Da pandemia nasce uma nova relação entre escola e família
Cerca de três em cada dez professores afirmam que os pais têm participado das tarefas escolares à distância
POR: André BernardoAs fotos desta reportagem foram tiradas remotamente pela fotógrafa Tainá Frota, através de videochamada com a professora Jane Ravagnani
Em maio deste ano, a professora Jane Ravagnani, 55 anos de idade e 36 de formação, começou a ensinar seus alunos do 2º e 3º ano das Escolas Municipais Menino Deus e Eça de Queirós, ambas no município de Lucas do Rio Verde (MT), a falar e a escrever os nomes dos cômodos e dos móveis de uma casa em inglês. Para enriquecer o conteúdo, ela passou um exercício de montar pequenas maquetes. Mas, atenção: nada de ir à rua, em plena pandemia, para comprar material! A proposta foi usar o que tivessem em casa: caixas de fósforo, tampas de garrafa, pedaços de papelão... Para os alunos do 2º ano, a maquete seria da casa em si. Para os do 3º ano, de um dos cômodos, do que mais gostassem.
Dentro de algumas semanas, os primeiros registros das maquetes, em fotos ou em vídeos, começaram a chegar. E o resultado, garante Jane, superou as expectativas. “O retorno foi maravilhoso. Fiquei emocionada ao saber que teve mãe que costurou a ‘cortininha’ da sala com retalhos de pano”, relata a professora. “Mais do que trabalhar o vocabulário em inglês, como ‘living room’, ‘bathroom’ e ‘kitchen’, proporcionei às minhas turmas um momento de confraternização familiar. Pais e filhos sentaram juntos para fazer a tarefa escolar. As crianças já estão em casa, trancadas, sem poder sair ou brincar. Se não houver um lado lúdico, não aprendem”. Jane já tem planos para as maquetes, por isso, pediu para que os alunos as guardassem. Assim que voltarem as aulas presenciais, pretende fazer uma exposição no colégio.
Segundo a pesquisa A situação dos professores no Brasil durante a pandemia, realizada entre os dias 16 e 28 de maio, 31,9% dos docentes afirmam que a maioria dos pais e responsáveis tem participado das atividades a distância. Na rede privada, a participação familiar é de 58%. Na rede pública, é de 36%. “O índice não é baixo e revela interesse das famílias pela Educação dos filhos, mesmo numa situação tão incomum, na qual as famílias enfrentam desafios de toda ordem para sobreviver e manter os filhos aprendendo”, analisa Alice Junqueira, coordenadora de projetos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC). “O número mostra também que os familiares e responsáveis, ainda que com limitações, estão dedicando tempo e investindo recursos para ajudarem na aprendizagem dos filhos”.
Sala de aula virtual, dor de cabeça real
São muitos os desafios enfrentados, tanto por professores quanto por familiares de alunos, no apoio das atividades a distância. A professora Jane, de Lucas do Rio Verde (MT), aponta dois deles: a adaptação às novas tecnologias e a perda da privacidade. “Pessoalmente, eu estava muito habituada a dar aula presencial. Por mais que tivesse treinamento on-line e suporte de tecnologia, confesso que custei a me adaptar às ferramentas digitais, como o Google Forms, por exemplo. No início, foi muito estressante”, conta. “Desde que a pandemia começou, não tenho mais horário para nada. Tenho trabalhado uma média de 14 horas por dia, sete dias na semana. Não sei mais o que é sábado, domingo ou feriado. Recebo mensagens no meu WhatsApp a qualquer hora do dia e da noite”, relata.
Os pais e responsáveis, pondera a docente Tatiana Poletto, 44 anos de idade e 18 de magistério, também têm os seus perrengues. Ela dá aula em duas instituições: para alunos do 1º ano do Fundamental de uma escola pública, a Professor Manoel Simões, e para alunos do 2º ano de um colégio particular, o Ressurreição Santa Maria, ambas no município de Assis, no interior de São Paulo. “Na medida do possível, tanto os pais da rede pública quanto os da particular, tentam ser atuantes e participativos”, afirma Tatiana. “Em ambos os casos, foram criados grupos de WhatsApp para facilitar a interação escola-família. Mas, no caso dos alunos da rede pública, a comunicação on-line é um pouco mais difícil por falta de internet mesmo. Às vezes, a conexão cai. Outras vezes, o pacote acaba. Há todo esse inconveniente”, explica.
