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Caminhos para fazer da escola um espaço antirracista

Primeiro passo é promover um diagnóstico sobre práticas e caminhos percorridos em direção ao respeito à diversidade e, a partir daí, estruturar um plano de ação

POR:
Rachel Bonino, Maggi Krause
A escola Embaixador Barros Hurtado (RJ) tem um programa antirracista formalmente incluído no Projeto Político Pedagógico (PPP) da unidade, trabalhando a questão de forma ampla em todos os componentes e espaços. Foto: Camilla Portella/NOVA ESCOLA

Formada na primeira leva de cotistas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a professora Monica Aniceto Barros sempre fez questão de trabalhar com as temáticas dos direitos humanos e do antirracismo em suas aulas, mas “sem paradas técnicas para falar especificamente sobre esses assuntos”, explica. Em vez disso, ela prefere introduzir as discussões nas atividades realizadas com os conteúdos da disciplina, como fez logo que começou a lecionar na EM Embaixador Barros Hurtado (RJ). Na época, 69% dos alunos da escola se autodeclaravam pretos ou pardos.

De acordo com a professora, o racismo se faz muito presente na linguagem. “Uma criança percebe que uma conjunção adversativa é usada em uma fala racista. Por exemplo, ‘Ela é pretinha, mas é inteligente’. O ‘mas’ aponta um problema no que está sendo dito. Assim, os exemplos que apresento direcionam para discussões sobre as relações étnico-raciais”, explica.

Carla Maria Brandão de Oliveira, que também lecionava na escola, apoiava a abordagem de Monica. Quando as duas conversavam sobre o planejamento, sempre discutiam possíveis saídas para colocar no cotidiano essa abordagem a fim de viabilizar uma Educação Antirracista. Em 2018, quando Carla assumiu a direção da Embaixador Barros Hurtado, as ideias das duas colegas ganharam escala e, em 2019, o programa antirracista foi formalmente incluído no Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola. “Podemos afirmar que somos uma escola autodeclarada antirracista”, afirma Carla.

No PPP fica evidente o compromisso de gestores e docentes, tanto que o documento cita “a compreensão das várias formas de comunicação e com as releituras feitas no cotidiano como forma de dominação, opressão e resistência. Ambas precisam ser ressignificadas a partir de uma visão decolonial”. 

Ressaltar o protagonismo de personagens negros durante as aulas é uma maneira de garantir um ensino decolonial. Foto: Camilla Portella/ NOVA ESCOLA

Além de apoiar os professores a orientar os conteúdos para desenvolver habilidades que ajudam os estudantes a analisar posicionamentos, discursos e expressões problemáticas envolvendo as relações étnico-raciais, a gestão escolar investe em planejamentos bimestrais com palestras, eventos e discussões temáticas. Já foram organizadas, por exemplo, aulas sobre intolerância religiosa; palestras sobre a participação da mulher preta na política e as cotas raciais; visitas ao Quilombo Urbano do Camorim e oficina com trancistas da comunidade escolar.

Ambiente seguro e protagonismo

Quando começou a lecionar na Embaixador Barros Hurtado, Monica lembra que se deparou com um ambiente bastante hostil. “As crianças tinham um comportamento muito arredio, agressivo”. No entanto, toda a mobilização para uma Educação Antirracista criou um ambiente favorável para a escuta e para o diálogo.  

“Existe a questão da invisibilidade da criança preta na escola. E aqui elas falam, se sentem seguras para conversar com os professores e com a gestão. Isso é uma conquista da Educação Antirracista”, analisa a professora. De acordo com ela, o que a escola tem de mais precioso é a possibilidade de o aluno poder falar e ser ouvido. “Bell hooks [ativista antirracista americana] diz que a escola é como um jardim de possibilidades. Meu desejo é que as crianças possam realmente ver a escola como um jardim de possibilidades. Trabalhamos muito para isso”, explica Monica. 

Na avaliação da gestão escolar, os resultados positivos também se refletem no Ideb da unidade, que passou de 3,2 (em 2017) para 5,7 (em 2021).  “A maior prova que temos de como os estudantes reforçaram o vínculo com a escola é que eles pegaram o Ideb para eles. O índice passou a ser encarado como uma responsabilidade de todos”, fala Carla. 

As conquistas somadas até o momento são conjuntas, avalia a diretora. “As práticas existem na escola e as pessoas são engajadas.

Não é um movimento fácil, mas nós – gestores, docentes e equipe – estudamos, provocamos, vamos buscando conhecimento juntos. A gestão é como se fosse o timoneiro de um barco. Orienta, mas quem rema e faz acontecer mesmo é a equipe. E é muito difícil a equipe não ser tocada por esse projeto forte que está em andamento”, garante a diretora.

