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Como é o letramento midiático fora da Língua Portuguesa?

Aulas de Arte e Física mostram que a leitura crítica é útil em todas as áreas do conhecimento

POR:
Renan Simão
Quem mandou o quê? Dá para confiar? São perguntas que os professores podem incentivar para fazer com que os alunos desenvolvam espírito crítico e investigação para identificar notícias falsas   Foto: Shutterstock

No começo do dia, professor, você percebe que seus alunos se agitam rapidamente. Muitos receberam uma imagem forte pelo WhatsApp. Um homem nu está deitado no chão e uma criança toca a sua perna. É uma exposição artística, mas ninguém sabe detalhes do que aconteceu. Palavras de ódio e xingamentos aparecem nos smartphones de alguns alunos e professores ao longo do dia. O que você faz?

 

1. Coloque o foco no fato e na fonte

A professora de Arte Adriana Pistori deu uma aula para discutir os boatos recebidos e espalhados pela classe. Ao questionar opiniões pessoais na linguagem da arte (o feio e o belo), Adriana ensinou noções de Letramento Midiático à turma. Destacou que a leitura da imagem e do fato ocorrido carregavam aspectos de manipulação que não correspondiam a fatos comprováveis – muitos eram memes, por exemplo. Dependendo da motivação de quem enviava a imagem (se veio de publicação jornalística ou não), os alunos percebiam que as imagens recebidas mudavam de perspectiva e área de foco, reduzindo as informações do entorno da cena e, consequentemente, sua contextualização.

“Em muitas delas havia apenas o nu do artista e não todo o contexto de onde ele se encontrava. O que isso quer dizer? Quero que eles vejam os muitos pontos de vista daquela imagem”, afirma a professora do Colégio Santa Maria, de São Paulo.

Aos alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, Adriana fez perguntas que incentivavam o pensamento crítico. Por que essa performance existe? O que pode significar o nu na arte? Haveria polêmica se fosse o corpo de uma mulher? O que a performance nos diz sobre a liberdade de expressão?

Os memes e posts eram recheados de palavras de ódio e mentiras fáceis de serem desbancadas nas mensagens dos celulares. Adriana lembrou à turma sobre a necessidade de comprovação do fato e da preocupação de checar se vinha de fontes confiáveis. Ela indicou reportagens jornalísticas para serem lidas e discutidas em classe. Após os debates, os alunos partiam para a produção de pinturas e desenhos.

O processo de debate, contextualização e depois produção também é feito com imagens fotojornalísticas que refletem temas contemporâneos, como violência, pobreza e desigualdade. Na fase final da sequência didática, a construção plástica trabalha formas, linhas e perspectiva. Seu conteúdo é comparado com a realidade de cada aluno e contextualizado com as informações comprovadas. Com os trabalhos feitos e expostos em sala, a expressão de cada aluno ganha novos recursos autorais a partir do olhar crítico criado pelas conversas.

LEIA MAIS   5 atividades para falar sobre notícias falsas em sala de aula 

COMO IDENTIFICAR UMA IMAGEM FALSA

- Busque em sites jornalísticos informações de onde a imagem foi publicada originalmente.

- Verifique se há o autor da foto, legenda e data de publicação. Confira se a notícia que acompanha a foto traz mais informações sobre a imagem.

- Se ainda há dúvida, faça uma pesquisa reversa de imagem. Entre no Google Imagens, clique na “camerinha” e faça uma “pesquisa por imagem”. Confira se sites confiáveis usaram a foto que você encontrou e saiba mais sobre a origem dela.

- Tenha cuidado redobrado com fotos fora de contexto e de excessivo apelo emocional.

Fonte: Curso Vaza, Falsiane.

