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O que é recomposição de aprendizagens e como ela acontece no dia a dia das escolas públicas

A pandemia intensificou desafios que já existiam na Educação, e agora é necessário articular ações para reordenar e impulsionar as aprendizagens

POR:
Victor Santos
Crédito: Getty Images

Muito antes da covid-19, a Educação pública brasileira já enfrentava graves problemas. Dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Cenpec Educação indicavam que, no ano anterior à pandemia, mais de 1 milhão de crianças e adolescentes brasileiros em idade escolar estavam fora das escolas. 

Além disso, um estudo do Todos Pela Educação mostrou que, até 2019, 61,1% dos alunos do 5º ano do Ensino Fundamental possuíam nível de proficiência adequada em Língua Portuguesa e pouco mais da metade (51,5%) obtiveram a proficiência esperada em Matemática. O cenário apontava melhora em relação às dez últimas edições do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), mas também indicava que ainda havia muito trabalho a ser feito. 

“A garantia do Direito à Educação e as próprias lacunas na aprendizagem já nos preocupavam há muito tempo. Agora, na pandemia, elas se tornaram absurdamente evidentes”, enfatiza Alice Andres Ribeiro, diretora de articulação do Movimento pela Base, rede não governamental e apartidária que desde 2013 se dedica à construção e implementação da Base Nacional Comum Curricular e do Novo Ensino Médio.

Para se ter uma ideia, segundo o estudo do Unicef e Cenpec Educação, cerca de 5 milhões de crianças e adolescentes estavam sem acesso à Educação no Brasil em novembro de 2020, já no período pandêmico – “uma cifra quase inimaginável”, nas palavras da especialista. 

É nesse contexto que tem início o período letivo de 2022, dessa vez de forma mais próxima à de um ano regular. Uma pesquisa respondida por mais de 10 mil professores no site de NOVA ESCOLA indicou que 80% desses educadores e gestores já estão no esquema tradicional de aulas presenciais. Eles se veem agora diante de todos esses complexos desafios. 

Assim, torna-se cada vez mais presente nas redes, secretarias e escolas a discussão em torno da recomposição de aprendizagens. Essa perspectiva envolve iniciativas com foco no protagonismo e no desenvolvimento dos alunos, indo além da mera ‘recuperação de aprendizagem’ devido às dificuldades trazidas pela pandemia.

Nessa última reportagem do Especial Início do Ano Letivo, detalhamos as principais ações relacionadas a esse conceito de recomposição e apresentamos propostas que já estão em vigor em duas escolas públicas do país.

Calendário 2022: datas e temas para inspirar suas aulas

Esse NOVA ESCOLA BOX oferece um calendário para uso pessoal ou da equipe, que pode apoiar o planejamento das aulas de diferentes componentes curriculares com sugestões de atividade sobre temas que marcarão o próximo ano. 

Definição do conceito e principais estratégias

“A recomposição de aprendizagem é como um grande guarda-chuva, que envolve olhar para múltiplos aspectos”, explica Sonia Guaraldo, consultora pedagógica e especialista em formação continuada no Instituto Gesto.

“Havia uma lógica na Educação até 2019, e a pandemia mudou tudo. Agora, é preciso justamente reordenar, mas não basta só ‘voltar ao que era antes’, é preciso voltar melhorando,  prestando atenção às coisas que devemos olhar. É por isso que falamos em ‘recomposição’”. 

Essa visão ampliada, segundo Sonia, inclui diversas frentes. “Não se trata de um projeto ou proposta apenas. A recomposição tem que ser a grande proposta das secretarias e engloba tópicos como avaliação, currículo, formação continuada e acompanhamento pedagógico”, exemplifica.

“É preciso olhar para tudo: habilidades não consolidadas e o que foi ou não oferecido no período pandêmico. Analisar o que não foi consolidado e, depois de tudo isso, construir estratégias para recompor as aprendizagens, traçando grandes diretrizes”. A especialista destaca que, no Instituto Gesto, são quatro as premissas consideradas inegociáveis na recomposição de aprendizagens (veja o box a seguir). 

4 premissas da recomposição de aprendizagens, segundo o Instituto Gesto

Perspectivas exigem ações articuladas entre secretarias, gestores e professores 

Arranjos didáticos: Relacionados ao trabalho com agrupamentos de alunos visando resultados. “Os educadores de todas as frentes devem se perguntar: como posso organizar as minhas turmas? Como organizo a minha escola? Como, na secretaria, posso ajudar as escolas a estruturarem esses arranjos?”, resume Sonia Guaraldo. 

Planejamento com foco em diferenciação pedagógica: “Gestores devem criar espaços formativos para ajudar o professor a planejar olhando para todas essas questões de contexto. E a rede precisa consolidar uma estrutura de formação continuada para um bom planejamento”, aponta a especialista. 

