Como construir atividades diversificadas para consolidar a alfabetização no 3º ano
Ações de recomposição de aprendizagens devem contemplar os diferentes níveis de conhecimento dos alunos e garantir o avanço de todos
POR: Paula Salas“A cobra não tem pé. A cobra não tem mão. Como é que a cobra sobe no pezinho de limão? Vai se enrolando. Vai, vai, vai…” Trechos dessa cantiga popular são lidos em voz alta por alunos do 3º ano do Ensino Fundamental na EMEF Conde Luiz Matarazzo, em São Paulo (SP).
Sandra Granzotti, professora da turma, solicita que eles identifiquem algumas palavras do texto. Alguns estão mais confiantes que outros, mas todos fazem o exercício. Ao final, realizam mais uma leitura em voz alta, todos juntos. A atividade é uma introdução para retomar um projeto sobre serpentes que vem sendo desenvolvido nas últimas semanas.
Ela então explica três atividades com diferentes graus de dificuldade que serão feitas em seguida. Uma dupla tem o desafio de montar a frase inicial da cantiga utilizando letras móveis. Dois grupos escrevem uma ficha técnica sobre um tipo de cobra, e seis duplas e um trio produzem um texto, no formato “você sabia?”, com base em outro texto informativo oferecido por Sandra. Conforme os grupos finalizam as tarefas, eles trocam e revisam a produção dos colegas. Enquanto as crianças trabalham de forma colaborativa, Sandra circula pela sala tirando dúvidas e apoiando o desenvolvimento das propostas.
Estratégias como essa foram um dos caminhos encontrados pela educadora para garantir o avanço de todos os alunos. No início do ano, eles estavam com uma grande defasagem na alfabetização.
Alfabetização: o que está previsto na BNCC
As habilidades previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o 3º ano do Ensino Fundamental pressupõem que o aluno já domina o sistema de escrita alfabética. “Começa a ser um trabalho de reflexão ortográfica com foco nas regularidades”, explica Maria José (Mazé) Nóbrega, consultora pedagógica, formadora de docentes na área de Língua Portuguesa e professora de pós-graduação do Instituto Vera Cruz, em São Paulo (SP). É esse o foco dos livros didáticos que os professores têm à disposição para apoiar sua prática.
Por isso, no contexto atual, de enfrentamento das defasagens deixadas pela pandemia e de ações de recomposição de aprendizagens, muitos educadores não têm encontrado atividades adequadas nos materiais de apoio. “O livro do 3º ano trabalha textos mais avançados do que as necessidades dos estudantes, por isso precisei montar materiais para atender às necessidades dos alunos”, compartilha Margarete Lavôr, professora da rede municipal de Picos (PI).
Garantir a consolidação da alfabetização torna-se a prioridade do trabalho docente. Somando-se a esse desafio, os educadores sentiram na prática as desigualdades no acesso ao ensino remoto. Turmas que já eram heterogêneas – e é esperado que sejam assim – tornaram-se ainda mais diversas. Desse modo, o professor pode se deparar com crianças em um nível pré-silábico e outras que já estão em um patamar esperado para o 3º ano, ou seja, já estão alfabéticas.
Tendo isso em vista, convidamos Selene Coletti, educadora com mais de 40 anos de experiência, colunista do site da NOVA ESCOLA e consultora desta reportagem, para elaborar um banco com nove atividades que podem ser utilizadas com crianças do 3º ano do Fundamental para avançar na alfabetização. Também trouxemos sugestões de agrupamentos e de como adaptar as propostas para atender às diferentes necessidades dos estudantes. Na introdução, você encontrará mais detalhes de como utilizar o material.
Baixe as atividades individualmente
Sugestões para a recomposição de aprendizagens e para consolidar a alfabetização
A BNCC dá algumas pistas do caminho a seguir. “Todo o trabalho deve contemplar a dimensão do letramento e os diferentes usos da língua [com textos reais, ligados a diferentes campos de atuação]”, diz Mazé. Mesmo para quem está em um nível inicial da alfabetização, é importante partir de um texto real, ainda que, depois da leitura, o professor retire palavras do contexto para focar em um aspecto da escrita.
Esse trabalho não tem como objetivo acabar com a heterogeneidade da turma. “As diferenças são características do ser humano, e querer eliminá-las é uma luta vã. A ideia é que todos estejam aprendendo juntos, que possam crescer a partir de onde estão”, destaca Mazé. Por isso, é importante estimular o trabalho colaborativo e explorar os agrupamentos produtivos. “Crianças amam ajudar. Quem está mais avançado pode atuar como monitor para auxiliar o colega a encontrar a resposta”, afirma a especialista.
