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Como levar memes, tirinhas e charges para as aulas

Esses gêneros textuais desenvolvem o pensamento crítico das crianças por meio do humor. Saiba como trabalhá-los nos Anos Iniciais do Fundamental

POR:
Ingrid Matuoka
Além de incentivar a leitura de forma leve, esses gêneros podem provocar uma reflexão aprofundada e crítica sobre os mais diversos assuntos. Foto: Getty Images

Poucos gêneros textuais têm tanta capacidade de conquistar a atenção e a curiosidade das crianças quanto tirinhas, charges e memes. Além de incentivar a leitura, eles podem provocar uma reflexão aprofundada e crítica sobre os mais diversos assuntos.

“Por ser leve, podemos pensar que o gênero humor é fácil, mas na verdade ele é bastante sofisticado. O humor demanda de nós saberes diversos, como o reconhecimento de ironia, sarcasmo, ambiguidade, metáfora e intertextualidade. Usualmente são gêneros mistos, utilizando elementos verbais e não verbais para obter o efeito de sentido desejado”, explica Julci Rocha, diretora da Redesenho Educacional, mestra em Educação e especialista em gestão educacional, design educacional e educação inovadora. 

Segundo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, o trabalho a partir de diferentes gêneros textuais e práticas de linguagem, incluindo novos gêneros e

textos multissemióticos e multididáticos, é essencial enquanto estratégia de letramento e até de educação midiática.

Os memes, especificamente, não fazem parte da proposta da BNCC para a etapa, possivelmente por se tratarem de um gênero digital, o que só é contemplado nos Anos Finais. Contudo, já fazem parte do cotidiano de muitas crianças, tanto quanto as tirinhas e charges.

“Os pequenos são nativos digitais, e isso nos leva a crer que as crianças já sabem lidar com o meio e entendem essas mensagens. Mas isso não é verdade, porque é preciso [haver antes] alfabetização e letramento digital. O primeiro [alfabetização] diz respeito a saber usar as ferramentas, e o segundo [letramento digital] é mais profundo: é ler, refletir, entender e construir em cima dessas mensagens”, define Karla Vidal, que trabalha com formação de professores por meio do projeto ProfLab, em Recife (PE), e introduz o uso da mídia para abordar metodologias criativas.

Para conduzir esse trabalho, é preciso que o professor selecione os textos que serão utilizados de acordo com a faixa etária. Também é interessante sugerir que os próprios estudantes tragam os materiais com os quais vão trabalhar, tanto para engajá-los quanto para adequar a aula ao que eles já têm acesso.

As potencialidades de cada gênero

Para que os estudantes comecem a interpretar uma tirinha, charge ou meme, apostar em boas perguntas pode ser um caminho para aguçar o pensamento crítico deles. “Qual mensagem você acha que [esse texto] passa? Qual o contexto em que ele surge? De onde veio a necessidade de comunicar isso?”, exemplifica Karla.

Já para ensiná-los sobre as diferenças entre os gêneros, o professor pode apontar os elementos gráficos, a linguagem, as temáticas abordadas e o efeito de humor. “A charge, por exemplo, não necessariamente tem o humor como tônica, diferentemente do cartum”, explica Julci, que recomenda o vídeo Charge, cartum, tira e meme são textos?, do Professor Noslen, para apoiar o trabalho dos educadores.

A especialista reforça que, como propõe a BNCC, o fundamental nessa etapa não é que a turma seja capaz de definir as características de cada gênero. “O contato com a diversidade de textos para ampliar o letramento dos estudantes é a prioridade”, afirma.

Na hora de começar os trabalhos, vale priorizar as tirinhas, que são mais simples e familiares para a maioria das crianças. Conforme elas avançam, é possível introduzir as charges e, por último, os memes. 

“Primeiro, [o interessante é fomentar] a questão da leitura e da compreensão da mensagem que está sendo passada naquela tirinha levando em consideração os elementos gráficos. A principal dificuldade vai ser a de entender o que não está explícito no texto e é essencial para produzir o sentido de humor”, aponta Priscila Mello Almeida, educadora que faz parte do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.

Ao abordar as charges, pode ser necessário um apoio do educador para explicar os acontecimentos da vida em sociedade sobre os quais o gênero trata. “É uma oportunidade muito grande de ouvir a opinião dos estudantes, de dar espaço para eles se expressarem, debaterem e refletirem sobre a nossa sociedade”, observa o professor Raimundo Pantoja Pires Júnior, que leciona para o 5º ano da EM Analice Maciel de Jesus, em Tartarugalzinho (AP).

Já em relação aos memes, que segundo a definição do EducaMídia são uma “ideia ou conceito que circula com rapidez pela internet, geralmente de forma visual e com tom de humor”, vale a pena apostar no trabalho com os mais simples e conhecidos ou com aqueles que as próprias crianças trazem. O #MuseudeMemes, por exemplo, possui um amplo acervo que pode ajudar nessa pesquisa.

