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Como usar Guimarães Rosa para despertar a vontade de ler e escrever

Veja como Ana Cláudia Santos trabalhou diferentes habilidades e formatos para desenvolver senso crítico e resgatar valores da cultura local

POR:
Camila Cecílio
A professora de Língua Portuguesa Ana Cláudia Santos com os alunos que participaram do projeto O Ser(tão) de Cada Um, que mergulhou no universo literário de Guimarães Rosa, mas com referências contemporâneas   Crédito: Gustavo Andrade

João Guimarães Rosa é considerado um dos escritores mais complexos da literatura brasileira. Sua escrita desafiou até mesmo outros intelectuais de sua época, como o poeta Manuel Bandeira, que escreveu uma carta a Rosa para falar da dificuldade de compreender as palavras e as colocações do escritor mineiro. Mas essa crença, que até então era um obstáculo, foi derrubada pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Padre Paulo, em Santo Antônio do Monte (MG). 

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Isso foi possível graças à sequência didática criada pela professora de Língua Portuguesa Ana Claudia Santos. Para trabalhar Guimarães Rosa com a turma, ela elaborou, em 2018, o projeto O Ser(tão) de Cada Um, onde traçou uma série de atividades para ler e interpretar contos do autor. “Eu percebi que meus alunos não tinham o hábito da leitura e sentiam dificuldades em relação à literatura brasileira. Escolhi Guimarães Rosa justamente pela complexidade, por nos desafiar o tempo todo”, conta Ana Claudia que, pela segunda vez, foi uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10.

A turma passou a estudar os aspectos estilísticos dos textos roseanos por meio de obras, textos e vídeos. Ao longo de três meses, os estudantes criaram produções orais, refletiram sobre a relação entre a obra e a realidade, escreveram cartas para Guimarães Rosa e produziram uma apresentação em stop motion. “O meu intuito era fazer com que os alunos percebessem dentro do conto uma representação simbólica daquilo, que a literatura traz realidades metafóricas que traduzem a história de uma época, e qualquer um pode se identificar com isso”, afirma a professora.  

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Ana Claudia diz que o que mais chamou sua atenção durante o andamento do projeto foi sua aproximação com os alunos. Diante das dificuldades em algumas atividades, como o stop motion, a professora chegou a ir na casa dos estudantes para ajudá-los. “Esse contato mais próximo me fez perceber mais a realidade dele, é um contexto diferente do da escola. E ali eu era aprendiz como eles, encarando aqueles desafios todos. Isso foi o que tornou o trabalho muito mais enriquecedor e posso dizer que todos nós aprendemos”, ressalta. 

Aluna escreve carta como parte do projeto Ser(tão), da professora Ana Cláudia Santos sobre a obra de Guimarães Rosa  Crédito: Gustavo Andrade/Nova Escola

Como posso desenvolver esse projeto na minha escola?

Segundo Ana Claudia, o projeto pode ser adaptado a qualquer realidade, basta que as releituras estejam articuladas às vivências e experiências dos estudantes. “Levei cerca de três meses para realizar o trabalho todo, trabalhando uma aula por semana, que representa a carga horária destinada ao estudo de literatura”, explica. A seguir, as etapas trabalhadas pela professora.  

1. Sondagem: fizemos uma revisão dos conceitos e estilos literários, contação de histórias para que relacionassem as alegorias apresentadas ao contexto atual e aos valores expressos. Assistimos ao vídeo de divulgação do espetáculo Travessia, seguido de uma produção livre com o tema A travessia de cada um. Foi feita então uma leitura do conto Famigerado e fragmento, retirado da obra Grande sertão: veredas (a estrutura argumentativa) que conclui que o mal que está internalizado nos seres, nas coisas. Leitura da obra em quadrinhos Grande Sertão: Veredas – O diabo na rua no meio do redemoinho.

2. O saber do povo sob o olhar roseano: fizemos a leitura de “Carta de Manuel Bandeira 'O romance de Riobaldo‘, com análise e discussão do texto Aforismos em Grande Sertão: veredas.

3. Diálogos com o Modernismo: para sintetizar a ideia principal do enredo do conto, delineamos a estrutura narrativa seguida pelo autor, contextualizando e relacionando a história ao mundo atual.

4. Fruição: a interlocução entre obra, autor e leitor pressupõe não só o estranhamento, o levantamento de dúvidas, mas também uma forma de trocar conhecimentos e ressignificar a informação, a metáfora de uma época. Foi aqui que utilizamos o stop motion.

5. Compreensão da sociedade: os alunos aprenderam a ler imagens, treinar o olhar para sensibilidade e buscando sempre uma relação com a obra de Guimarães Rosa.

