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Reunião de pais é oportunidade para reforçar compromisso com a Educação Antirracista

Gestores e professores podem aproveitar o encontro para mostrar a importância da temática e detalhar como vão trabalhá-la durante o ano letivo

POR:
Rachel Bonino
Abordar a temática antirracista já na primeira reunião de pais também é uma forma da escola se posicionar em relação ao assunto e abrir caminho para que os professores estejam respaldados na realização de suas atividades durante o ano. Foto: Getty Images

A organização da reunião de pais no início do ano letivo é uma atividade importante do calendário da gestão escolar. Trata-se de uma oportunidade de apresentar a escola, os professores, as propostas pedagógicas e os projetos previstos aos pais e responsáveis, além de estabelecer combinados e fomentar o engajamento das famílias nas atividades escolares. 

Para as instituições comprometidas com um projeto de Educação Antirracista, esse também é o momento de mostrar o planejamento de ações ao longo do ano ligadas ao tema. “De uma forma sintetizada, é possível comunicar a eles que existe um fio de pensamento em que vários elementos da cultura antirracista vão ser apresentados, debatidos e aprofundados ao longo do ano”, avalia José Couto Júnior, diretor do Ginásio Educacional Tecnológico Mário Piragibe, no Rio de Janeiro (RJ). 

Para ele, tão fundamental quanto a reunião com os responsáveis é a preparação para esse encontro, o que mostra o real envolvimento da equipe escolar com o tema. Assim, engajar o time para construir um projeto amparado nos pilares antirracistas deve estar na agenda do dia da direção. 

“O primeiro movimento é de conscientização dos professores e dos funcionários de que a escola precisa efetivamente combater o racismo e ter uma postura e uma pedagogia antirracistas. A partir do momento que trazemos isso, conseguimos estruturar determinadas ações e proporcionar um primeiro contato da comunidade escolar com o tema”, afirma.

Trabalho contínuo

Júnior conta que assumiu a direção da instituição em dezembro do ano passado. Neste início de ano, ele ainda está às voltas com pendências de infraestrutura e focado para colocar em prática o projeto de Ginásio Educacional Tecnológico( GET). O programa seleciona escolas da rede municipal do Rio de Janeiro para receberem equipamentos e currículo orientados para o desenvolvimento de habilidades tecnológicas. 

Nesse contexto, ele imagina que as conversas mais profundas sobre alinhamento pedagógico ainda acontecerão ao longo do primeiro semestre deste ano. Na avaliação dele, isso não impedirá de, já na primeira reunião com os pais, a gestão reforçar a intencionalidade por um projeto educacional que se propõe antirracista, inclusivo e alinhado com o compromisso de desenvolver habilidades tecnológicas. 

Ele diz que a reunião de início de ano letivo é a primeira de muitas conversas que devem ser feitas ao longo do ano. “Porque se a gente focar somente na reunião de responsáveis, podemos cair na mesma armadilha de só comemorar a Consciência Negra em 20 de novembro. A gente precisa, na verdade, pensar e pautar a escola [durante todo o ano].”

Construção de uma cultura antirracista

A primeira conversa flui melhor se a escola já tem uma atuação em curso para as relações étnico-raciais, com iniciativas no currículo e pessoas que já se apropriaram do tema. Desde 2018, quando assumiu a direção da EM Embaixador Barros Hurtado, também no Rio de Janeiro (RJ), Carla Maria Brandão de Oliveira já pensava em viabilizar um Projeto Político Pedagógico (PPP) em que a Educação Antirracista seria protagonista. Essa ideia vinha sendo gestada por ela e pela professora Monica Aniceto Barros, primeira docente dali a propor atividades em sala de aula focadas no assunto. 

“Podemos afirmar que somos uma escola autodeclarada antirracista”, ressalta Carla. “Está lá no PPP o compromisso da instituição com ‘a compreensão das várias formas de comunicação e com as releituras feitas no cotidiano como forma de dominação, opressão e resistência. Ambas precisam ser ressignificadas a partir de uma visão decolonial’”. 

Desde então, o trabalho tem sido constante e assíduo, envolvendo a equipe pedagógica, os responsáveis e os alunos, e foi reconhecido como referência na rede municipal pela Gerência de Relações Étnico-Raciais da Secretaria de Educação. Ao longo desse processo, ter conversado abertamente com a comunidade sobre a importância de uma Educação que valoriza a equidade racial criou uma cultura ali. “Percebo que como o trabalho é reconhecido, as famílias que chegam já sabem que esse é um tema importante para a escola”, considera Carla.

“Quando eu chego no primeiro encontro do ano com as famílias, a minha intenção, na verdade, é realmente reforçar a importância do papel da escola nesse momento da Educação Antirracista. Mais [relevante] do que postar no Instagram que fizemos uma atividade sobre a África é quantos alunos negros eu aprovei no Instituto Federal do Rio de Janeiro”, exemplifica. 

Mensagem e posicionamento reforçados

Abordar a temática antirracista já na primeira reunião de pais também é uma forma da escola se posicionar em relação ao assunto e abrir caminho para que os professores estejam respaldados na realização de suas atividades durante o ano.

“Esse encontro de início de ano letivo precisa superar uma pauta burocrática e proporcionar já um atendimento de humanização com todos que estiverem passando por aquele espaço”, destaca Lavini Castro, professora de História da Centro Integrado de Educação Pública (Ciep) Almedorina Azevedo, em São Gonçalo (RJ).  “A escola deve causar uma reflexão sobre essa cidadania, que não é plena ainda. Acredito que o conhecimento que transita ali deveria ajudar a fazer com que a gente melhore enquanto humanidade, enquanto sociedade.”

