Para além do Dia do Índio: como abordar história e cultura indígenas em sala de aula
Especialistas e educadoras falam da importância de valorizar os saberes indígenas e trabalhar com questões contemporâneas e de forma crítica durante todo o ano
POR: Dimítria CoutinhoDesde 2008, quando a Lei 11.645 foi sancionada, o estudo da história e da cultura dos povos indígenas se tornou obrigatório nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. Quatorze anos depois, ainda há dificuldade para o tema estar, de fato, inserido no trabalho realizado nas salas de aula de todo o Brasil.
Cláudio Gomes da Victória, diretor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e líder do grupo de pesquisa Formação do Educador no Contexto Amazônico, afirma que houve alguns avanços desde que a lei foi sancionada, mas que o ensino da história e da cultura indígena ainda é defasado.
“Houve um avanço por conta dessa obrigatoriedade de inserir o tema no currículo. É possível enxergar, inclusive nos livros didáticos, alguma coisa nesse sentido. Mas percebemos ainda um espaço muito tímido, geralmente apenas em projetos ou em datas específicas”, comenta o pesquisador, lembrando que muitas vezes esse assunto é abordado apenas no Dia do Índio.
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Nesses poucos momentos em que o tema chega até a sala de aula, ele ainda vem carregado de estereótipos, sobretudo retratando um índio do passado. “O processo de construção da história desses povos sempre teve um viés colonizador, que não era o viés de quem viveu as experiências do cotidiano. Há uma visão elitizada, europeia e colonizadora”, analisa.
Para Raimundo Cruz da Silva, indígena do povo Kambeba, mestrando em Educação e diretor da Escola Municipal Indígena Kanata T-ykua, na Aldeia Três Unidos, em Manaus (AM), um dos grandes desafios das escolas não indígenas é dar valor ao conhecimento produzido pelos povos indígenas da mesma forma que estes valorizam o conhecimento não indígena.
Na escola Kanata, que tem turmas de Educação Infantil e dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, os alunos indígenas aprendem tanto os conhecimentos tradicionais do povo Kambeba quanto os saberes produzidos pelos não indígenas, o que Raimundo considera muito importante, avaliando que esta deveria ser uma via de mão-dupla.
Ele conta que, quando saiu da aldeia para estudar, teve muita dificuldade. “Eu conhecia apenas o mundo da vivência na minha aldeia, mas não conhecia o mundo lá fora. Por não o conhecer e pelas pessoas não conhecerem o indígena, sofri muita descriminação e preconceito. Se esses dois conhecimentos [indígena e não indígena] se juntarem, aí sim vamos ter uma educação muito melhor e intercultural.”
Sem estereótipos indígenas
Conheça 4 formas de não retratar os povos indígenas para seus alunos
1. O índio do passado
Um dos grandes estereótipos quando o assunto são os povos indígenas é retratá-los como sujeitos parados no tempo, estudando apenas as populações dos séculos 16 e 17.
“Ser indígena hoje significa fazer uso de outros elementos culturais que não faziam parte da cultura deles, mas que hoje fazem”, diz Cláudio. Raimundo lembra que é importante os estudantes saberem que os indígenas atualmente não vivem isolados e, em geral, não utilizam as vestes de penas que as escolas costumam associar a eles.
2. Índios são todos iguais
De acordo com o último Censo, de 2010, existem 305 etnias e 274 línguas indígenas no Brasil. Isso mostra a diversidade dos povos indígenas. Retratá-los como sendo todos iguais, portanto, é um erro que diminui sua história e cultura.
3.Festa vazia
Muitas vezes, as escolas abordam a temática indígena apenas no Dia do Índio, realizando festas nas quais os alunos se vestem com cocares e saias de penas.
Esse estereótipo reduz a cultura indígena e faz com que o tema seja abordado de forma rasa e vazia. Se elementos como a pintura corporal forem utilizados, é necessário que as atividades venham acompanhadas de reflexão sobre o tema, sem a apropriação da cultura indígena.
4. Preguiçoso ou guerreiro
Geralmente os indígenas são retratados como povos preguiçosos ou como sujeitos extremamente guerreiros. Mais uma vez, isso acaba criando um imaginário deturpado da história e da cultura indígena real.