Uma estratégia sugerida por Mazé está baseada nos estudos de Delia Lerner. É a ideia de movimento ascendente, que parte de um trabalho mais individual/pessoal e vai para o coletivo, e descendente, que faz o oposto. “Se o professor quer conhecer o que a criança sabe, o ascendente é interessante. Se vai trabalhar um texto mais complexo, é legal começar no coletivo”, aponta. O ideal, para a formadora, é mesclar os dois.
A professora Sandra também recomenda alternar momentos em grupo e outros nos quais o aluno está sozinho, pois é uma forma de enriquecer o olhar do professor e o acompanhamento do estudante. “Eu comecei com um trabalho mais individualizado e depois percebi que as duplas produtivas eram muito mais ricas.”
Como acontece na prática: duas realidades diferentes
No início do ano letivo, Sandra encontrou uma turma de 3º ano do Fundamental na qual a maioria dos alunos estava em um nível pré-silábico, com alguns que sequer reconheciam as letras. Por isso, o primeiro passo foi fazer um bom diagnóstico para pensar no planejamento. Hoje, apenas dois estudantes ainda estão em nível silábico com valor sonoro. “Tem dado resultado. Meu objetivo é terminar o ano com todos alfabetizados”, conta ela, que já está bem próxima de alcançar essa marca.
Já Regilane Gava, professora de 3º ano do Fundamental na EMEB Profª Cibelia Teixeira Zippinoti, em Cachoeiro de Itapemirim (ES), assumiu um novo desafio em junho deste ano. As crianças apresentavam uma grande defasagem, e o desenvolvimento das ações de recomposição de aprendizagens foi prejudicado pela troca de professoras – Regilane foi a terceira este ano.
Com apenas alguns meses de trabalho, a professora percebe que os alunos estão avançando aos poucos. Uma parte ainda está no início da alfabetização, alguns em fase silábica com valor sonoro, e duas alunas já estão alfabetizadas e são leitoras fluentes. “No 4º ano, sabendo que eles conseguiram [atingir] esse [nível] básico, o próximo professor irá retomar e continuar avançando.”
Com realidades diferentes, as práticas de Sandra e Regilane têm pontos em comum. Ambas investem no trabalho colaborativo, em momentos coletivos que exploram a oralidade e com propostas diversas para atender às diferentes necessidades de aprendizagem.
Atividades diversificadas
A professora Sandra diz que pensa muito na questão da motivação dos alunos ao escolher essa estratégia. “Quando não conseguem fazer as atividades, eles se sentem desmotivados. Por isso, comecei a fazer um planejamento com propostas diferentes para cada nível.”
No início do ano, ela lembra que chegou a preparar cinco tipos de atividade para contemplar todos os alunos. Hoje, tem um número menor de versões, mas ainda vê a importância de garantir propostas mais personalizadas. No início desta reportagem, contamos um exemplo de atividade realizada em outubro com três propostas diferentes.
Já Regilane conta que uma de suas estratégias é explorar diferentes gêneros literários com atividades diversas, focadas em leitura, escrita e interpretação de texto. “Procuro um livro para trabalhar e tenho o planejamento de uma semana para abordar todos os objetos de conhecimento elencados.” O mesmo objeto de conhecimento pode ser explorado em diferentes níveis. Por exemplo, no estudo do gênero receita, os alunos que estão em um estágio mais inicial podem focar na lista de ingredientes. “Para quem já está lendo, posso usar uma receita mais complexa, com mais informações.”
Com toda a turma: propostas orais e intervenções específicas
Ainda que existam diferentes necessidades de aprendizagem, o professor também deve garantir momentos em que todos possam participar – no banco de atividades acima você encontrará algumas sugestões. Uma forma é propor uma produção coletiva, no qual o educador torne-se o escriba e os alunos ditem e construam de forma oral o texto. “Quando o professor assume essa posição, os alunos focam em pensar nas características do gênero textual, o que já escreveram, o que falta e como escrever”, detalha Mazé.
Ainda que uma proposta seja igual, a resolução ou até mesmo a interpretação oral de um texto não será a mesma. “Quem já tem domínio consegue ter uma interpretação de texto diferente de quem está no início da alfabetização”, acrescenta Regilane.
Geralmente, como a discussão coletiva costuma ser conduzida por alunos com mais proficiência ou que são mais comunicativos, a mediação do educador é fundamental. Ele deve garantir que todos tenham a oportunidade de participar. “Quando estou fazendo uma atividade oral, planejo intervenções para cada nível de conhecimento”, exemplifica Regilane. Essa ideia de pensar em diferentes abordagens para uma mesma proposta também está presente na prática de Sandra. Por exemplo, propostas com letras móveis podem servir para alunos em diferentes estágios da alfabetização.