Foto: Getty Images

2. Leitura crítica vale para todas as disciplinas

A leitura crítica é habilidade essencial do Letramento Midiático. Ao analisar contextos de origem de imagens e textos jornalísticos, Adriana Pistori estimulou a autonomia dos alunos para distinguir pontos de vista atrelados aos fatos. Essa prática é destacada na Base: “Dada a relevância desse assunto na sociedade atual, a Base sugere trabalhar para capacitar o aluno a fazer uma leitura crítica e, inclusive, a fazer inferências sobre a veracidade – ou não – dos fatos. É importante que o aluno questione a origem da informação que chega até ele e que conheça recursos dos quais pode lançar mão para qualificar esses dados, antes de aceitá-los como referência segura”.

Embora esse conceito central para o letramento midiático seja descrito de forma objetiva em Língua Portuguesa, a própria Base reserva a busca de informações e o uso ético e responsável de dispositivos digitais em suas competências gerais, de forma transversal. A Unesco também recomenda em seu “Currículo para Formação de Professores” que a alfabetização midiática e informacional “deve ser considerada como um todo e deve incluir uma combinação de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes)”.

Além disso, vemos nas redes sociais que as notícias falsas (do inglês fake news) proliferam em qualquer área do conhecimento. Da política à economia, as falsidades passam por qualquer debate, mas têm lugar cativo nas ciências exatas e biológicas.

Depois de perceber que afirmações com pressupostos falsos se tornavam cada vez comuns em suas aulas do Ensino Médio, Estêvão Zilioli montou uma aula semanal específica, no contraturno e de inscrição voluntária, para a checagem de notícias potencialmente falsas. Foi assim que surgiu o projeto Hoax Busters (caçadores de boatos, em tradução livre do inglês), liderado por Estêvão no colégio Super Ensino, de Ourinhos (SP), com 25 alunos inscritos.

Ao conhecerem métodos de checagem, os alunos não apenas identificam notícias falsas. Em um texto escrito, eles precisam construir um argumento baseado em fontes de origem e oficiais, seguindo uma “trilha” de questões a serem checadas (abaixo e aqui). Após cumprir o percurso, os alunos se baseiam no método da agência de verificação de fatos Lupa para usar selos de verificação, indo do “falso” ao “verdadeiro”, passando por “ainda é cedo para dizer”, “contraditório”, “exagerado”, “subestimado”, “insustentável”, “verdadeiro, mas” e “de olho”. Conheça mais sobre as etiquetas aqui.

Ilustração: Google Midia Makers / Creative Commons / Estêvão Zilioli, Sandra Cristiane Rigatto, Thais Eastwood Vaine, Ana Paula Mateucci Milena e Alexia Araujo Cerquinho.

“Percebo uma mudança de postura nos alunos”, diz o professor. “Eles se tornaram muito críticos a ponto de questionar o material didático”. O episódio do material didático aconteceu numa aula sobre nutrição, em que os alunos contestaram a falta de complexidade do esquema tradicional da pirâmide alimentar, que não mencionava cuidados com excessos de gordura e açúcar. Embora incentive os alunos a promover o desafio ao professor de aprofundar informações a cada aula, Estevão alerta que um ceticismo sobre tudo não é a finalidade das checagens. “Sempre duvidar é diferente de não acreditar em nada. As informações de um bom cientista de 50 atrás estão sendo refutadas por outro bom cientista hoje. Acho positivo o fato de eles enxergarem a Ciência como uma constante transformação”, diz.

CHECAGEM DE FATOS

Ao professor que pretende trabalhar a checagem de notícias pela primeira vez, Estêvão Zilioli dá dicas baseadas em seu projeto, que foi selecionado para o projeto Inovadores, do Google.

- Nas primeiras aulas, comece sugerindo checagens fáceis como “tomar leite com manga faz mal?” ou “Einstein era ruim em Matemática?”. Para estar mais seguro, faça você mesmo as checagens antes das aulas e compare-as com a produção dos alunos.

- Cada aluno deve trabalhar com um computador, mas se não houver máquinas disponíveis, os alunos podem ser divididos em grupos. Todos os grupos fazem a mesma checagem. Ferramentas colaborativas, como o Google Documentos, permitem que o grupo produza a checagem simultaneamente em um único documento. Estêvão diz que em um ambiente virtual, como em um fórum online, os alunos e o professor podem continuar trabalhando mesmo fora da aula, estimulando o hábito da checagem.

