Alfabetização: como a gestão escolar pode impulsionar a recomposição de aprendizagens
Confira 4 pontos que podem ser colocados em prática nas escolas para ajudar a reverter as dificuldades trazidas pela pandemia
POR: José Marcos Couto JúniorDesde o seu lançamento, Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles, emociona o país e o mundo com a história de uma ex-professora amargurada, vivida por Fernanda Montenegro, que ganha a vida como escriba de pessoas analfabetas na estação que dá nome ao filme, aqui no Rio de Janeiro (RJ).
Costumamos dizer que a vida imita a arte, e no meu dia a dia como diretor da EM Professora Ivone Nunes Ferreira já me deparei com situações semelhantes a algumas cenas do longa quando interagi com pais e responsáveis constrangidos por não saberem sequer assinar o próprio nome ou por necessitarem de ajuda para compreender algo escrito.
Até o século passado, o analfabetismo afligiu milhões de pessoas no Brasil – há apenas 30 anos, dois a cada dez brasileiros não sabiam ler. Tudo começou a mudar com a Constituição de 1988, que consolidou o processo gradual de universalização do ensino. Desde então avançamos muito, embora ainda encarando questões como o analfabetismo funcional.
Até que, em março de 2020, veio a pandemia. Relatórios do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) indicam que, em países de baixa e média renda, a proporção de crianças que vivem em pobreza de aprendizagem, que já era de 53% pré-Covid-19, pode chegar a 70% por conta dos desafios trazidos pelo fechamento das escolas e pelo ensino remoto emergencial.
Em relação à alfabetização, foi o trabalho incansável de professores e gestores que impediu que retrocedêssemos a esses números de antigamente. Mas pesquisas apontam que há problemas inevitáveis na formação da linguagem, já que o biênio pandêmico prejudicou aprendizagens sociais, motoras, emocionais e cognitivas nessa fase da vida. Cabe à comunidade escolar como um todo buscar alguns caminhos possíveis para que essas aprendizagens sejam recompostas.
Os reflexos negativos da pandemia na alfabetização
Mais do que professor, educador e gestor escolar, sou pai do João Pedro, uma criança autista de seis anos de idade, que atualmente está matriculado na escola que dirijo. Por conta da sua condição, o João desde muito cedo apresentou a hiperlexia – uma facilidade na memorização de letras e números que faz com que sua alfabetização, mesmo na metade do 1º ano, esteja quase concluída. No entanto, a sua “pegada” e, consequentemente, a sua escrita apresentam limitações.
Tiana Sodré, terapeuta ocupacional incrível que atende o João, me explicou que um dos motivos para essa dificuldade se relaciona com um menor desenvolvimento da coordenação motora fina – parte da musculatura da mão dele ainda não se desenvolveu corretamente, e por isso falta firmeza ao segurar o lápis, fazendo-o inclusive apoiar os dedos para aplicar força em atividades nas quais o uso da palma da mão é esperado.
Resolvi trazer esse relato porque, ainda que a situação tenha origem no transtorno do João (que nunca teve interesse em brincar com massinhas, cortar com tesouras, desenhar ou pintar), precisamos lembrar que muitas das crianças da Educação Infantil tiveram essas práticas afetadas ao longo da pandemia – e agora fizeram a transição para o ciclo da alfabetização. Assim, o cenário que se apresenta diante de nós, educadores, é complexo e exige muitos esforços.
Gestão escolar e recomposição de aprendizagens
Se antes da Covid-19 já estávamos revendo certos métodos e iniciativas para lidar com o analfabetismo funcional, agora a alfabetização requer ainda mais atenção para as ações de recomposição. Cabe aos gestores em nível macro, nas secretarias de Educação, alocar recursos para a contratação de pessoas que possam atuar no apoio aos estudantes. Além disso, é vital que ações ligadas à busca ativa e ao suporte social e econômico das famílias mais pobres sejam fomentadas.
Da nossa parte, amiga leitora e amigo leitor, precisamos agir de forma prática, encarando esse problema. Indico a seguir quatro ações que temos realizado na Ivone Nunes e que podem auxiliar no desafio de alfabetizar recompondo aprendizagens:
1. Viabilizar intervenções diversificadas.
Principalmente para os alunos com mais dificuldade. Algumas possibilidades são aprender de forma lúdica com piqueniques literários; explorar o ambiente escolar em busca de palavras, ou outra intervenção que fuja da rotina da sala de aula. Cabe ao gestor fomentar e adequar esses espaços em suas escolas;
2. Organizar horários específicos para o reforço escolar.
Diretores e coordenadores pedagógicos precisam buscar meios que auxiliem os alunos, em especial no início do processo de alfabetização. Para isso, vale contar com mediadores da própria escola ou mesmo voluntários que façam parte da comunidade;
3. Trabalhar em parceria com as famílias.
Desde antes da pandemia, os resultados escolares positivos, em geral, estavam ligados a um maior acompanhamento dos responsáveis em relação à aprendizagem dos seus filhos. Atualmente, é ainda mais importante convocar esses pais e formalizar a visita em ata, assumindo a parceria escola-família como aquilo que pode ser o diferencial entre um processo de alfabetização exitoso ou não;
4. Desenvolver ações intersetoriais.
Quando falei aqui na coluna sobre os territórios educativos, apontei a necessidade de que a escola fosse integral, trabalhando o aluno em suas diversas dimensões. Assim, combater os impactos negativos na saúde mental de estudantes (e docentes) é indispensável, ou então o processo de aprendizagem como um todo e o de alfabetização em específico serão dificultados. É crucial estreitar laços com as redes de atendimento primário, como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), a fim de proporcionar atendimentos sociais e clínicos.
Lembremos que o patrono da Educação no Brasil, Paulo Freire, ganhou notoriedade após a experiência de Angicos (RN), quando alfabetizou em 40 horas cerca de 300 alunos. Guardadas as devidas proporções, o que Freire nos traz é a indicação de que, com novas e singulares estratégias, é possível alfabetizar as pessoas. Portanto, desejo foco, trabalho e criatividade a todos nesse desafio.
Um abraço e até mês que vem!
José Couto Júnior é formado em História e mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano pelo Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há dez anos, atua desde 2019 como diretor da EM Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.
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