Acompanhamento constante
Ter um processo de avaliação contínuo é essencial para o planejamento das ações de recomposição de aprendizagens
A forma de avaliar uma habilidade trabalhada com atividades diferentes também deve ser variada. Uma boa estratégia é pensar em rubricas de avaliação para cada um dos níveis de conhecimento – veja esta reportagem sobre como construir bons instrumentos avaliativos nos Anos Iniciais. “Com base no currículo da escola, deve-se ter clareza do que é esperado para cada ano, fazer um acompanhamento próximo e comunicar para os professores do ano seguinte o que foi ou não possível desenvolver [essas informações ajudarão a planejar as aprendizagens em 2023]”, sugere Mazé.
Durante a atividade, é importante circular pela sala para perceber os comentários das crianças, suas trocas e dúvidas – e, assim que possível, registrar suas impressões. “Uma boa intervenção depende de um professor que compreenda o que está por trás daquilo que a criança está falando ou escrevendo. Se não for uma resposta esperada, busque entender o raciocínio [que ela teve]. Não é uma bobagem, ela pensou algo para colocar aquilo. Sem isso, é difícil ajudar”, diz Mazé.
Na sala de aula de Sandra, a avaliação é contínua e diária. “A sondagem não é só uma atividade na folha de papel. Eu faço toda semana observando o aluno [em sala de aula], a sua participação e o caderno”, relata. Ela utiliza essas evidências para verificar os avanços, planejar os passos seguintes e as intervenções e, quando necessário, retomar algum conteúdo que ainda não foi plenamente desenvolvido. A educadora também trabalha com uma perspectiva de “recuperação contínua”. Na sala de aula, há um trabalho permanente de retomar conteúdos para garantir o entendimento de todos os alunos e não permitir que a defasagem se torne uma bola de neve.
Fora do período regular da sala de aula
Entre as ações de recomposição de aprendizagens, a rede municipal de Picos, no Piauí, está com um projeto voltado para a consolidação da alfabetização com atividades no contraturno. Uma das professoras que participaram da iniciativa é Margareth Lavôr. Hoje ela tem duas turmas: uma tem alunos do 3º e 4º ano na UE Pedro de Barros Galvão; a outra, estudantes do 1º ao 3º ano na EM Pedro Cardeal – ambas no município de Picos.
Inicialmente, os professores regulares fizeram um diagnóstico de como estava a aprendizagem dos alunos e de quem apresentava mais dificuldades e poderia se beneficiar da iniciativa. “Fizemos um material próprio. Começamos desde o início [da alfabetização] e fomos percebendo as necessidades de cada um”, explica a professora. Também foi realizado um trabalho com as famílias para entender o contexto de cada aluno e envolvê-los no projeto.
Entre as atividades nas quais ela observa melhores resultados estão as mais práticas. “Não trabalhamos o material da sala de aula, utilizamos jogos e dinâmicas que permitam que cada criança avance”, salienta Margareth. A educadora também destaca a importância de utilizar aspectos da região, que fazem parte da realidade dos estudantes. “Contextualizar é trazer primeiramente o que eles conhecem para que possam refletir. Por exemplo, quando eu falo de uma fruta, como a acerola, eles vão contar que na casa da avó tem um pé ou que já tomaram o suco. Depois, eu posso falar sobre a vitamina C. Eu parto de algo que eles conhecem para apresentar o conteúdo que desejo abordar.”
O planejamento é realizado em parceria com todos os professores que participam do projeto. No entanto, cada docente avança respeitando o ritmo da sua turma e, se necessário, desenvolvendo outras atividades. “Não preparamos uma atividade para o 3º ou 4º ano, mas uma para desenvolver naquele dia com algumas alternativas [considerando que os alunos apresentam níveis de conhecimento diferentes]”, afirma Margareth. Em momentos de trabalho em grupo, ela utiliza como critério as necessidades de cada um.
A rotina do projeto sempre começa com um momento em roda, no qual os alunos compartilham algo com os colegas ou com a professora, fazendo uma leitura e propondo uma discussão em grupo. “Depois, vamos puxando [a conversa] para o que vamos trabalhar naquele dia”, conta. A proposta principal do dia pode ser individual ou em grupo. Aos poucos, todos estão avançando na direção de alcançar o objetivo da iniciativa: garantir a alfabetização de todos sem deixar ninguém para trás.
Consultoria pedagógica: Selene Coletti, professora na rede pública há 40 anos, colunista do site da NOVA ESCOLA e vice-diretora da EMEB Philomena Zupardo, em Itatiba (SP).
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