conversando animadamente. “Esta semana vai ter só futebol”, comentava um dos garotos. A Igreja Messiânica Mundial do Brasil, bem em frente à escola, continuava aberta para quem precisasse de conforto. Desde o dia do ataque, a comunidade estava mobilizada para colaborar no que fosse possível. Era a vida voltando devagarinho ao bairro.
A Secretaria de Educação não autorizou a imprensa a entrar na escola para acompanhar a retomada das atividades. No fim da tarde, uma mulher alta e de cabelos curtos, acompa- nhada de uma colega, saíram pelo portão dos fundos da escola, ainda com os crachás da secretaria pendurados no pescoço. “Hoje infelizmente não podemos falar nada. Mas fique com o meu telefone”, disse a mulher, tirando da bolsa o cartão de visitas.
Alguns dias depois, ela atendeu a reportagem de NOVA ESCOLA por telefone. Alcione Marques é psicopedagoga, mestranda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretora da Neuroconecte, empresa especializada em formação de professores sobre questões de saúde mental e emocional. A organização já prestava serviço à rede estadual e agora precisou atuar de forma emergencial. “Toda a rede foi atingida de alguma maneira. Orientamos as escolas a abrirem espaço para que se falasse do assunto. Nesses momentos, tentar fingir que nada está acontecendo não faz sentido”, explica a psicopedagoga.
Alcione e a equipe da Neuroconecte participaram do trabalho de reabertura da escola. Junto a um enorme time de profissionais de várias áreas, ela recebeu alunos e familiares, que se reuniam em grupos de no máximo 20 pessoas. A proposta era que todos pudessem falar sobre o que estavam sentindo. “O que eu vi, para além de relatos de muita dor, de muito medo, de muita perplexidade, foi a força da comunidade dessa escola... As pessoas não eram obrigadas a ir naquele dia, e tinham pais, avós, irmãos, que foram lá prestar solidariedade”, lembra a diretora.
O trabalho de recuperação é complexo e deve levar ainda muito tempo. Não há prazo para que ele termine, nem estimativa de quando tudo vol- tará ao normal. A Raul Brasil precisará enfren- tar, além dos problemas comuns à realidade das escolas públicas brasileiras, o trauma de uma tragédia violenta de dimensões raras. Precisará também firmar o seu papel de uma instituição que constrói a paz em Suzano.
Não à violência
A ideia de formar uma sociedade fundada sobre os princípios da não violência vem pelo menos desde a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945. A comunidade internacional estava preocupada com o futuro e desejava constituir um organismo que fosse capaz de resolver conflitos pela via do diálogo e da cooperação, a fim de evitar que os horrores da Segunda Guerra Mundial se repetissem.
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Mais do que um projeto geopolítico, a ONU entendeu que o sucesso da empreitada dependia diretamente da Educação. Por isso, um ano depois, ela criou a Unesco (sigla em inglês para Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), com o objetivo claro de fomentar nas futuras gerações as competências necessárias à não violência. “Os pilares da cultura de paz estão na própria origem da organização”, explica a atual diretora e representante da Unesco no Brasil, Marlova Jovchelovitch Noleto.
Em 1999, no 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Unesco sintetizou esses princípios no Manifesto 2000, documento criado por um grupo de premiados com o Nobel da Paz, com nomes como Nelson Mandela e o Dalai Lama. O manifesto estabelece seis alicerces básicos, que passaram a orientar os programas desenvolvidos pela Unesco junto a governos do mundo inteiro: respeitar a vida, rejeitar a violência, ser generoso, ouvir para compreender, preservar o planeta e redescobrir a solidariedade. As ideias defendidas pela cultura de paz ganham formas mais ou menos semelhantes entre diferentes pensadores e regiões do mundo. A Unesco, quando se refere à aplicação desses princípios à escola, fala em “Educação Para a Paz”. Já no Brasil e em países como a Espanha, prefere-se utilizar expressões como “convivência democrática” e “convivência positiva”.
A Espanha, aliás, tornou-se referência internacional, nos últimos 30 anos, na construção de políticas públicas de Educação voltadas à paz e à melhora do clima escolar. E esse fato não é mero acaso. Durante boa parte do século 20, o país foi dilacerado por revoluções, guerras e governos autoritários. De 1936 a 1975, a Espanha permaneceu sob a ditadura franquista, e mesmo após o fim do regime os conflitos eclodiam em forma de lutas separatistas, como a do ETA (Euskadi Ta Askatasuna, ou “Pátria Basca e Liberdade”, em tradução livre). “Esse empenho da Espanha veio de baixo para cima: as escolas e a população sentiram a necessidade de mudar essa realidade”, conta Telma Vinha, pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). Todas as escolas do país são obrigadas a formular, junto à comunidade, um plano de convivência que inclui projetos de combate ao bullying, além da formação de grupos treinados para lidar com conflitos. Em algumas instituições, uma equipe de alunos mais velhos, identificados com coletes amarelos, é preparada para mediar conflitos entre os mais novos.