Descoberta da ascendência indígena
Foi tentando fugir desses estereótipos que Flávia Roberta Alves Costa, professora de Arte dos Anos Finais do Fundamental na Escola Municipal Divino Espírito Santo, em Recife (PE), realizou o projeto Inspirações Indígenas, em 2017. Ela foi uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10 daquele ano.
Flávia conta que quase não tinha conhecimento sobre a cultura dos povos indígenas quando o currículo municipal passou a trazer arte indígena para ser trabalhada durante todo um bimestre.
Ela então estudou bastante o tema e desenvolveu uma pesquisa com os alunos para descobrir quais deles tinham ascendência indígena. O objetivo era levar para a sala de aula a cultura dos povos locais, já que há diversas etnias indígenas no estado. “Existe um desconhecimento por parte dos próprios pernambucanos de que temos essa grande população indígena e essa diversidade no nosso estado.”
Durante o projeto, muitos alunos que não sabiam descender de povos indígenas acabaram descobrindo essa relação – inclusive a própria Flávia. “Eles ficaram muito surpresos, porque uma grande quantidade de estudantes se descobriram descendentes indígenas e nunca tinham conversado em família sobre isso. Essa conversa veio à tona por conta do projeto. Eles começaram a contar as histórias que os pais e avós relataram, e foi um momento de partilha muito rico”, lembra a professora.
Flávia abordou com os alunos as diversas etnias indígenas e buscou quebrar estereótipos construídos socialmente. “Nós falamos muito sobre o índio na contemporaneidade, reforçando que ele não está localizado no passado. Os povos indígenas de Pernambuco usam celular e roupas como nós, mas participam dos seus ritos e têm suas roupas tradicionais para os momentos de festividade”, comenta a professora, que também convidou um grupo de indígenas para conversar com os estudantes.
Em Arte, o projeto permitiu que os alunos aprendessem técnicas como a tecelagem e praticassem o desenho de observação de alguns objetos indígenas. Além disso, os estudantes fizeram também pintura corporal.
“Eu tive muito cuidado para não imitar os indígenas. Estudamos algumas técnicas para fazer a nossa produção artística inspirada na arte indígena, e não [fazer] arte indígena. Porque quem faz arte indígena são os povos indígenas. Para eles tem um significado, e para a gente tem outro”, explica.
A professora afirma que o projeto foi essencial para quebrar preconceitos dos alunos, já que muitas famílias sentiam vergonha ou medo de relembrarem suas histórias. “Eu tinha um aluno indígena e tentava conversar com ele sobre o tema, mas ele se negava, tinha muita vergonha de falar. Depois de todo o projeto, ele se sentiu à vontade e pediu para contar sua história para os colegas. O momento mais bonito do projeto foi este: ele ser indígena e se sentir respeitado e admirado na escola.”
Depois do projeto, Flávia não deixou de abordar a temática indígena em suas aulas. A professora acredita que o tema deve aparecer sempre: se o assunto é fotografia, ela traz um fotógrafo indígena; se é pintura, um pintor indígena. “Por que eu tenho de separar a arte da arte indígena? Venho pensando muito sobre isso e reformulando minhas aulas.”
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Trabalho durante todo o ano e de uma perspectiva atual
Francilda Fonseca Machado, professora de História dos Anos Finais do Ensino Fundamental na Escola Municipal Santa Bárbara, em São Bento (MA), também costuma trabalhar o tema durante todo o ano.
Na região, há muitos legados dos povos indígenas, assunto que a professora faz questão de sempre resgatar. Ela conta que a cidade é forte na produção de redes e que a economia local é muito voltada para o plantio e beneficiamento da mandioca. “São heranças que nós temos dos indígenas e que permanecem até hoje. Falar disso para os alunos não é falar de algo distante.”
Francilda diz que incentiva os alunos a realizarem pesquisas, sobretudo com os familiares, e depois expor em sala de aula as descobertas que fizeram. Além de trabalhar a história local, ela afirma que o tema levanta discussões muito atuais, como as disputas por terras. “Aqui na baixada maranhense nós temos visto muitos conflitos. Os poucos índios que vivem na aldeia estão perdendo seus territórios.”
