Os caminhos para a recomposição de aprendizagens pós-pandemia
Quais reflexões e lições sobre a prática pedagógica o ano de 2022, o mais presencial desde o início da pandemia, deixou para os educadores?
POR: Rachel BoninoA volta à rotina presencial no pós-pandemia trouxe uma série de necessidades para a escola, entre elas, como realizar a recomposição das aprendizagens. No esforço de subsidiar essa empreitada, levantamentos como o “Recomposição das aprendizagens em contextos de crise”, realizado pela Vozes da Educação, listaram estratégias variadas para priorização e aceleração desse processo, repensando atividades com foco em recuperação e indicando rumos possíveis.
Agora, com 2022 se encaminhando para o fim, uma série de práticas vem sendo decantadas pelos educadores. O momento é de reflexão sobre as adaptações no currículo, no tempo de instrução, nas práticas pedagógicas, nas formações docentes, na avaliação diagnóstica, no material didático e até na forma de mapear as competências socioemocionais. E surgem perguntas como: o que alunos e professores aprenderam? Quais desafios ainda estão por vir no atual contexto da educação no país?
Uma das questões colocadas em xeque foi a forma como a volta às aulas foi encarada logo de início – rotulada com termos negativos como perda, atraso e defasagem. Essas percepções foram reproduzidas pela escola, a famílias e a sociedade em geral. Resultados apontados pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e outras avaliações estaduais, além de levantamentos que mapearam a situação da educação no país, também usaram essa abordagem, como o estudo “Perda de Aprendizagem na Pandemia”, de 2021, elaborado pelo Insper em parceria com o Instituto Unibanco.
Este último indicou, por exemplo, que, se nada fosse feito, os alunos que cursavam o 3º ano do Ensino Médio poderiam perder, ao final daquele ano – ainda com muitas escolas fechadas –, mais da metade de todo o aprendizado em Língua Portuguesa e praticamente tudo de Matemática que tinha sido visto ao longo daquela etapa escolar.
“Em Educação, a força dos enunciados é muito importante, então imagine: na volta ao presencial, os alunos chegaram com dificuldades de aprendizagem, com dificuldades sociais e com saudades do ambiente da escola. E aí o discurso mais forte que se fez foi o das perdas”, analisa Lilian L’Abbate Kelian, coordenadora de projetos no Cenpec, organização que trabalha pela promoção da equidade e da qualidade na Educação Básica. Por isso, ela defende que um trabalho que ainda precisa estar ativo é o de inverter esse enunciado e dizer que a responsabilidade está mais do lado dos educadores, escolas e redes de ensino para reorganizar o currículo e priorizar o que é fundamental.
Nessa perspectiva, o trabalho com a recomposição de aprendizagens deve mirar o futuro. O pensamento recomendável é: o que é preciso recompor para aquilo que eu vou ensinar agora e no futuro? Em outras palavras, usar a avaliação diagnóstica apenas para descobrir o que está faltando é um equívoco; ela também deve direcionar a recomposição. “Eu tenho de pensar, dentro do que está faltando, o que eu escolho para recompor e o que dá força e situa o estudante nas aprendizagens do ano em que ele está, senão a gente vai andar mais para trás do que para frente, e isso é extremamente desmotivante para o estudante”, diz Lilian.
Na prática, essa pode ser uma tarefa difícil. Isso porque é um desafio e tanto para os docentes romper com a linearidade de aprendizagens tradicionalmente imposta e com a visão cumulativa da aprendizagem. “Sem dúvida, acumular é um elemento muito estruturante da aprendizagem, mas a gente agora tem de lidar com o fato de que houve essa ruptura. Então vamos ter de resgatar aquilo que é muito essencial e nos projetar para o presente e para o futuro”, afirma a especialista.
Recomposição e BNCC
A necessidade de priorizar aprendizagens na retomada do ensino presencial também expôs o quanto a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um marco relativamente recente. “Se a gente considerar que a maior parte dos professores se formou antes de a BNCC existir, você pode imaginar que eles estavam fazendo um imenso processo de apropriação desse documento, de pensar como é que ele aterrissa no seu planejamento. E aí veio a pandemia”, analisa Lilian.
