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Como apoiar e fortalecer o trabalho de professores negros na escola

Entenda como a comunidade escolar pode contribuir para a promoção de uma Educação Antirracista por meio da valorização da prática de um corpo docente representativo

POR:
Jonas Carvalho

Samara Pereira, professora do Projeto de Reforço e Recuperação (PRR) do 5º ano da EE Santa Rosa de Lima, em São Paulo (SP), em oficina de bonecas abayomi. Foto: Isabel Praxedes/NOVA ESCOLA

A educação voltada para as relações étnico-raciais ganhou espaço nas escolas públicas e privadas nos últimos anos graças à Lei 10.639/2003. Apesar dos avanços, no entanto, falta muito para que o tema seja tratado no ambiente escolar de maneira consistente e perene, não ficando circunscrito a datas sazonais como o

Dia da Consciência Negra.

Em outras palavras, é preciso ir além e colocar em prática uma Educação Antirracista, o que exige formação continuada para que a comunidade escolar aborde não somente o combate ao racismo, mas também desenvolva ações de apoio a professoras e professores negros que ainda podem estar em uma posição de isolamento ou silenciamento.

O fortalecimento do trabalho e das vozes dos professores negros é fundamental para transformar a perspectiva dos alunos sobre aspectos relacionados a autoaceitação, autoestima, representatividade e à própria aprendizagem.

A questão racial na formação docente

A ausência de componentes curriculares relacionados à Educação Antirracista nos cursos de formação inicial de professores é um dos aspectos que dificulta a abordagem do tema de maneira efetiva no ambiente escolar. 

Quem tem interesse no assunto frequentemente precisa agir por conta própria, como foi o caso de Thaís Pimentel, professora do 5º ano do Ensino Fundamental de uma escola particular de São Paulo (SP). Formada em 2014, ela conta que não havia a apresentação de referenciais produzidos por pessoas negras na academia, por exemplo. 

“Os cursos de Pedagogia, naquela época, não tinham disciplinas que discutiam as relações étnico-raciais. Se você quisesse estudar alguma coisa sobre o tema, precisava ser autodidata ou correr atrás de matérias específicas, que não estavam na Faculdade de Educação. Pesquisar e usar autoras e autores negros ficava a cargo dos estudantes que se interessavam por relações étnico-raciais”, conta.

A busca por esse conhecimento na universidade foi um processo solitário, lembra Thaís, mas o diálogo com outros alunos a ajudou. “Meu letramento racial começou nos corredores, conversando com colegas. A academia ainda tem muita dificuldade em aceitar um referencial negro, que muitas vezes é considerado menos acadêmico do que o de autores brancos, que já têm um lugar estabelecido há muito tempo”, diz.

Aline Costa, professora da Educação Infantil na rede municipal de Belo Horizonte (MG), passou por um processo parecido quando cursou o então chamado magistério. “Não tive embasamento teórico e prático para pensar em ações antirracistas. Naquela época, mesmo com a promulgação da Lei 10.639/2003, o tema ainda não chegava à formação de professores”, relembra.

A lei tornou obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas e, em 2008, foi complementada pela Lei 11.645, que obriga as instituições de ensino a abordar História e Cultura Indígena em sala de aula.

Ainda de acordo com Aline, mesmo na graduação de Pedagogia, que finalizou em 2012, o assunto não foi apresentado na grade curricular. Em sua formação acadêmica, o tema só foi aparecer em 2020, ao realizar uma pós-graduação em História e Cultura Afro-Brasileira. E isso só ocorreu porque a educadora já estava envolvida com práticas antirracistas. “De 2014 para cá, essa temática tem acompanhado meu trabalho, muito por acompanhar também a minha constituição enquanto mulher negra. Em 2017, ao assumir meu cabelo crespo, isso ficou ainda mais evidente, tanto na estética quanto na prática”, revela.

Madu Carmo, especialista em Educação Antirracista que atua na formação de professores na capital mineira, ressalta, no entanto, que ainda hoje há instituições de ensino que não respeitam a legislação. “Ainda tem escola que não implementou essa lei. Temos muito a avançar”, diz.