- Toda checagem depende de hiperlinks. O texto dos alunos deve indicar links de fontes oficiais e primárias (que originaram o fato) para confrontar com o que diz a notícia. Uma boa forma de buscar um modelo para a produção escrita das checagens é analisar os textos de projetos como ComprovaLupa, Aos Fatos, Publica, entre outros.

- Com a prática, é natural os alunos pedirem para checar seus temas e notícias preferidos. Pode haver debates sobre os vieses políticos dos veículos de comunicação checados. Então, atenção: a “checagem deve ser a mais objetiva possível”, segundo Estêvão. O foco está na análise da notícia e não na linha editorial do site. Com isso, sites tradicionais e pouco conhecidos devem receber o mesmo método de checagem.

- Para não ficar apenas na checagem, passe documentários sobre o tema. Estêvão indica videos como o do canal Nerdologia sobre notícias falsas e por que acreditamos nelas.

- Checagens mais difíceis têm de lidar com as nuances das notícias. Certas ênfases e omissões de informações sobre fatos comprovados podem desinformar. Diferenças entre o que diz o título e o corpo do texto também devem receber cuidado redobrado. Para isso, o uso dos selos de verificação é recomendado.

- Para preparar suas aulas com atividades de checagem, acesse os materiais do Educação para Informação, projeto do Google do qual participa Estêvão Zilioli.  

3. Vídeos podem ser úteis na verificação

A professora de Física Ana Luiza Sério sabe que questionar está na base de uma boa investigação. Graduada também em Jornalismo e com especialização em divulgação científica, Ana Luiza conta que “tinha um preconceito, quase uma arrogância” em relação a conteúdos científicos disponíveis no YouTube, que em muitos casos apresentam informações incorretas ou são de didática simplista -- mas são bem mais consumidos por seus alunos do que qualquer periódico científico.

“Sem perceber, eu me vi usando os vídeos do YouTube para responder às lições de casa dos alunos. Em um canal chamado Veritasium (em inglês, com legendas em português), vi uma coisa que era muito conhecida no ensino de Física, que é apresentar a concepção espontânea aos alunos e depois explicar o conceito”, conta a professora de Física do Ensino Médio do Colégio Vera Cruz, em São Paulo. 

Ana Luiza tomou a concepção espontânea como uma forma de organizar sua aula. Desde então, ela apresenta questões aparentemente simples, mas que pedem respostas complexas. Um exemplo: Por que a força que a Terra exerce num objeto que cai é a mesma força que o objeto exerce na Terra? Por que uma barra de metal parece mais gelada que um livro, mas ambos têm a mesma temperatura? Ao se depararem com o que sabem (e principalmente com o que não sabem ainda), os alunos entendem que precisam de mais informações para dar conta de uma explicação científica. “Se o aluno vem com uma teoria da conspiração, você não vai falar apenas que está errado, mas o questiona até ele entender por si mesmo”, afirma a professora. 

Sempre que utiliza textos de revistas e jornais online em classe, Ana Luiza lê com os alunos e fornece os links para leitura posterior. “É mais que atualizar a aula. É olhar o aluno como sujeito que está no mundo. Acho que isso serve para todo professor”, diz. Para ela, o próprio uso crítico dos vídeos em aula já mostra aos alunos a qualidade da informação usada – Veritasium é feito por Derek Muller, doutor em Ensino de Física pela Universidade de Sydney, na Austrália.



COMO "DEBULHAR" VÍDEOS FALSOS

Vídeos falsos são mais difíceis de destrinchar do que o texto ou a imagem. Não é tão fácil de buscá-los no Google. E nem sempre vemos quando e como eles viralizam. Mas há indicativos para desconfiar daquele conteúdo. Siga o passo a passo:

1. Questione. Verifique se o tema já apareceu em sites noticiosos e comprove o que ele diz, comparando várias fontes confiáveis do mesmo assunto.

2. Veja se o vídeo responde à sequência de perguntas: quem, o que, quando, onde, por que e como. Se algo está faltando, desconfie.