Nesse sentido, é necessário também pensar sob a ótica das necessidades docentes. “A gente fala muito de como as aprendizagens dos estudantes foram desorganizadas na pandemia, mas essa aprendizagem que estava acontecendo entre os professores também foi. E para fazer a recomposição é preciso que o professor tenha domínio do que é a BNCC”, defende. Para a especialista, é preciso garantir a compreensão sobre a diferença entre trabalhar com um currículo voltado para objetos de conhecimento e para habilidades. Ou seja, é necessário compreender globalmente as habilidades do componente curricular para apontar o que é prioritário ou não para o aluno e para a turma.
Essa percepção desemboca também na reflexão de que a escola poderia estar mais atenta à singularização das aprendizagens. “Eu vejo certa diluição daquilo que a gente chama de seriação, de organizar os alunos por idade. Mesmo que não venha uma ruptura radical, é importante poder olhar para uma turma sem esse pressuposto de que todas as pessoas deveriam ser iguais”, diz Lilian, acrescentando que as estratégias de recomposição vêm criando subgrupos dentro de uma turma, com estudantes que estão mais ou menos avançados em determinado tópico.
Para Vládia Maria Eulálio Raposo Freire Pires, que trabalha na Secretaria Municipal de Educação de Campina Grande (PB) como supervisora pedagógica e formadora de professores da Educação Infantil, a pandemia de fato interrompeu esse processo de apropriação da BNCC pelos professores da etapa. Somado à ansiedade da volta ao presencial, isso deixou os educadores preocupados: “Estamos tentando mostrar que o melhor que eles podem fazer pelas crianças é permitir que elas interajam, que brinquem nos ambientes externos. Isso não quer dizer que é sem planejamento e que não vai haver aprendizagem. Pelo contrário, a gente vai dar a elas o direito de aprenderem como precisam aprender: por meio da brincadeira, da interação, da exploração dos espaços externos, da liberdade na escolha de materiais”, diz.
Diálogo com as famílias
Explicar a importância das próximas etapas para as famílias e trazê-las como aliadas do processo de recomposição das aprendizagens é também essencial. Esse diálogo vem se desenrolando de forma tranquila na rede de Campina Grande, justamente porque durante o ensino remoto os docentes conseguiram se conectar mais com os familiares, principalmente via WhatsApp.
No início, Vládia conta que havia certa resistência por parte dos professores em colocar o telefone pessoal em grupos da rede social e ter essa interação mais direta. Mas aos poucos os ganhos se sobrepuseram: “Eu vi professores dialogando com pais, acolhendo situações diversas, pensando em como, mesmo no híbrido, a gente poderia tentar fazer encontros em pequenos grupos. Senti que foi uma aproximação muito grande com a família”, afirma.
A importância desse acolhimento – tanto das crianças como das famílias – trouxe muitas reflexões para o próximo ano. “Isso nos deu a ideia de incluir os pais no processo de adaptação dos bebês e das crianças pequenas que ingressam nas creches, sem aquela ruptura. São bebês e precisam sentir muita segurança a partir dos próprios familiares, e estes precisam entender que ali há muita aprendizagem a partir de brincadeiras, da interação”, conta.
Sensibilidade para mudar e recompor
O início do ano letivo em modelo presencial da professora Laís Michelle de Souza Araújo Bandeira, da EM Professora Maria Lúcia de Macedo Leite, em Nísia Floresta (RN), foi marcado pela ansiedade dos pais de ver os resultados de aprendizagem dos filhos da turma do 1º ano do Ensino Fundamental. A inquietação era tamanha que Laís chegou a receber questionamentos do tipo “Por que não está vindo atividade de casa?” e escutar frases como “Minha filha está aprendendo mais no reforço do que com a professora”.
Mas ela não se deixou contaminar e compreendeu que mapear a turma logo no início das aulas, para entender o tempo e as necessidades das crianças, era o primeiro passo. Dessa forma, realizou atividades diagnósticas e percebeu que as crianças não identificavam as letras e que era preciso apresentar o alfabeto como se fosse pela primeira vez. Percebeu também que a turma vinha com a lembrança da rotina da Educação Infantil.
“Uma coisa com a qual eu não estava habituada em nenhuma turma de Ensino Fundamental até então é que eles pediam para trabalhar com massinha. Então, entendi que era preciso incluir na rotina esse momento porque era um resgate da Educação Infantil para trazer acolhimento. Eu estava preparada para um ritmo de alfabetização, mas percebi que os alunos estavam precisando de outras coisas, então foi um movimento muito de idas e vindas para mim”, conta.