Tanto na Educação Infantil quanto nos anos iniciais do Ensino Fundamental, apenas 3% dos professores afirmam que todas as famílias têm participado (acesse os dados da pesquisa aqui). Na Educação Infantil, 51% dos professores relatam que poucas famílias têm participado e 32% que a maioria tem participado. Nos Anos Iniciais, os números são, respectivamente, de 43% e 42%. “Os pais dos alunos menores são bastante participativos. Chegam a sentar ao lado dos filhos para fazer as atividades escolares. Já os pais dos maiores tentam dar autonomia aos filhos. E isso, infelizmente, não dá certo. Em vez de fazerem as atividades escolares sozinhos, eles simplesmente não fazem”, garante Raquel Santos, 37 anos de idade e 21 de magistério, coordenadora pedagógica da Escola Paulista, em São Paulo (SP).
Diante desses e de outros empecilhos, professores usam de criatividade para o conteúdo escolar chegar até seus alunos. No caso da professora Jane, ela não se contenta em usar o Google Forms para dar aula. Mais que isso, grava áudio para os alunos reconhecerem sua voz ou, ainda, vídeos com a musiquinha que ela costuma cantar quando entra em sala de aula. Já a professora Tatiana, de Assis, no interior de São Paulo, garante que todos possam acessar as atividades também com a preparação de atividades impressas. “Quando a família do aluno não consegue buscar o material na escola, a prefeitura entrega em casa, com toda a segurança, para as crianças”, diz.
Por essas e outras, tanto Jane quanto Tatiana são da opinião de que, apesar dos pesares, a relação entre família e escola melhorou durante a pandemia. Ficou mais próxima, intensa, colaborativa. “A família se obrigou a participar mais da vida escolar de seus filhos. Isso, para a formação da criança, é excelente”, afirma a professora de Lucas do Rio Verde (MT). “Antes do confinamento, muitas famílias nem ligavam. Hoje, elas se interessam mais, correm atrás”, acrescenta a docente de Assis (SP). “Todos nós, pais, alunos, docentes e gestores, somos elos de uma mesma corrente. Precisamos uns dos outros”, completa. Mas Raquel, a coordenadora pedagógica de São Paulo (SP), pondera que nem todos têm conseguido encontrar tempo na rotina: “Muitos pais, durante a quarentena, estão trabalhando tanto ou mais do que antes. Falta tempo”.
O primeiro dia do resto do ano letivo
Em um ponto, no entanto, todas concordam. No retorno às aulas presenciais, o relacionamento entre responsáveis e professores será outro, diferente do que era antes da chegada da covid-19. Como diria aquela velha canção do Roberto Carlos, “daqui pra frente, tudo vai ser diferente”. Na opinião de Raquel Sanches, da Escola Paulista, as famílias vão dar mais valor à escola. “Os pais e responsáveis estão vendo a dificuldade que é para colocar boa parte dos alunos para fazer uma tarefa escolar. O desafio é grande e só agora eles se deram conta disso. Muitos deles, penso eu, achavam que era só chegar na sala de aula, abrir o livro e estava tudo certo. A quarentena deixou claro que famílias e escolas precisam estar unidos em torno de um mesmo objetivo: a Educação das crianças”, explica Raquel.
Para Alice Junqueira, do CENPEC, o aprofundamento da relação entre escola e família poderá ser um dos legados pós-covid-19. “Com a pandemia, os professores estão ‘entrando’ na casa das famílias via internet ou WhatsApp, e tendo a oportunidade de conhecer as profundas dificuldades que enfrentam”. Da mesma forma, a especialista pondera que os pais também estão tendo a oportunidade de conhecer melhor os professores dos filhos e de valorizar o trabalho docente. “Dessa aproximação, o entendimento de que família e escola podem mais se caminharem juntos começa a ganhar força, não mais da boca para fora, mas, sim, a partir de uma experiência vivida. Se essa parceria tem sido possível em ambientes virtuais e num momento tão difícil, imaginamos que, na volta às aulas, será possível aproximar as famílias ainda mais da escola, por meio de propostas lúdicas que envolvam pais e filhos”, vislumbra a psicóloga.
Quando será a volta às aulas presenciais e a exposição de maquetes da professora Jane? Ela ainda não faz ideia. Mas, como será, ela imagina: uma choradeira só. “Já imaginou a emoção do primeiro dia? Vou ficar desidratada de tanto chorar”, brinca a professora que dá aula para 26 turmas, de até 30 alunos cada. É, haja lencinho descartável de papel!
Nas próximas semanas, NOVA ESCOLA vai aprofundar as situações vivenciadas pelos educadores em uma série especial de 10 reportagens sobre os retratos da quarentena. Esta é a quarta reportagem. Confira as outras já publicadas da série:
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