Clima escolar: como fazer a mediação de conflitos e criar plano de convivência
Durante os esforços para a recomposição de aprendizagens, é fundamental cuidar da saúde emocional dos estudantes e criar estratégias para melhorar o clima escolar
POR: Paula Salas“Depois da Covid-19, posso dizer que vivemos uma pandemia emocional. Por isso, olhar para o clima escolar neste momento pede cautela”, alerta Luciene Tognetta, pesquisadora e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)/Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) e organizadora do Programa de Implantação das Equipes de Ajuda no Brasil.
“Temos visto uma maior dificuldade de conviver, [além de] conflitos, brigas e muitas crises de ansiedade”, afirma Rafael Vigentin, vice-diretor na EE Antonio Vieira Campos, em Sorocaba (SP).
Essas falas são exemplo do cenário vivido no ambiente escolar. Educadores e especialistas têm percebido que os estudantes voltaram fragilizados, devido aos impactos emocionais causados pela pandemia, ao mesmo tempo que recebem uma carga de ansiedade e expectativa em relação à recomposição de aprendizagens.
“Há uma pressão muito grande para que os alunos aprendam, mas, se eles não estão bem emocionalmente, não adianta. Se a cabeça está cheia de dor, eles não vão conseguir aprender”, destaca Rosane Voltolini, psicóloga e especialista em saúde mental coletiva, que atua na coordenação e implementação de programas internacionais por meio da Associação pela Saúde Emocional de Crianças (Asec). A soma desses fatores leva ao aumento de conflitos e de casos de bullying.
Por isso, em paralelo aos esforços para lidar com as defasagens, é necessário dedicar tempo para saber o que os estudantes viveram e como se sentem. “A gente nunca sabe pelo que a outra pessoa está passando. Não podemos considerar que está tudo bem por ela estar de volta à escola”, diz a psicóloga.
Combate ao bullying
Entenda o que é e como lidar com essa questão no ambiente escolar
O bullying é uma agressão moral ou física entre pares, caracterizada pela intenção de ferir, pela continuidade de intimidações e pela presença de um público espectador. Essas violências e perseguições também podem acontecer no ambiente virtual: o cyberbullying – confira aqui estratégias para enfrentar esse problema nos Anos Finais do Fundamental.
“A criança que pratica bullying, o agressor, muitas vezes não tem recursos emocionais para lidar com o que sente”, explica Rosane sobre as causas desse problema. Dessa forma, ele intimida o outro em busca de se sentir importante, com poder. “Quem sofre não tem coragem de falar e pedir ajuda e se sujeita porque acha que, ao ficar quieto, um dia [aquilo] vai parar. Já as testemunhas fazem vista grossa porque acham que, para fazer parte do grupo, precisam ficar em silêncio”, completa a psicóloga.
“O bullying volta a aparecer quando não há um trabalho da escola para acolher e observar os alunos”, comenta Luciene. Por isso, existem duas frentes de atuação. A primeira é criar protocolos para o que fazer quando isso acontece e ter orientações de como realizar a mediação desses conflitos. A segunda é ter ações de prevenção, um trabalho contínuo de acolhimento, escuta atenta e desenvolvimento de competências socioemocionais. “É preciso criar um espaço para desenvolver a autoestima, a autoconfiança, a aceitação de quem se é, saber suas qualidades”, exemplifica Rosane.
Mesmo quando esses episódios não acontecem em sala de aula, a escola não pode ignorá-los e deve intervir. A sugestão dos especialistas é planejar protocolos do que fazer nos diferentes conflitos relacionais. Envolver toda a equipe escolar e os estudantes também é importante para o sucesso da iniciativa. “Trabalhar o protagonismo juvenil e envolvê-los nesse planejamento traz uma sensação de pertencimento e favorece o engajamento”, complementa Rafael.
Pacto pelo bom convívio
Rafael lembra que quando era coordenador só “apagava incêndios” envolvendo conflitos. Foi assim que surgiu a ideia de criar um plano de convivência e desenvolver uma cultura de harmonia e escuta. Após muitos estudos e assumir a posição de vice-diretor, ele apresentou o projeto à equipe docente.
O plano de convivência, como consta no documento, é “um conjunto de ações que busca construir um ambiente escolar com relações mais saudáveis, atuando na construção de um comportamento ético, baseado em princípios, por meio da intervenção educativa no conflito”.
O documento deve atender às necessidades e à realidade de cada escola. Para ajudar os educadores, a NOVA ESCOLA preparou um modelo com tópicos para guiar a reflexão e a construção desse texto. Baixe-o gratuitamente no botão a seguir:
Assim, em 2022, a Antonio Vieira Campos deu início a ações em diferentes frentes. Elas passam pela formação de professores, pela reflexão de toda a comunidade para eleger os princípios e valores da escola e pelo planejamento e a criação de mecanismos que permitem o acolhimento dos estudantes e espaços para a mediação dos conflitos.
Entre as atividades, está a organização de equipes de ajuda, proposta idealizada pelo Gepem, que consiste em grupos de alunos que apoiam os colegas. “Os pares estão mais imersos [nas relações e dinâmicas entre os estudantes], então conseguem perceber mais esses conflitos”, explica o vice-diretor. “O bullying tem características muito peculiares. Uma delas é não ser visível aos olhos dos adultos, porque quem comete não o faz na frente dos professores”, salienta Luciene.
Para começar, Rafael apresentou a proposta para todas as salas, e foram escolhidos dois estudantes por turma para fazer parte da equipe. O passo seguinte foi realizar uma formação desses alunos para que soubessem a forma de acolher e atuar em casos de conflitos leves – os mais graves devem ser observados e repassados para a intervenção da gestão escolar.