Laís sente que esses momentos envolvendo massinha, cantoria e brincadeiras criaram situações de conforto para alunos e pais. O ambiente que ela estruturou deu espaço para que depois, ao longo do ano, fosse possível introjetar melhor os conceitos de maior maturidade escolar, de senso de coletividade e de regulação dos próprios estudos, algo que se trabalha comumente nesse pontapé inicial do Fundamental I. “O ciclo de alfabetização se estende até o 2º ano, então temos alunos, sim, que talvez terminem o ano já alfabetizados, mas também, se não terminarem, eles estão no processo”, explica.
Cada turma, um caminho
A professora Carla Iara do Nascimento Garcia, por sua vez, apostou no planejamento reverso para trabalhar tanto com sua turma de crianças de três e quatro anos na CEI Professor José Flora, em São Joaquim da Barra (SP), quanto com a sala de 5º ano do Fundamental no Colégio Municipal José Coutinho Pereira, em Salles Oliveira (SP).
Com os pequenos, percebeu que o momento era de reconexão com o ambiente escolar e de brincar junto. “Na volta ao presencial, eu percebi que as crianças não sabiam brincar”, conta. Com os mais velhos, colocou em prática um projeto de literatura em formato de diário. O autor escolhido para iniciar as atividades foi Machado de Assis – o que causou surpresa até nos colegas docentes. “Os estudantes estavam se sentindo ansiosos. Achavam que não sabiam nada. Então, para incentivar essa autonomia, esse protagonismo deles, eu comecei a recomposição de aprendizagens trazendo a literatura. Porque eles poderiam também expor suas dúvidas e seus medos por meio dos personagens, das histórias”, conta.
Logo que voltou para o presencial, o professor de Língua Portuguesa Eduardo Diório Junior teve uma conversa franca sobre recomposição com suas turmas de 7º e 8º anos do Fundamental e com o 1º ano do Ensino Médio. Pediu paciência e principalmente parceria. “Fiz esse pacto com eles: ‘Vou tentar da minha parte, mas eu também preciso do comprometimento de vocês. A gente vai retomar algumas coisas, entrar com coisas novas e fazer uma fusão’”, reproduz. Aos poucos foi retomando alguns conteúdos que eram anteriores aos previstos para aqueles anos e inserindo conteúdos novos.
Ferramentas digitais como apoio
O suporte garantido pelas ferramentas digitais descobertas e muito utilizadas no período remoto ainda permanece na rotina das turmas do professor de Biologia Romualdo Ramon Martins de Queiroz. Atualmente, ele leciona para estudantes dos três anos do Ensino Médio em duas escolas cearenses: EEMTI Jacob Nobre de Oliveira Benevides, localizada em Banabuiú (CE), e EEM Governador Luiz Gonzaga da Fonseca Mota, em Quixadá (CE).
“Até hoje a gente mantém esse vínculo nas redes sociais. Estamos diariamente utilizando os grupos de WhatsApp para disponibilizar materiais de estudo, passar informativos, trocar vídeos. É algo muito da rotina deles e da nossa agora”, conta o docente, destacando a praticidade que os dispositivos oferecem para organizar e agilizar processos da rotina escolar. “A gente não consegue mais trabalhar, fazer a educação valer sem essas ferramentas. Talvez tenha sido necessária uma pandemia para a gente poder enxergar o valor delas”, avalia.
Apesar de ótimas alternativas de suporte, os dispositivos digitais sozinhos não são suficientes – algo que ficou muito perceptível na volta ao presencial e mais ainda na etapa de recomposição: “Muitas vezes, quando vamos trabalhar um objeto de conhecimento, a gente percebe que o aluno precisa de outro anterior. Então, é muito importante um diagnóstico frequente, fazer essa averiguação e a partir daí tentar combater essa heterogeneidade”, diz Romualdo.
Por fim, outro ponto que deve estar no radar de todo docente é o apoio socioemocional aos alunos. Na rede cearense, há um profissional que desempenha o cargo de “professor-diretor de turma” e que, por um ano, assume uma carga horária para zelar por uma sala, apoiando-a em todos os aspectos pedagógicos, sociais, emocionais e de aprendizado. Função que Romualdo desempenha com orgulho: “Eu sou um grande defensor da educação pública, então, na minha opinião, acho que o maior desafio, não somente dos jovens, mas também da comunidade de modo geral, é fazer com que as pessoas enxerguem o poder que a educação tem. Ter essa consciência de que a educação é o melhor meio para você mudar a realidade de uma sociedade, torná-la mais justa, com mais inclusão, equidade, liberdade e respeito”, conclui.
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