Na EM EMbaixador Barros Hurtado, o compromisso com uma educação antirracista está firmado no PPP, sendo responsabilidade de toda a equipe e da comunidade escolar, assim como imaginavam há anos a professora Monica (a primeira em pé da dir. para a esq. e a diretora Carla (a seguda sentada da dir. para esq). Foto Camilla Portella/NOVA ESCOLA

Trabalho conjunto por uma Educação Antirracista

Para quem lida com formação de gestores e de professores em Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) nas escolas, compromisso é uma palavra-chave para começar as transformações. Em primeiro lugar, o comprometimento com as posturas antirracistas é responsabilidade da equipe gestora. O discurso sobre a busca pela qualidade da Educação está desgastado, mas a priorização da questão étnico-racial se mostra urgente. “É preciso entender que não existe Educação de qualidade se ela for racista”, defende Jussara Nascimento dos Santos, responsável pela ERER no Núcleo de Relações Étnico-Raciais da Secretaria Municipal de São Paulo. 

Uma avaliação diagnóstica começa bem se for tratada institucionalmente. “É importante que professores e gestores reflitam sobre suas práticas para que percebam onde estão falhando ou não. Ao realizar um questionário, podem entender que não se trata de uma questão pessoal e, sim, do coletivo escolar”, explica Rosa Margarida de Carvalho Rocha, especialista em Estudos Africanos e Afro-brasileiros e mestre em Educação. 

Mesmo em capitais onde existe uma política consolidada, como Belo Horizonte, em que um plano municipal de promoção da igualdade racial é seguido por todas as secretarias e uma Diretoria de Educação Inclusiva e Diversidade Étnico-Racial funciona dentro da Secretaria de Educação, a questão precisa avançar. “Vemos que ainda há muita disparidade entre as escolas. Algumas são extremamente envolvidas, outras estão iniciando a discussão e ainda há outras que fingem que a discriminação não existe”, diz Janaína Dias Felipe, mediadora da SME e coordenadora do núcleo de estudos para relações étnico-raciais da regional noroeste de BH (as escolas são divididas entre nove regionais). 

Antes de começar a fazer um plano de ações com o objetivo de consolidar as leis federais 10.639/03 e 11.645/08 nas escolas, é preciso considerar o que observar no cotidiano para elaborar um diagnóstico. O diagnóstico-modelo a seguir, que você pode baixar, é baseado em um material elaborado por Rosa e foi publicado no Caderno Afro-pedagógico, da Coleção Que História é essa? Clique no botão abaixo para abrir e efetuar o download. O arquivo está em formato Excel (para ser preenchido digitalmente). 


BAIXE AQUI O DOCUMENTO

O material está dividido em seis abas, sendo uma para cada dimensão relacionada às relações étnico-raciais. A  última ajuda a organizar uma visão consolidada de todas elas. A gestão escolar deve marcar em cada um dos pontos presentes nas abas da planilha se o trabalho está consolidado (verde), em desenvolvimento (amarelo) ou ainda por fazer (vermelho) em suas escolas. Ao final, deve somar os pontos que foram classificados com as cores verde e amarela para saber o resultado, que deve ser avaliado da seguinte forma:

De 18 a 25 pontos: SIGAM EM FRENTE! Parabéns! A escola tem procurado desenvolver um bom trabalho e o caminho está sendo bem trilhado. 

De 17 a 09 pontos: ATENÇÃO! Algumas ações têm sido desenvolvidas, mas outras precisam ser implementadas com urgência! Procurem avançar cada vez mais! 

Abaixo de 08 pontosCUIDADO! Sua escola parou no tempo! Reflita sobre os resultados e reinicie o trabalho!

Experiências expandidas para toda a escola

“Precisamos deixar de lado a ideia de atender a legislação e abraçar o que é significativo para cada escola, com potencial para transformar aquela realidade”, diz a socióloga e educadora Priscila Elisabete da Silva, que atua com formação de professores na temática das Relações Étnico-Raciais. Ela defende estender a formação na área para todas as pessoas que se relacionam com os estudantes: merendeiras, porteiros, faxineiras, entre outros. E transportar para dentro da escola esse olhar que valoriza os saberes e reconhece que todos temos algo a ensinar. 

Priscila também nota que, cada vez mais, as experiências exitosas em escolas vêm sendo documentadas, em sites como o do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert), que atua em favor da equidade racial e de gênero. “Apesar disso, as experiências  não podem ser pontuais. Não podem ser o exemplo para quebrar a norma, têm de ser a norma”, defende.

Mas como fazer?

Rosa diz que não se alcança a consolidação das leis sem um plano de ação, sem pensar didática e pedagogicamente. E a formação para que o plano saia do papel precisa acontecer no chão da escola. O ideal, segundo ela, é a gestão promover encontros para discussão de princípios, referenciais e pressupostos que ajudem a construir protocolos e o próprio plano de ação. “Todos devem participar de forma articulada, e isso inclui ouvir os estudantes e o conselho escolar”, explica. 

Ela ainda sugere o uso de dois documentos orientadores. O primeiro é uma lista de perguntas que a gestão escolar deve responder, levando em consideração o público, o contexto e o território onde se encontra a escola. A intenção é fazer a equipe gestora compreender como pretende dar início às ações imprescindíveis para a consolidação das leis, estimular a reflexão e listar estratégias possíveis.