Tirinhas, charges e memes na prática

Turma da Mônica, de Mauricio de Sousa.

Quando a professora Priscila trabalha tirinhas com sua turma de 3º ano na EMEB Professora Lyria de Toledo Pasquali, em Tietê (SP), costuma privilegiar as da Turma da Mônica, porque as crianças adoram. Ela seleciona uma que tenha poucos quadrinhos, esconde o último, no qual geralmente está o efeito de humor, e pede que os estudantes, divididos em grupos, imaginem e desenhem o final da história. 

O exercício possibilita que a turma vá se familiarizando com a estrutura do gênero: o quadro, a escrita sintética e direta em balões, a linguagem cotidiana e o desenho dos personagens e do cenário.

Depois, cada grupo apresenta seu final para a história, e então, juntos, descobrem a proposta do autor. “Geralmente eles criam finais parecidos e vou refletindo sobre o porquê dessa repetição e por que o autor não escolheu um final óbvio. É nesse elemento inesperado que reside o humor. Esse trabalho costuma prepará-los para interpretar os próximos textos, como as charges e os memes”, conta Priscila.

A educadora reserva um espaço na parede de sua sala para deixar as tirinhas analisadas expostas. Ao longo do ano, a turma forma uma pequena coleção de tiras. “Eles começam a perceber o que há em comum entre elas e a fazer dessa análise uma sistematização”, afirma Priscila.

Já o professor Raimundo, com suas turmas de 5º ano, costuma deixar exemplos de cada gênero textual em um cantinho de leitura da sala, onde os estudantes podem manuseá-los livremente. Há também um pequeno mural com o conceito e um exemplo de cada um.

Em uma aula, ele levou uma charge que, em alusão à Canção do exílio, de Gonçalves Dias, critica o desmatamento e a perda da biodiversidade brasileira. 

Em outra, compartilhou uma charge que discute desigualdade, fome e desperdício de alimentos. “Coloco a turma em roda e começo perguntando a opinião deles sobre a imagem, porque a charge busca o pensamento crítico do aluno”, explica o professor.

Ao longo do debate, o educador vai aproximando o tema geral das questões atuais da sociedade, da cidade, do bairro e até da realidade e das experiências que eles próprios têm com o assunto. 

“Quero ouvir o que esse aluno pensa, como ele desenvolve sua opinião e debate com os colegas, porque isso importa tanto quanto saber ler e escrever”, pontua o educador. 

Já em relação aos memes, além de analisá-los e interpretá-los, pode ser interessante explorar o potencial criativo da turma, já que o remix é uma das principais características desse gênero.

“Pode ser produtivo pedir para os estudantes sintetizarem um texto ou livro na forma de meme. Vai dar trabalho porque vão ter de pensar como fazer o leitor rir. [O meme] também pode surgir como disparador de um tema no começo da aula, como forma de comunicados para a turma e até para saber como estão os estudantes naquele dia, por meio daquele meme da escala de zero a dez de humor”, sugere Karla.

A especialista disponibiliza um material de formação que costuma utilizar com professores para mostrar caminhos para trabalhar os memes. Ele traz definições, ideias e modelos que podem ser utilizados livremente.

Humor só vale se for com respeito e tolerância

Entre todas as aprendizagens que o trabalho com os gêneros de tirinhas, charges e memes podem trazer, se destaca o fazer humor com respeito. Em tempos de amplo acesso às redes sociais, é essencial que as crianças, desde cedo, aprendam a interpretar, compartilhar e produzir conteúdos com responsabilidade. 

O EducaMídia publicou uma coluna sobre memes com imagens de crianças, como o caso da bebê Alice, que pode servir de apoio para abordar o tema com a turma.

“Sua imagem passou a ser usada de forma indevida e sua mãe veio a público pedir bom senso e ressaltar que não havia autorizado o uso da imagem. Além da exposição da imagem indevida, seja de crianças ou adultos, o meme pode ter teor de ridicularização de um sujeito ou grupo social, o que é inaceitável”, reforça Julci. 

Para sensibilizá-los sobre isso, é possível contar histórias de pessoas que viraram memes e sofreram consequências duras, como a Irmã Zuleide. “Dá para falar sobre bullying e cyberbullying com as crianças e o cuidado de não passar para frente o que pode ofender outra pessoa”, diz Karla.

Para tanto, os especialistas recomendam ensinar os estudantes a interpretar a intenção do conteúdo e a pensar em outras leituras que poderiam ser feitas, bem como nomear o que exatamente causaria um suposto efeito de humor. “Perguntar se eles gostariam que fosse a imagem deles ou de uma pessoa que eles gostam nesse meme costuma funcionar para isso”, observa Karla.

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