Por que a escola é escolhida como alvo de massacres?
Entenda o que dizem especialistas sobre a forma como os ataques a escolas podem ser premeditados
POR: Jonas Carvalho, Paula Peres, Paula Minozzo
O ataque à EE Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), em março de 2019, deixou dez estudantes e funcionários mortos e foi um entre outros massacres com desfechos parecidos. Nos últimos 21 anos, o Brasil teve 22 ataques em 23 escolas, cometidos por alunos ou ex-alunos entre dez e 25 anos, sendo que nove desses atentados ocorreram entre o segundo semestre de 2022 e abril de 2023, como mostra a pesquisa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral – Unicamp/Unesp (Gepem) . Afinal, por que a escola é o alvo escolhido para massacres?
Sobre ataque em escolas, leia também:
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- Como tranquilizar a comunidade escolar?
- Brasil registra nove ataques em escolas nos últimos nove meses
- Possibilidades para evitar novas ações violentas
- Promover cultura de paz pode ser caminho a longo prazo
Pistas sobre motivações para massacres em escolas
Os autores do ataque de Suzano foram identificados como ex-alunos da escola. Anos depois, em abril de 2023, um estudante de 13 anos matou a professora Elisabeth Tenreiro, de 71 anos, na EE Thomázia Montoro, na capital paulista.
Para Flaviany Ribeiro da Silva, doutora em Saúde da Criança e da Mulher pelo Instituto Fernandes Figueira – Fundação Oswaldo Cruz e psicóloga na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, é importante entender que a escola é um reflexo da sociedade – sociedade esta que, segundo a especialista, é afetada pelo individualismo, a competitividade, a falta de diálogo e o isolamento, fatores que contribuem para a produção de violência. “Se a sociedade é atravessada por violências que vêm de diversos fatores, certamente a escola vai ser alvo delas”, opina.
Ao mesmo tempo, a escola é um espaço que estimula a colaboração, o respeito, a convivência coletiva e o diálogo, ou seja, o oposto do que se pode notar na sociedade em geral. “A escola é um espaço social por excelência, no qual se mantém um trabalho em grupo, em que pessoas estão reunidas. [A escola] ainda é uma certa resistência a uma sociedade que segrega, exclui e tem uma perspectiva de preconceito e discriminação. Penso que seja difícil [para potenciais autores de ataques] ‘suportar a diferença’, e, talvez por esse motivo, tenhamos o esgarçamento desse espaço coletivo”, acrescenta a psicóloga.
No caso do ataque à EE Thomázia Montoro, o agressor usou termos racistas em uma briga que, ao que tudo indica, foi o pivô do atentado. Além disso, é comum que os agressores estejam ligados a fóruns online de disseminação de discursos de ódio, da cultura da violência e da desumanização do diferente.
No Brasil, o histórico de assassinatos em massa nas escolas é recente – um dos casos de maior repercussão foi o de Realengo, no Rio de Janeiro, em 2011, que deixou 12 mortos. Nos Estados Unidos, onde há registros desde os anos 1940, psicólogos como Peter Langman se dedicam a estudar atiradores em escolas há décadas.
Autor de dois livros sobre o tema, Peter é considerado um dos maiores especialistas quando o tema é massacres em escolas. “Geralmente, atiradores escolhem as escolas onde estudam ou já estudaram”, afirma, em entrevista à NOVA ESCOLA. “É o local que ele conhece, que fez parte da vida dele. É o que está na memória. É lá também que pode ter surgido problemas ou conflitos com professores, funcionários ou colegas”, complementa.
O psiquiatra forense Guido Palomba, conhecido por trabalhar em casos criminais de repercussão nacional, concorda: em tragédias como a de Suzano, os autores do crime geralmente têm alguma ligação com a escola, nem sempre muito clara. “Eles têm alguma coisa. Podem ter sido expulsos, podem ter passado na porta e visto ou ouvido alguma coisa – não se sabe qual é o motivo”, diz.
Guido, no entanto, explica que não há uma lógica por trás ou que a escola possa ser culpada pelo acontecimento. “Não existe lógica. A escola não é fator predisponente [que cria as condições], não é a causa do fato”, afirma o médico.
Os especialistas também concordam com o fato de que unidades com mais equipamentos de segurança não estão livres de se tornar alvos. Segundo Peter, até mesmo escolas americanas com detectores de metais já sofreram ataques em massa. Para Guido, não há características específicas, como falta de segurança ostensiva, que levem os autores a escolher uma escola como alvo.
Por que não resumir a motivação a questões psiquiátricas
É comum que, diante de ataques a escolas, sejam apontadas motivações como transtornos mentais ou questões psiquiátricas. Para Flaviany, da Secretaria Municipal de Educação no Rio de Janeiro, fazer esse tipo de relação não é indicado.