Avaliação para a aprendizagem: “A avaliação precisa ser célere e processual”, destaca Sonia. “Tudo para obter respostas e agir rapidamente sobre elas”. 

Acolhimento para engajamento: “Trata-se de um acolhimento que vai olhar para questões emocionais e de vida dos estudantes, mas que também deve ser sentido por eles dentro da sala de aula. A ideia é consolidar as interações e o próprio sentimento de pertencimento”, explica a formadora.


Para a especialista, é importante também entender que todos esses pilares se entrelaçam no dia a dia do trabalho de recomposição de aprendizagens. “Por exemplo, o planejamento precisa considerar qual é o engajamento que quero dos alunos. Ao pensar em agrupamentos, é importante focar no acolhimento indicando o quanto todos estão progredindo. É uma lógica que se reproduz como uma cultura”.

Participação ativa dos alunos

Com trinta anos de experiência na área da Educação e onze anos à frente da Escola José Antônio Bezerra de Menezes, instituição voltada aos Anos Finais Ensino Fundamental, em Itambé (PE), a gestora Iza Maria dos Santos conta do impacto da pandemia no contexto escolar.

“Todos nós aqui achávamos que seriam quinze dias sem aulas presenciais, mas foram quase dois anos. Então, desde que começamos o ensino remoto até hoje, precisamos buscar estratégias e reinventar constantemente maneiras de trazer esses alunos para perto e reconstruir as suas aprendizagens.” 

Ela lembra que, ao longo do período de ensino remoto emergencial, muitas dinâmicas foram pensadas para estreitar os laços com os alunos de forma virtual. “Desde mensagens todos os dias com recados como ‘a escola não parou, seguimos conectados’, até a realização de lives.” 

Além disso, em 2020 e 2021, muitas ações foram tomando forma. “Nossos estudantes são do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental, mas percebemos que estávamos recebendo alunos com perfil de 4º ano”, relata.

“Então nossa atitude foi ‘esse aluno agora é nosso, temos que buscar meios de retomar essa aprendizagem’ e  começamos a desenvolver projetos de Língua Portuguesa e Matemática, com muito foco em leitura e escrita, até porque se esse aluno não lê e compreende devidamente, fica difícil de entender a Matemática.” 

Um dos principais desdobramentos foi o trabalho com alunos monitores, iniciativa na linha dos arranjos didáticos que já ocorria em 2019 e foi intensificada a partir do gradual retorno presencial em 2021.

“A monitoria se consolidou quando percebemos que podíamos estar ‘juntando’, ‘ligando’ mais os alunos – alguém que estava em um estágio melhor de aprendizagem poderia ‘adotar’ outro com maior dificuldade”, descreve a gestora.

“Então, no contraturno, eles auxiliavam os colegas a superar as dificuldades. Vimos que, como era uma troca de aluno para aluno, falando quase de igual para igual, os monitores conseguiam chegar a uma linguagem que nós professores não estávamos conseguindo.”  

Para a especialista Sonia Guaraldo, esse é, de fato, o momento ideal para ‘pensar fora da caixa’ no que diz respeito aos agrupamentos. “O professor é o protagonista na construção desses arranjos, mas existe uma corresponsabilização, com estratégias que podem envolver outras pessoas, como essa dos alunos monitores”, reforça.

“E vale pensar em possibilidades no próprio turno normal das aulas. Por exemplo: será que dá para atuar com os alunos com mais dificuldades enquanto o restante da turma trabalha de forma mais autônoma? Ou então: como podemos formar parcerias para trazer outros profissionais à escola, que fiquem com essa parte do grupo enquanto o professor atua com os estudantes com mais defasagens?” 

Esse processo de arranjos e rearranjos está intimamente ligado às avaliações, outra temática crucial no processo de recomposição de aprendizagens. Como salienta a gestora Iza, a proposta é que não seja algo só avaliativo, só processual ou só diagnóstico, mas que seja tudo isso. “A gente busca ver esse aluno como um todo na avaliação, aproveitando o que ele faz, as potencialidades que vão além de uma nota. O foco é ‘o que eles estão produzindo, e que produção é essa?’” 

Para 2022, logo após os diagnósticos iniciais, a escola já se prepara para iniciar um programa direcionado de fortalecimento das aprendizagens. “O projeto de reensino, voltado a alunos do do 6º ao 9º ano, vai ser nosso carro-chefe, e vamos desenhar aulas específicas para os alunos com mais dificuldades – um trabalho que começa agora, não é só lá no final do ano. Além disso, outros projetos, como o da monitoria, vão continuar”. 

Como organizar e cuidar do espaço escolar

Esse vai especialmente para gestores: um NOVA ESCOLA BOX inteirinho que vai destacar a importância pedagógica do espaço escolar e refletir sobre planejamento. 

Foco no planejamento e na alfabetização

Na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Engenheiro João Magalhães Filho, em São Francisco de Paula (RS), as ações com foco na aprendizagem também tiveram início ainda no período pandêmico.