No Brasil, apesar de algumas semelhanças com a Espanha (aqui também passamos por um regime militar autoritário), o esforço por uma cultura de paz nas escolas ainda é escasso. Uma pesquisa realizada em 2013 por um grupo de estudiosos liderados por Suzana Menin, na Universidade Estadual de São Paulo, procurou avaliar projetos sobre convivência democrática. Mais de 1,5 mil escolas se candidataram a participar da pesquisa, mas apenas 2% delas cumpriam os requisitos mínimos exigidos. Outro número que chama atenção: 71% dos formuladores desses projetos nas escolas (professores e gestores) nunca haviam recebido formação sobre o tema.
Os pesquisadores do Gepem, uma das principais referências em clima escolar no Brasil, elenca pelo menos três pilares fundamentais para um projeto que pretenda mudar a realidade da escola. O primeiro pilar diz respeito à formação de todos os profissionais da escola (professores, gestores e demais funcionários) sobre os problemas de convivência mais comuns e as formas de intervenção em cada um deles. A ideia é que os educadores desenvolvam primeiro as competências relacionais, sociais e emocionais desejáveis para uma boa convivência, como empatia e capacidade de escuta e de comunicação assertiva, para que se sintam seguros e estejam aptos a atuar junto aos alunos e às famílias.
O segundo pilar refere-se à inserção dos valores, regras e questões de convivência como objetos de estudo. Em geral, as escolas que fazem esse trabalho implantam uma ou duas aulas por semana, nas quais os alunos desenvolvem a capacidade de expressar sentimentos e controlar a raiva ou a agressividade, discutem estratégias de combate ao bullying e soluções para situações hipotéticas de conflito, além de assembleias para discutir os próprios problemas coletivos.
Já o terceiro pilar é a mudança de organização e de cultura da escola em relação à convivência. Passa pela abertura de canais democráticos para a discussão de valores e regras, por meio de assembleias que envolvam todos os estudantes, e da implantação de procedimentos e grupos de trabalho que visam ao bom clima escolar. Práticas como a mediação de conflitos e a formação de alunos capazes de auxiliar os adultos na resolução de problemas são alguns exemplos.
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Papel privilegiado
Uma angústia comum dos educadores é sobre o papel da escola na formação integral do aluno. Não seria exigir demais dos professores ter “educar”, além de “ensinar”? Será que a escola é capaz de fazer isso?
Não há respostas claras para essa pergunta, mas Alcione Marques lembra que escola tem um papel privilegiado na vida dos jovens. “O poder da escola é enorme! Os adolescentes estão lá todos os dias, e muitas vezes é lá que eles encontram as únicas referências de adulto positivas”, diz. Ela cita como evidência disso o famoso trabalho da pesquisadora Miriam Abramovay, que, entre outros dados, mostrou que a maioria dos jovens (37,6%) considera que a escola é o melhor meio para mudar de vida. Ou seja, eles confiam no poder transformador da escola.
Para o psiquiatra Gustavo Estanislau, do Projeto Cuca Legal, da Unifesp, é necessária uma mudança de mentalidade. “O medo do outro, a desvalorização profissional, pode levar o professor a pensar que não adianta. E aí ele fica ainda mais distante dos alunos. Se mudarmos o mindset, as coisas podem começar a melhorar.”
Essa mudança passa, basicamente, por deixar de ver no trabalho de uma educação para a paz uma tarefa adicional, e sim, um facilitador do trabalho. Dezenas de estudos mostram uma relação direta entre desempenho acadêmico e melhora do clima escolar. Foi o que mostrou, por exemplo, uma análise publicada pela Child Development, uma das principais revistas de psicologia infantil dos Estados Unidos. A pesquisa feita com 270 mil alunos de 213 escolas americanas mostrou os impactos positivos de programas voltados ao desenvolvimento de competências socioemocionais nas notas dos estudantes.
E não é só o aluno que sai ganhando. Outro estudo, realizado pela Universidade de Viena, na Áustria, demonstrou o óbvio: a boa relação com os estudantes melhora o bem-estar do professor. Os pesquisadores mediram o nível de cortisol, o hormônio do estresse, na saliva dos docentes em diferentes situações do dia e em contextos escolares distintos (isto é, mais hostis ou mais pacíficos), mostrando que docentes que mantinham relações de maior qualidade com suas turmas tinham níveis muito mais baixos da substância no organismo, o que repercutia na qualidade de vida geral dos profissionais de Educação.
Essas evidências e experiências exitosas, no Brasil e no exterior, ajudam a compreender que a escola não apenas possui, sim, um poder transformador diante da realidade, como uma posição privilegiada de atuação na construção da paz. Apesar de toda dor e de todo sofrimento, aquele 13 de março de 2019 nos faz pensar que não podemos duvidar disso.
Ilustrações: Zé Otávio
PARA SABER MAIS
Paz, Como se Faz? Semeando cultura de paz nas escolas
Publicação gratuita produzida pela Unesco com práticas e conceitos sobre cultura de paz.
Acesse: bit.ly/unesco-paz
Protocolo de intervenção após casos de violência dura em contextos escolares
Roteiro produzido pelo Gepem, com propostas de ação para professores e gestores.
Acesse: bit.ly/protocolo-gepem
Saúde Mental na Escola: O que os educadores devem saber
208 págs., 55 reais
Livro organizado pelos psiquiatras Gustavo Estanislau e Rodrigo Bressan, do Projeto Cuca Legal, na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).