“Quando a gente reduz as causas da violência a questões meramente de cunho psicológico, você acaba sendo cruel, porque nega que a violência é produzida por muitos fatores. Há uma multiplicidade de fatores que constitui a violência, e negá-la pode ser perigoso. É algo bem mais amplo do que localizar individualmente questões psicológicas ou psiquiátricas”, explica a especialista.
Um massacre pode levar a outro
Outro motivo que pode levar atiradores a escolherem escolas é o chamado efeito copy-cat (copiador, em inglês), termo criado por Peter. Ele afirma que vários assassinos citam casos anteriores de massacres em escolas, como o de Columbine, em 1999, nos Estados Unidos, como “inspiração” para agirem também nesses locais. Já que os casos de tiroteios em massa ganham repercussão nacional, Langam afirma que a imprensa deve ter cuidado ao fazer a cobertura jornalística desses fatos.
No Brasil, de acordo com Flaviany Ribeiro, nota-se esse tipo de efeito contágio. “Do episódio de SP [na EE Thomázia Montoro] para cá, a quantidade de casos de crianças levando armas e facas ou fazendo ameaças se ampliou enormemente. Parece refletir um contágio social. Esses episódios trazem a possibilidade de ataque para aqueles [alunos ou ex-alunos] que nunca pensaram [em cometer um atentado], mas que tinham alguma questão com a escola”, acredita a psicóloga.
Flávia Vivaldi, doutora em Educação, mestra em Psicologia Educacional e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral - Unicamp/Unesp (Gepem), também acredita que o efeito contágio – chamado por alguns especialistas de mimetismo – é real e requer cuidados.
“Quanto mais há a divulgação do medo, criando uma situação de pânico, mais potentes ficam essas ameaças. A orientação é denunciar sempre que conseguir detectar uma postagem com ameaças. Agora, ficar repassando qualquer mensagem no WhatsApp é aumentar o pânico e vai ao encontro dos objetivos de quem participa do processo de espalhar o medo. É um momento de refletir a quem interessa esse estado de pânico que a sociedade vem vivendo”, explica, em entrevista à NOVA ESCOLA.
O que as escolas podem fazer?
Antônio Zuin, professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor do livro Cyberbullying contra professores, reforça o papel da escola para mediar conflitos e prevenir futuros casos de violência. “Quando um aluno xinga o outro e o professor vê e continua dando aula, essa atitude estimula o preconceito e a reprodução de sentimentos ruins dentro do aluno agredido.”
Para ele, o estudante agredido pode reprimir seus sentimentos de frustração e, em uma sociedade que valoriza cada vez mais a cultura bélica, isso pode levá-lo a decidir os conflitos pela violência. “O professor precisa interromper a aula e conversar sobre o que aconteceu. Aí temos uma chance de a escola prevalecer sobre a bala.”
Mário Almeida, professor e psicólogo, era gestor do Programa Conviva SP quando o ataque à EE Thomázia Montoro ocorreu. Para o especialista, existem pontos de atenção nos quais a comunidade escolar deve atuar antes que situações de violência desencadeiem atentados:
- Não considerar racismo e outros tipos de discriminação como brincadeira no ambiente escolar;
- Levar a sério situações de bullying e atender vítimas, agressores e famílias;
- Observar comportamentos de alunos que possam indicar questões como depressão ou distúrbios de ordem emocional.
“Se fizermos a prevenção dessas situações, prevenimos também casos maiores de violência”, ressalta o especialista. Mario também reforça a importância de a gestão escolar buscar a origem dessas situações, que podem estar em diferentes maneiras de preconceito.
Outra ação importante é tranquilizar a comunidade escolar. E, para isso, o trabalho começa internamente, com a equipe gestora. “Se os adultos da escola alimentarem esse pânico, de fato, as escolas serão esvaziadas”, alerta Flávia Vivaldi, do Gepem.
A especialista também ressalta a necessidade de a gestão realizar o acolhimento de professores, funcionários, alunos e famílias, abrindo espaços para validar sentimentos, dialogar sobre a situação e receber informações claras sobre ações e providências da unidade escolar. “É fundamental a escola ter essa conversa, mostrar os canais de denúncia e se colocar sempre aberta para solucionar dúvidas e acolher as angústias”, acrescenta a pesquisadora.
Por fim, a promoção da cultura de paz é um caminho a longo prazo para prevenir ataques a escolas. A quarta edição do material Paz, como se faz? Semeando cultura de paz nas escolas, publicado em 2021 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em inglês), explica que uma cultura de paz não elimina os conflitos.
“A mudança está na forma de lidar com eles e na valorização de espaços democráticos, que respeitem e valorizem a diversidade”. Isso significa uma “busca ativa de sua resolução de forma construtiva por meio da negociação, do diálogo e da democracia. Em vista disso, a força mais poderosa, capaz de resolver desafios de maneira edificante é a não violência. Ela é o oposto da passividade, da obediência e da resignação” (p. 21).
*Texto publicado originalmente em 13/03/2019 e atualizado em 17/04/2023 para acréscimo de informações.
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