A impressão de que o tema não tem sido abordado como deveria também é compartilhada por Roseday Nascimento, coordenadora de área de conhecimento da Superintendência Pedagógica do Estado do Rio de Janeiro (RJ). “Hoje, nos cursos de graduação, isso ainda é abordado de forma discreta. O tema [Educação Antirracista] ainda não é considerado parte da matriz curricular. As pessoas ainda tocam no assunto ‘pisando em ovos’. Só que não vamos mudar essa situação se só as pessoas negras falarem sobre isso”, enfatiza a especialista.

A solidão dos professores negros

Além de todas as barreiras sociais impostas pelo racismo estrutural, ser uma das poucas ou a única profissional negra no ambiente escolar significa estar em um local solitário, conta Thaís. Nos estágios que fez em escolas públicas, ela quase não teve contato com outras professoras negras. 

“Isso foi causando em mim certo incômodo à medida que avançava no letramento racial. Na própria faculdade, tive poucos colegas negros. Quando falamos em solidão da mulher negra, ela não é só amorosa, mas também [está] no âmbito do trabalho”, diz a educadora, que acredita ser essencial constituir essa rede de apoio representativa. “Quando encontrei outros colegas negros, formamos uma rede de apoio e compreensão de certas questões que não podemos dizer que a comunidade escolar [como um todo] compreendia”, afirma Thais, em referência a situações de racismo que, por serem sutis, não são percebidas de maneira explícita por pessoas não negras.

Além disso, ter poucas ou nenhuma pessoa negra no corpo docente revela uma grande falha da instituição de ensino na luta antirracista. “Mostra como a gente vai naturalizando não ter pessoas negras em determinados espaços, e isso só reforça o estereótipo de que eles não são para pessoas negras. Se queremos falar sobre equidade racial e diversidade, precisamos ter um ambiente escolar diverso”, acredita a professora.

A opinião é compartilhada pela formadora Madu Carmo. “A falta de professores negros reforça para as crianças que o lugar do negro é na portaria ou na cozinha da escola”, opina. Por outro lado, a diversidade racial do corpo docente permite aos alunos, principalmente os negros, reconhecer a possibilidade de que pessoas como eles possam estar em posições sociais de prestígio. 

“As crianças percebem que as pessoas negras podem ser gestoras e coordenadoras. Esse pensamento desenha possibilidades para o futuro delas e também influencia sua autoaceitação”, complementa Madu.

Apoio é outro elemento essencial. Aline Costa relata uma experiência que viveu em 2015, relacionada a uma coordenadora negra. “Fiz uma proposta de trabalho [sobre temas raciais] e a resposta que obtive da coordenadora foi que não precisávamos falar sobre isso com as crianças. A ideia de que ‘não existe racismo no Brasil’ provoca um silenciamento do tema, especialmente na Educação Infantil”, acredita a professora. 

A situação mudou com a chegada de outra coordenadora negra, anos mais tarde, que ofereceu suporte para as propostas de atividades relacionadas a questões étnico-raciais.

Desafios impostos a docentes negros

Mas para que essa mudança seja efetiva é preciso ir além do discurso. A morte de George Floyd nos Estados Unidos por policiais, em março de 2020, é, na opinião de Thaís, um dos marcos que fizeram as instituições de ensino, com destaque às particulares, ingressarem no movimento de se afirmarem como antirracistas.

“Só que as escolas não refletiram sobre o que era necessário para ser antirracista. Temos a Lei 10.639/2003, que vai fazer 20 anos em 2023. O quanto é possível afirmar que houve mudanças curriculares decorrentes dessa lei? Não adianta você se dizer antirracista se não há nenhuma mudança prática”, enfatiza.

Segundo a educadora, ao mesmo tempo em que as escolas defendiam uma posição antirracista, não olhavam para as relações raciais dentro da própria instituição. “Nas escolas particulares, você não costuma encontrar uma grande quantidade de funcionários negros nem de crianças negras. São ambientes geralmente elitizados e embranquecidos.”

Além de revelar a disparidade racial no Brasil, esse cenário traz uma série de obstáculos, a começar pela necessidade de convencimento da comunidade escolar sobre a importância de abordar a educação para as relações étnico-raciais. “Um dos desafios é fazer com que a comunidade escolar entenda que pensar sobre isso é urgente”, diz Thaís. 