“Uma vez por mês, nos reuniremos para saber como foi o último mês e entender como está o clima escolar a partir da perspectiva deles”, conta. Além desses encontros mensais com a gestão escolar, as equipes têm um professor-tutor.
Em paralelo à atuação das equipes de ajuda, os educadores também interferem em conflitos que requerem mediação. Nesse momento, acontece uma escuta conjunta de todas as partes. “Sento com os envolvidos, peço que respeitem a fala do outro e faço perguntas para que contem o que sentiram. O acordo ou a solução é dado por eles”, detalha o vice-diretor. Em casos de bullying, esse momento é realizado de forma individual.
Cuidando da convivência escolar
Para além dos casos mais graves, de violência física e bullying, é necessário ter um olhar para os relacionamentos dentro da escola. Confira as orientações de especialistas na área.
Durante a pandemia, o Gepem deu continuidade às pesquisas e aos estudos sobre como promover uma boa convivência nas escolas. O relatório final, que ainda será publicado pelo grupo, detalha ações e apresenta um conjunto de dez recomendações para cuidar do clima escolar. Confira abaixo um resumo:
- Fazer um diagnóstico do clima e da convivência escolar. Confira um manual que contém um modelo de questionário para alunos, professores e gestores e orientações sobre como analisar esses dados.
- Construir um plano para a convivência.
- Levar em consideração as novas dimensões do clima relacional e da convivência criadas ou potencializadas pela pandemia, como a forma como os alunos convivem no ambiente virtual e os relacionamentos intrapessoais, isto é, como cada um se relaciona consigo mesmo e com os seus sentimentos.
- Criar um plano intencional de trabalho com as questões emocionais. Neste ponto, Rosane esclarece que apenas exibir um filme sobre bullying, por exemplo, não é eficaz, porque não abre espaço para falarem sobre como cada um se sente, quem já vivenciou aquela situação, como ficou e o que fez para se sentir melhor.
- Realizar uma cyberconvivência respeitosa. Para se aprofundar nesta questão, confira um protocolo com orientações do que fazer em casos de cyberbullying e sugestões de dinâmicas para uma boa convivência online.
- Promover uma rede de proteção para crianças e adolescentes.
- Garantir a formação docente e políticas públicas para a convivência.
- Atualizar-se e incluir nas discussões as temáticas contemporâneas. Por exemplo, diversidade, combate às desigualdades e práticas restaurativas, entre outras.
- Ter iniciativas de apoio entre os alunos, como as equipes de ajuda.
- Estar atento ao que as pesquisas científicas trazem de aprendizado para pensar e melhorar a convivência escolar. No site Somos Contra o Bullying, do Gepem, é possível encontrar gratuitamente pesquisas para se aprofundar nessas temáticas e materiais para ajudar a levar a discussão para a sala de aula.
Falando dos sentimentos em sala de aula
Juliana Melchioretto, professora de 1º e 2º ano dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na EM Vendelim Schweitzer, em Luiz Alves (SC), tem percebido que as crianças estão mais inseguras. No entanto, este ano, com o passar das semanas, estão ganhando mais confiança e voltando à rotina.
“Em 2021, foi bem puxado. Elas estavam com muito medo de estar com os colegas, de brincar”, observa. Essa maior sensibilidade gera uma carga de estresse que, em alguns casos, resulta em episódios de raiva. “Estouram mais facilmente com os amigos, não sabem o que fazer e nem o motivo de se sentirem assim. Entendemos que é uma consequência: a insegurança gera agressividade”, relata a alfabetizadora.
Assim como os casos de bullying, esses episódios não devem ser ignorados. “A gente conversa, pergunta como ela está se sentindo e o que a levou a essa atitude”, explica Juliana. Se os conflitos persistem ou se tornam mais graves, a escola conversa com os responsáveis para investigar as causas e pensar em soluções conjuntas.
“O problema não é sentir raiva, mas o que o aluno faz com ela, como lida com esse sentimento”, destaca. Nesse sentido, é necessário oferecer recursos para as crianças conseguirem encarar o que sentem, isto é, desenvolver competências socioemocionais.
Em seu planejamento, Juliana tem momentos reservados para abordar essas questões. Ela parte de uma brincadeira ou um texto para levar a temática para as crianças. “Fazemos uma roda de conversa para eles compartilharem os sentimentos, situações que viveram, o que fizeram e o que poderiam ter feito diferente.”
Essa também é a orientação de Rosane. “Ter pelo menos meia hora na semana para que cada um fale dos seus sentimentos, um espaço para compartilhar suas dores, em que possam se esvaziar para que o conhecimento possa entrar.”
Contribua para a saúde mental dos alunos em suas aulas
Entenda como promover uma cultura de autoconhecimento e de empatia com o próximo por meio do engajamento de toda a comunidade escolar e de atividades que contemplam habilidades previstas pela BNCC para História, Ciências e Língua Portuguesa.
Todos em prol de um ambiente harmônico
Prevendo que as crianças retornariam fragilizadas emocionalmente, devido ao período em que estiveram longe da escola, toda a equipe escolar da Vendelim Schweitzer foi orientada sobre como receber os alunos e trabalhar os sentimentos deles.
“Conversamos muito, sempre nos reunimos, trocamos ideias. É um trabalho coletivo”, diz Juliana. Rosane sugere que o planejamento das ações envolvendo aspectos emocionais seja coletivo. “A eficácia aumenta quando não se é um professor sozinho.”
Nesse sentido, Juliana também fala da importância de os professores não tomarem para si a responsabilidade de resolverem sozinhos esses problemas, mas que contem com o apoio das famílias, dos colegas e da gestão escolar. “Quando escola e família caminham juntas é mais fácil chegar a boas soluções.”
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