“O acolhimento de alunos e famílias foi muito importante, porque precisávamos fazer as crianças se sentirem em um contexto escolarizado e, assim, obter um alto retorno nas devolutivas”, comenta a coordenadora pedagógica Elizandra de Barros da Rosa, que possui mais de dez anos de experiência na Educação. 

Considerando especialmente a volta às aulas de 2022, a educadora enfatiza que a reordenação das aprendizagens é prioridade máxima na sua escola e na rede em que atua. “Estamos recebendo alunos com grandes lacunas, estudantes que foram para o 3º ano com dificuldade na leitura e na escrita, e precisamos de estratégias e métodos para auxiliá-los”, explica. “É por isso que pensamos prioritariamente na alfabetização – e teremos muitas ações nessa linha”. 

Desse modo, tópicos como currículo e planejamento ganham atenção especial. “Pensando em um aluno do 2º ano, por exemplo, é claro que ele precisa ter o conteúdo dessa etapa, mas a gente sabe que ele veio de um período de estudo em casa e talvez não consiga realizar o previsto. Então temos um currículo contínuo que foi feito e pensado já em função dessas aprendizagens que precisam de recomposição”. 

Elizandra diz que “o professor tem de ter o cuidado de fazer o seu planejamento baseado no livro didático, mas também pensando que o aluno pode não estar exatamente naquele nível” – um ponto que também é reforçado pela especialista do Instituto Gesto, Sonia Guaraldo.

“Quando mencionamos a premissa do planejamento com foco na diferenciação pedagógica, trata-se de ideias como essa, de usar o livro didático com intencionalidade para aquela turma específica, atendendo as necessidades de aprendizagem já mapeadas”, aponta. 

Sobre o processo de planejamento na escola, a coordenadora comenta que ele se dá de forma quinzenal e ocorre simultaneamente em todas as instituições da rede. "Inicialmente, eu, como coordenadora, leio e reviso os planejamentos e faço uma checagem no livro didático. Depois, a direção também corrige, e esses planejamentos seguem para o setor pedagógico da secretaria, retornando posteriormente ao professor. É nesse sentido que digo que o professor não está sozinho e, inclusive, precisa de apoio emocional e estrutura para realizar bem o seu trabalho”. 

A coordenadora conta que, como o município tem parceria com a plataforma Aprende Brasil, são realizadas por meio dela as chamadas avaliações de entrada, que indicam como está o aluno que foi do 1º para o 2º ano, do 2º para o 3º e assim por diante, gerando uma planilha detalhada da turma para cada professor.

Alguns testes também serão aplicados para entender quantos estudantes não estão no nível de aprendizagem esperado para a faixa etária. A partir desses dados, serão organizados os grupos de recomposição. Paralelamente, a rede está idealizando um grupo virtual de professores alfabetizadores, para que periodicamente se reúnam e troquem dúvidas, ideias, experiências e desafios.

Explore o potencial do nome próprio na alfabetização

Os conteúdos desse Nova Escola Box pretendem promover reflexões a respeito do uso do nome próprio na alfabetização e apresentar sugestões de atividades para desenvolver o tema.

Recursos tecnológicos, capacitação dos docentes e envolvimento de todos 

Essa fala da coordenadora Elizandra se relaciona muito com um elemento trazido pela diretora de articulação do Movimento pela Base, Alice Andres Ribeiro.

“Quando os professores passam por formações e têm a possibilidade de utilizar sistemas tecnológicos, surge a possibilidade de uma maior personalização do processo de ensino e aprendizagem, algo muito mais difícil de fazer sem a tecnologia”, reforça. “Também chama a atenção essa possibilidade de trocas entre professores de todo o país mediadas pelas plataformas digitais.” 

A especialista Sonia Guaraldo vê com bons olhos essas “comunidades de aprendizagem” formadas por professores com apoio da comunicação on-line, mas ressalta a importância dos educadores receberem as devidas formações para lidar com as ferramentas digitais.

“É fato que temos que trabalhar a tecnologia a favor da aprendizagem, mas é algo muito amplo. Então, esse investimento em capacitações é crucial até para que os professores entendam como se dá o processo de ensino e aprendizagem pelas tecnologias e, assim, enxerguem como os recursos podem apoiá-los.” 

Por fim, Alice frisa que para criar as devidas condições de aprendizagem na ponta, é importante que a mobilização se dê por todos os âmbitos. “Precisamos garantir aulas presenciais com cumprimento dos protocolos sanitários, aplicação de metodologias específicas e adequadas e unir todos nesse propósito, da merendeira e do porteiro até o gestor escolar”, afirma.

“É necessário olhar para todos os alunos e para cada um, não desistir de quem está na escola, e reforçar que não existe perda irrecuperável de aprendizagem.”

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