A tolerância ao racismo é outro desafio elencado pela profissional. “Algumas vezes, os casos de racismo são tão sutis que é preciso um olhar atento para o que está acontecendo”, diz a educadora. 

Aline conta que já ocupou um cargo de coordenação na escola municipal onde trabalha e que, durante esse período, em meados de 2019, incorporou a Educação Antirracista no projeto político-pedagógico da instituição. Esse trabalho envolveu conversas e formações com grupos de professores, inclusive de forma remota, durante a pandemia; consultoria de formadores especializados em educação para as relações étnico-raciais; e aquisição de livros de literatura afro-brasileira.

Porém, essa ação perdeu força a partir de 2021. “Por problemas pessoais e conflitos com a gestão, voltei a atuar apenas em sala de aula. Ainda desenvolvo com minha turma projetos coerentes com a Educação Antirracista, mas sem o apoio da instituição”, explica a professora.

Um exemplo é um projeto que trabalha literatura e brincadeiras africanas e afro-brasileiras, que desenvolve com duas colegas que também são negras, o qual foi submetido a um programa da prefeitura e aprovado. Com isso, as duas turmas das professoras puderam visitar museus de Belo Horizonte com foco em territórios negros, e as docentes puderam realizar intercâmbios com as equipes educativas dos locais.

“Se existe uma gestão negra na escola, isso faz toda a diferença. E, neste momento, não temos uma gestora que se comprometa com essa pauta. No projeto dos museus, tivemos suporte financeiro do administrativo da escola, mas, no âmbito pedagógico, não houve proposições”, desabafa a professora.

Obras para formação docente antirracista

  • A formadora Madu Carmo listou algumas das obras que utiliza em atividades com professores para conscientizar sobre a importância do combate ao racismo e a promoção de uma Educação Antirracista. Confira:
  • Irmã Outsider, de Audre Lorde;
  • Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro;
  • Lugar de Fala, de Djamila Ribeiro;
  • Cartas para Minha Avó, de Djamila Ribeiro;
  • Pele Negra, Máscaras Brancas, de Franz Fanon;
  • Becos da Memória, de Conceição Evaristo;
  • Olhos d’Água, de Conceição Evaristo;
  • Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo;
  • Insubmissas Lágrimas de Mulher, de Conceição Evaristo;
  • Quilombismo, de Abdias do Nascimento;
  • Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento;
  • Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire;
  • Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire;
  • Pedagogia da Esperança, de Paulo Freire;
  • A Importância do Ato de Ler, de Paulo Freire.

Representatividade importa e inspira

Criança em oficina de boneca abayomi. “Aquela menina negra, do fundo da sala de aula, olhará para mim e saberá que, se ela quiser ser professora, ela poderá ser”, diz educadora. Foto: Isabel Praxedes/NOVA ESCOLA

Representatividade é um aspecto fundamental para Samara Pereira, professora do Projeto de Reforço e Recuperação (PRR) do 5º ano da EE Santa Rosa de Lima, em São Paulo (SP). “Sou uma mulher negra, gorda, uso tranças e uso o cabelo de um jeito diferente toda hora”, descreve-se. “Acho importante termos todo o tipo de professor, em qualquer lugar, porque aquela menina negra, do fundo da sala de aula, olhará para mim e saberá que, se ela quiser ser professora, ela poderá ser.”

Samara traz como exemplo uma menina negra do 5º ano que, de acordo com a professora, sempre foi muito retraída e ainda não era alfabetizada. “Quando cheguei na sala, ela falou: ‘Professora, seu cabelo é igual ao meu! Você é linda’. Ela começou a se apegar um pouco mais a mim”, comemora, o que contribuiu para o trabalho de alfabetização

Hoje, inclusive, a aluna fala que quer ser professora. “Ela acredita que pode e consegue ser”, complementa a educadora, que relata também que outras meninas negras também passaram a usar tranças após sua chegada na escola, no começo deste ano.