 

O Ser(tão) de Cada Um - POR Ana Cláudia Santos

Crédito: Gustavo Andrade/Nova Escola

DISCIPLINA: Língua Portuguesa
INDICAÇÃO: Ensino Médio (pode ser adaptado para outras etapas)
DURAÇÃO: 3 meses

O que é o projeto?
O Ser(tão) de Cada Um
buscou nas raízes dos escritos de Guimarães Rosa mecanismos para traduzir as feições universalistas, valorizando o poder transformador que a leitura pode ter. “Tracei um diagnóstico das turmas para que eu pudesse me situar diante do interesse deles pela arte literária; elaborei um roteiro de estudos dos contos de Guimarães Rosa, sempre relacionando-os às vivências e às experiências dos alunos”, diz a professora. Outro ponto importante do projeto foi a leitura de uma carta escrita por Manuel Bandeira ao escritor mineiro, em que o conhecido autor questiona a dificuldade de compreender as palavras e colocações de Rosa. “Para nosso projeto foi algo muito significativo, pois os alunos puderam perceber que qualquer leitor pode ser desafiado, basta aceitar o embate com as palavras”, diz Ana Claudia. Os alunos foram convidados a escrever também suas cartas a Guimarães, contando suas impressões sobre a obra e os personagens. Para criar uma interação com as atuais mídias digitais, os alunos transpuseram as obras lidas para o formato digital, com a produção de stop motion. Eles também fotografaram cenas do seu cotidiano que fossem representativas para suas vidas e da comunidade na qual vivem, a partir do entendimento do trabalho do fotógrafo Sebastião Salgado, premiado por trabalhos como o registro de povos em migração e o garimpo em Serra Pelada, este último usado neste projeto.

Do que vou precisar? 

Quais os objetivos trabalhados?
- Observar e analisar textos literários e artes em geral e perceber como se relacionam com a realidade
- Reconhecer a literatura como expressão artística da linguagem e suas relações com os contextos histórico e sociocultural
- Desenvolver a capacidade de apreciar a literatura, enquanto arte, com senso crítico e estético, como forma de compreensão de si mesmo e do mundo. Relacionar a própria realidade às produções literárias
- Interagir com os textos modernistas, procurando compreender as possíveis relações que eles mantêm com fatores econômicos, sociais e culturais de uma época, e procurando perceber neles relações intertextuais
- Resgatar valores e tradições da cultura local. Dentre as competências gerais da BNCC, podemos destacar:

  • Conhecimento;
  • Repertório cultural;
  • Cultura digital; 
  • Comunicação.

E os desafios? Como encará-los?
Um dos principais desafios foi envolver os alunos no universo literário. Muitas vezes, crianças e jovens não percebem a literatura como um mundo de possibilidades, uma janela para saberes diversos. Outro ponto importante é aceitar o novo: muitos não sabiam o que era stop motion. “Tivemos que buscar técnicas que facilitassem a produção, além da socialização de conhecimento e informação entre os próprios alunos”, conta Ana Claudia. 

E no final? O que meus alunos vão aprender?
“A partir da exposição oral ou escrita dos alunos, pude perceber a interação, através do uso das linguagens verbal e não verbal, as experiências da vida em sociedade representadas pela arte literária como parte de um diálogo ao mesmo tempo múltiplo e singular, primando pelo respeito à diversidade”, diz Ana Claudia. Ao estabelecer uma relação intertextual entre as obras de arte e a literatura, a leitura dos signos linguísticos ganhou uma visão ampliada de textos e contextos. Essa releitura incluiu a investigação e reconstrução de ideias relacionados ao cotidiano dos alunos. “Foi importante para que os alunos pudessem desenvolver um espírito crítico frente ao conceito de literatura, enquanto arte, bem como comparar recursos peculiares das diferentes formas de manifestação da linguagem”, conta a professora. “Através das linguagens artísticas, os alunos foram estimulados a ampliar seu repertório. Os textos passaram por um processo de escrita e reescrita, a fim de melhorar o aluno enquanto autor e não simplesmente o texto”.

O projeto teve desdobramentos?
O projeto passou a integrar a agenda do primeiro Festival de Literatura de Santo Antônio do Monte que revisitou o universo de Guimarães Rosa. “Quem participou e se encantou com aquele momento não será mais o mesmo”, diz Ana Claudia. “Houve quem chorasse emocionado em uma oficina de estandarte ou perdesse a paciência por não conseguir passar a linha na agulha. A religiosidade antonina, tão presente em nossa cidade, ganhou destaque com a arte sacra. Guimarães Rosa nos fez conhecer a profundidade da terceira margem, perceber Diadorim em corpo, movimento e dança”.

Ana Cláudia Santos é natural de Santo Antônio do Monte, atua como professora de Língua Portuguesa e Literatura na rede pública de ensino há cerca de 20 anos. Graduada em Letras pela Unifor-MG, especialista em Língua Portuguesa e em Gestão, Inspeção e Supervisão Escolar pela PUC-Minas, já cursou disciplinas no Mestrado em Educação, Cultura e Organizações Sociais pela FUNEDI/UEMG. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10 nas edições de 2014 e 2018.

 

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