Questões como essa devem aparecer em vários componentes curriculares e ao longo de todo o ano, acredita a professora. “É importante que a escola coloque em seu plano de ação o trabalho com a cultura indígena e que isso seja feito durante todo o ano, e não apenas em um momento pontual. Até mesmo porque nós podemos perpetuar no aluno que aquele conhecimento não faz parte da vida dele, e isso é diminuir uma cultura que a gente na verdade vivencia todos os dias.”
Para Raimundo, abordar o assunto de forma contínua, durante todo o ano e em todas as escolas, não apenas nas indígenas, é uma das principais formas de combater o preconceito. “Se todas as escolas trabalhassem isso, existiria menos discriminação contra os povos indigenas, porque todos conheceriam a realidade, entendendo que cada povo tem um conhecimento e um modo de viver diferente de outro.”
Segundo Cláudio, é essencial que os professores abordem a temática de forma crítica, mencionando problemas atuais, como os conflitos por terras. “Se você traz somente uma visão muito chapada da coisa, não possibilita que se amplie o horizonte para os estudantes repensarem e refletirem acerca de suas visões sobre os povos indígenas.”
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A temática em todos os componentes curriculares
De acordo com a Lei 11.645, o estudo da história e da cultura indígena deve ser “ministrado no âmbito de todo o currículo escolar”, ou seja, abordado de forma transversal em todos os componentes curriculares.
“O grande problema é que nossas escolas são formatadas a partir de uma concepção de conhecimento ocidental, do conhecimento dito superior, e tudo aquilo que se coloca ‘abaixo’ disso não seria conhecimento”, afirma Cláudio.
“A dificuldade, então, é dialogar com outros tipos de conhecimento. Elementos da cultura indígena poderiam estar transversalizados em todos os conteúdos”, completa. Para Raimundo, valorizar esses saberes indígenas é essencial para que o tema apareça em todos os componentes curriculares.
Além de pesquisar muito sobre o assunto, o diretor aconselha os professores a convidarem indígenas para falar com os alunos em sala de aula, assim como fez Flávia. “Chame um ancião, um pajé, um militante dos povos indígenas ou um professor indígena, por exemplo”, orienta Raimundo. Outra dica é utilizar o mesmo modo de fazer das escolas indígenas, ou seja, valorizar os conhecimentos da comunidade e dos familiares dentro das escolas, como fizeram Flávia e Francilda.
Essas dicas servem para professores de todos os componentes curriculares, já que o assunto é pertinente em diversas áreas. Em Língua Portuguesa, por exemplo, é possível estudar palavras que foram herdadas dos indígenas ou até as diferenças entre dicionários de português e de línguas indígenas. Em Matemática, dá para explorar a forma como diferentes povos lidam com a numeração.
Em Ciências, a relação entre os povos indígenas e os elementos da natureza são uma opção de trabalho. Em História e Geografia, contextos e economias locais podem ser abordados. Em Arte, podem aparecer os artesanatos indígenas.
“As possibilidades são diversas se o professor tiver em mente que é necessário dialogar com os saberes indígenas”, comenta Cláudio. “É necessário fazer esse diálogo entre aquilo que é científico e aquilo que não é considerado científico, mas que também é um saber.”
Para saber mais sobre os povos indígenas
O primeiro passo para trabalhar a história e a cultura indígena em sala de aula é pesquisar sobre o tema. Confira algumas sugestões de fontes:
- Documentário Caminho de Amália, do Departamento de Educação Escolar Indígena da UFAM
- E-book Impressões geográficas e culturais dos povos indígenas do Amazonas - Volume 1, organizado por Emádina Gomes Rodrigues e Helenice Aparecida Ricardo. Acesse aqui.
- E-book Impressões geográficas e culturais dos povos indígenas do Amazonas - Volume 2, organizado por Emádina Gomes Rodrigues e Helenice Aparecida Ricardo. Acesse aqui.
- Livro A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da Lei 11.645/2008, de Edson Silva e Maria da Penha da Silva
- Livro A luta indígena no coração do Brasil, de Seth Garfield
- Livro O curumim pintor e outras histórias, de Sânzio de Azevedo
- Livro A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert
- Livro Histórias indígenas e ensino: fichas temáticas, de Edilene Pereira Vale
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