A professora conta ainda que iniciou um projeto de alfabetização que usa o karaokê como estratégia para diminuir a inibição de alunos e ensiná-los, de maneira lúdica e divertida, a reconhecer letras e palavras e a construir frases. A adoção da prática só foi possível por causa do respaldo que a profissional teve da diretora da escola, que também é uma mulher negra. 

“A Paula [Beatriz de Souza Cruz] ficou apaixonada pela ideia, e conseguimos fazer muitos alunos evoluírem. É muito bom trabalhar quando você tem o respaldo da sua comunidade escolar. Você consegue ver a evolução tanto no seu trabalho quanto nas crianças”, explica a professora.

Outra professora que também destaca a importância da identificação positiva é Aline. “Uma vez, uma funcionária da limpeza da escola me disse que falava de mim para a filha, que falava sobre meu cabelo, estética, roupas e que eu era coordenadora da escola. Ao estar na sala da coordenação, havia um estranhamento, mas isso também trouxe para a comunidade escolar essa sensação de que havia uma mulher negra em um espaço que comumente não é acessado por pessoas negras. Um lugar de poder, digamos.”

Como a gestão escolar pode apoiar a Educação Antirracista?

As especialistas entrevistadas pela NOVA ESCOLA elencaram ações que a gestão escolar pode adotar para fortalecer o trabalho de docentes negros e, principalmente, para tornar a Educação Antirracista uma prática permanente no dia a dia da instituição. 

Criança em oficina de criação de bonecas abayomi. Representatividade é um aspecto fundamental que reforça a importância de ter professoras negras em sala de aula. Foto: Isabel Praxedes/NOVA ESCOLA

Criar um espaço de escuta ativa e troca de experiências

A professora Thaís explica que as escolas devem escutar os profissionais de maneira ativa e dar voz a pessoas negras. “É preciso promover espaços seguros de escuta. Espaços de diálogo e escuta são essenciais para que funcionários negros não se sintam hostilizados e fiquem à vontade para falar sobre isso”, diz a educadora.

Além da escuta ativa, é fundamental criar momentos para a troca de experiência, de acordo com a professora Aline. “Se uma professora tem uma prática exitosa, deve ser criado um espaço e um momento para que a ação seja socializada dentro da própria escola. Algumas vezes, até temos formação [de professores] a nível externo, mas ou não liberam o profissional para participar, ou não dão espaço para ele socializar esse conhecimento”, complementa.

Ter comprometimento contínuo com a Educação Antirracista

O assunto deve fazer parte do dia a dia da escola, e não apenas aparecer em datas comemorativas. “A gente tem de trazer o tema para o projeto político-pedagógico escolar. Nada pode ficar só para novembro”, afirma Roseday.

Também é preciso envolver todos os professores, não só os negros, e esses projetos têm de estar presentes na vida da escola, em todos os componentes curriculares. “Todos têm de estar envolvidos, e a temática deve ser naturalmente trabalhada”, complementa a especialista, que também destaca a importância de procurar estudiosos, fontes e conteúdos que mostrem às pessoas a importância de ter uma atitude antirracista.

Thaís também entende que é necessário mais comprometimento das escolas com a Educação Antirracista e que isso precisa partir da gestão. “A gente deve promover mudanças curriculares, na política de contratação e na formação dos profissionais, pois não adianta, por exemplo, falar de antirracismo e continuar com um referencial teórico eurocêntrico ou fazer formação continuada apenas com formadores brancos”, exemplifica.

Apoiar financeiramente iniciativas antirracistas 

Por fim, apoio financeiro também é essencial para práticas antirracistas. “[É necessário] investir em formação, tanto financeiramente quanto em tempo pedagógico, para que as boas práticas ganhem destaque”, diz a professora Aline. Outro ponto destacado pela educadora é investir em recursos e materiais, como um acervo literário para crianças e adultos e brinquedos como bonecas e bonecos negros. 

Para apoiar a formação continuada de professores e o desenvolvimento de atividades sobre o tema das relações étnico-raciais, a NOVA ESCOLA conta com 40 planos de aula alinhados à BNCC sobre consciência negra.

Esta reportagem faz parte do Especial Professores. Confira aqui os demais conteúdos

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