3. Como é o texto que acompanha o vídeo? Verifique se há informações básicas sobre o autor ou o próprio tema do vídeo.

4. Veja se detalhes do vídeo mudam de acordo com outros compartilhamentos. Exemplo: compare o que você viu no YouTube com outro que surgiu no WhatsApp.

5. Tire um print screen (uma imagem da tela do computador ou celular) de uma parte duvidosa do vídeo e faça busca reversa do Google Imagens. Verifique se a imagem aparece em sites confiáveis.

Fonte: Fact-checking Day, do Poynter Institute

Matéria escura encontrada por cientistas da Nasa na Via Láctea   Foto: Science/Nasa

4. Use investigação científica como ferramenta

Essencial para o professor que quer abordar o letramento midiático de forma efetiva é saber como são produzidos os conteúdos de divulgação científica, que aparecem no noticiário jornalístico, mas são cada vez mais produzidos pelos próprios cientistas em sites, vídeos e podcasts.

No podcast e canal de vídeos Dragões de Garagem, por exemplo, temas como dieta sem glúten e política de redução de danos no consumo de drogas foram polêmicos. Nos comentários, uma enxurrada de opiniões emergiu, muitas delas se baseando em boatos pseudocientíficos.

“As pessoas tendem a defender com unhas e dentes o que lhes agrada, não gostando de ouvir que talvez estejam erradas”, diz Tabata Bohlen, bióloga e integrante do projeto. Como lidar com isso? Tabata afirma que as referências científicas usadas pela Dragões de Garagem têm base em notícias e artigos publicados em revistas ou veículos acadêmicos, e que “receberam parecer de outras pessoas de renome da área”.

É importante lembrar que a leitura crítica de conteúdos científicos (e dos jornalísticos também) nem sempre é “mentira ou verdade”. O antídoto para esse problema pode ser um exercício para compreender os diferentes argumentos para uma mesma questão. Neste caso, a questão é bem complexa: a matéria escura.

“Como ninguém conseguiu provar o que é ou não a matéria escura, os alunos também não têm uma resposta certa ou errada porque o pensamento científico não é sobre isso”, afirma Natasha Felizi, diretora de divulgação científica do instituto Serrapilheira, que realiza formação de professores de Ensino Médio para Física Contemporânea.

O objetivo do projeto é que os professores ensinem seus alunos a investigar cientificamente questões mais avançadas, aquelas que eles não podem comprovar, como neste caso. “Acreditamos que esse tipo de habilidade é uma forma de Educação Midiática, na medida em que ensina o aluno a pensar de maneira crítica sobre diferentes teorias, fontes, ângulos para a mesma notícia ou assunto”, afirma Natasha.

O QUE É NOTÍCIA? O QUE É VERDADE?

Apenas demonstrar como uma imagem ou um texto jornalístico usa de fatos não comprovados para viralizar na internet não é suficiente para uma apropriação ampla do letramento midiático.

“Qualquer trabalho com múltiplos letramentos tem que levar em conta o repertório. O aluno tem as suas preferências. Você tem que levar em conta seu protagonismo”, adverte Marciel Consani, professor da licenciatura em Educomunicação da Universidade de São Paulo (USP). Com a proliferação das notícias falsas, há um risco de, segundo ele, os alunos serem tomados por “um senso apocalíptico” com relação a toda notícia que se vê, buscando notícias falsas em tudo e não validando o que é realmente comprovado. Um contraponto a ser usado pelo professor pode ser uma abordagem que prioriza questões mais amplas, como “O que é notícia? O que é verdade?”, em vez de apenas apontar motivações ideológicas dos veículos de comunicação. Outra forma de conscientização em aula seria alertar que existe um prejuízo social para quem repassa notícias falsas. “Seus colegas vão desconfiar do que você envia. A responsabilidade é sua também”, avisa Marciel.

 

Este conteúdo é parte do projeto Palavra Aberta, em parceria com a NOVA ESCOLA, e apoio do GOOGLE, para incentivar a Educação Midiática e a liberdade de expressão.

 

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