Clique no botão abaixo para abrir e fazer download do arquivo em Excel (para ser preenchido digitalmente).

bAIXE A LISTA DE PERGUNTAS

O segundo documento indicado por Rosa elenca princípios e lista sugestões de ações, compondo um modelo de plano de ação que deve ser modificado de acordo com cada contexto, realidade e necessidade da comunidade escolar. 

Clique no botão abaixo para abrir e fazer download do arquivo em Excel (para ser preenchido digitalmente). Note que o documento está dividido em duas abas, que podem ser localizadas e alteradas na parte inferior do arquivo.

BAIXE O MODELO DE PLANO DE AÇÃO

Atuação em rede

Para apoiar o trabalho de cada escola na construção de um plano de ação efetivo, a Secretaria Municipal de Educação de Caxias do Sul (RS) criou, em 2021, o núcleo QuERER (Qualificar a Educação para as Relações Étnico-Raciais). A ideia central é promover, orientar, coordenar e monitorar o conhecimento para uma Educação antirracista das escolas da rede municipal, com 83 escolas de Ensino Fundamental e 48 de Educação Infantil, totalizando cerca de 45 mil alunos. 

Antes de realizar o trabalho nas escolas, a Secretaria investiu na formação dos assessores, em parceria com o departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Nosso município tem uma origem enraizada na colonização italiana, com toda uma questão cultural que vai desde a alimentação ao vocabulário. As pessoas têm medo, por desconhecimento, de tratar de racismo de maneira natural”, explica Paula Martinazzo, diretora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação. De acordo com os dados mais recentes do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do total da população de Caxias do Sul, em 2010, 82% se declarou branca, 13% parda, 3% preta, 0,41% amarela e 0,11% indígena. 

Com os assessores tendo mais conhecimento sobre a temática, o QuERER partiu para a atuação nas escolas. Primeiramente, foram feitas reuniões de apresentação do núcleo para a gestão administrativa, diretores e vices, de todas as escolas da rede. “Depois, percebemos que, para ser bem-sucedido, o programa precisava ser encampado por quem faz a gestão pedagógica, ou seja, os coordenadores pedagógicos”, explica Paula.

A cada dois meses, aproximadamente, o núcleo oferece às escolas as chamadas missões. São atividades com abordagem para uma temática étnico-racial, ligada à história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, e que podem ser aplicadas de forma interdisciplinar. A metodologia utilizada é a gamificação com desafios ou gincanas educativas.

Para respeitar a autonomia de cada escola, o núcleo monta atividades amplas e  que podem ser aplicadas de formas variadas. “Todas as missões conseguem dar conta de todos os componentes curriculares da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Oferecemos para os professores e coordenadores habilidades, sugestões, vídeos, pequenos livros, textos e, a partir daí, cada escola tem autonomia para tratar do tema da forma que considerar mais adequada para a sua comunidade”, explica Cláudia Cristina Fin, assessora pedagógica do QuERER. “Tem escolas que ampliam e trabalham a temática de forma interdisciplinar. Outras trabalham com reagrupamentos. Existe a liberdade para customizar o trabalho”, conta Paula, diretora pedagógica da Secretaria Municipal de Educação

Assim que as missões começaram a ser colocadas em prática pelas escolas, o núcleo QuERER passou a desenvolver outro eixo de trabalho: formação docente. “As missões provocam desconforto. E, como imaginávamos, os professores se sentiram desafiados e os gestores escolares passaram a nos pedir formações pontuais sobre a temática”, conta Paula.

Para ela, o núcleo promoveu muitos movimentos importantes, sendo o principal deles o de fazer circular as discussões em torno do racismo, preconceito e respeito à diversidade. “Essas eram temáticas que não chegavam até a Secretaria antes do núcleo existir”, conta Paula, que trabalha no departamento desde 2015. “Percebemos que esse movimento está sendo fomentado nas escolas.  O interesse, a necessidade e o desejo dos diretores é que o núcleo amplie as atividades e as formações para todos os gestores , inclusive para eles próprios”, conta. Agora, o núcleo QuERER também se prepara para avançar nas discussões sobre a cultura e saberes apropriados dos diferentes povos indígenas, originários da região sul do país.

Confira também

A Fundação Lemann, o Centro Lemann de Liderança para Equidade na Educação e o centro de pesquisas Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) criaram um guia para ajudar secretarias de educação e gestores escolares a identificar e dimensionar desigualdades raciais em suas redes de ensino e, a partir daí,
elaborar ações mais embasadas a fim de mitigá-las. Acesse aqui

**Conteúdo publicado originalmente no Nova Escola Box em 22/10/2021 e atualizado em 19/06/2023  para o acréscimo de informações após entrevistas com Monica Aniceto Barros, Carla Maria Brandão de Oliveira, Paula Martinazzo e Cláudia Cristina Fin