Foi numa dessas situações que Lavini lembra ter conseguido chamar a atenção para a temática antirracista no ano de 2014, ou seja, quando a Lei 10.639/03 tinha acabado de completar 11 anos e estava em pauta tanto no meio educacional quanto no noticiário. “Aquela reunião foi um momento estratégico para que me conhecessem como professora. Eu tive que explicar para as famílias o que eu iria fazer e falar que não trataria de nenhuma pauta doutrinária também”, conta. “Então, essa primeira reunião serve para você trazer a sua intencionalidade pedagógica dentro da perspectiva antirracista, ensinar o que que é antirracismo para aquelas famílias.” 

A educadora reconhece que esse tipo de abordagem nas escolas ainda é menos frequente do que deveria – o que é confirmado por outros docentes que participam das formações da Rede de Professores Antirracistas, organização da qual é coordenadora.

Lidando com conflitos

A conversa constante sobre educação antirracista, que começa na reunião de pais e se estende ao longo do ano, apoia ainda a gestão de conflitos que podem aparecer. A professora Monica Barros lembra que no ano passado uma turma propôs fazer uma apresentação de dança iorubá. Parte do grupo era formado por alunos declarados evangélicos. “Uma aluna reportou que a mãe dela questionou sobre a atividade, mas a própria estudante soube contextualizar a importância daquela apresentação dentro da proposta de evidenciar o valor daquela atividade cultural de matriz africana”, salienta. “Isso mostra o quanto avançamos dentro da escola, inclusive na temática da intolerância religiosa.”

Carla também se recorda que, há três anos, uma atividade de uma professora de Artes envolvendo pintura e adorno de oratórios levou vários responsáveis a procurarem a direção, pedindo esclarecimentos sobre o suposto cunho religioso. “Se, após três anos, você faz uma apresentação de dança de matriz africana envolvendo os orixás e não recebe nenhum retorno negativo, isso é um ganho do processo educacional”, enfatiza.

Segundo Carla, o importante é não deixar sem uma resposta os pais que procuram a escola para fazer algum questionamento ou reclamação. “Na primeira reunião do ano, não dá tempo de fazer um aprofundamento sobre a temática, mas é importante chamar as famílias que se sentirem incomodadas para um segundo momento, para tratar as demandas que elas quiserem trazer.”

Para apoiar a equipe nessas conversas, Carla e Monica estão montando uma oficina de letramento racial na escola que, neste ano, receberá novos professores. Para a reunião com os pais, a ideia é traçar um breve histórico das ações já feitas na escola e mostrar iniciativas que tiveram bom engajamento e participação de alunos e de famílias e que continuarão no currículo. 

Dificuldades e caminhos 

Parte da dificuldade em apostar em uma Educação Antirracista, e até de reforçá-la logo em uma primeira reunião com os pais, tem justificativa na falta de apoio e investimento governamentais. Eles são imprescindíveis para que a mensagem da Educação orientada pelas relações étnico-raciais seja amplificada com materiais, formações e amparo financeiro às gestões escolares, especialmente da rede pública de ensino. 

A pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, realizada pelo Geledés, Instituto da Mulher Negra e Instituto Alana e publicada no ano passado, no aniversário de 20 anos da lei, mostrou que, de 1.187 secretarias municipais de Educação consultadas, apenas 5% declararam possuir uma área especializada para abordar conteúdos educacionais sobre relações étnico-raciais. O estudo também revelou que apenas 8% das secretarias tinham um orçamento dedicado à implementação da legislação e 74% avaliaram não ter profissionais capacitados para colocar em prática o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira.

Além dessa falta de apoio, há ainda a dificuldade da comunidade que forma a escola de compreender o problema do racismo, da intolerância religiosa e da discriminação racial – o que é uma questão que se estende para além das fronteiras escolares e atravessa o país. Nesse contexto, a escola pode ser justamente esse espaço de reflexão. 

“Precisamos compreender que, às vezes, estamos em páginas diferentes na discussão com determinadas pessoas”, afirma José Couto Júnior. “De maneira geral, quando estamos lidando com alguns responsáveis, a gente não está nessa mesma página. Então, o argumento único de que se está cometendo racismo, de que racismo é crime, não vai funcionar.” 

Para ele, cabe à gestão escolar consolidar os argumentos para que a conversa com os responsáveis evolua para uma discussão saudável e produtiva, já que os conflitos vão acontecer e a escola deve estar preparada. Para isso, é preciso uma gestão ativa que esclareça dúvidas, dê segurança jurídica [garantindo a defesa do professor] e ajude a fortalecer o diálogo – dentro e fora da sala de aula. 

Envolvimento da comunidade

O esforço para abrir espaços para essas conversas, no entanto, não deve recair apenas sobre a figura do professor. “Quando surge um tensionamento não adianta imaginar que são só os professores e a gestão que conseguirão avançar com os argumentos. Precisamos ter os alunos e parceiros na comunidade como aliados”, indica Júnior. 

Foi justamente o que aconteceu em uma apresentação de jongo, quando alguns pais presentes se recusaram a assisti-la. Mas isso, por outro lado, motivou os estudantes a proporem a montagem de uma peça de teatro que debatesse a intolerância religiosa. A passagem gerou uma reflexão de Junior, publicada no site de NOVA ESCOLA

De acordo com os educadores consultados nesta reportagem, usar esse espaço da primeira reunião do ano para ao menos mencionar a intenção de trabalhar na perspectiva da Educação Antirracista é dar abertura para o diálogo e mostrar que a escola acolhe as reflexões que fazem parte do cotidiano da comunidade escolar e da sociedade.