Educação infantil: vamos falar de uma experiência de sucesso na garantia desse direito?
Apesar da pré-escola ser obrigatória desde 2016, 96% das crianças 25% mais ricas estavam na escola nesse período, enquanto esse percentual era de 81,5% para as 25% mais pobres
POR: Alessandra GottiAs experiências vividas na Primeira Infância impactam a arquitetura do cérebro humano. É cientificamente provada a influência dos estímulos nessa etapa da vida no desenvolvimento das capacidades motoras, cognitivas, afetivas e de relacionamento social do ser humano, com repercussão direta no seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Não é por acaso que as estratégias de política educacional adotadas mundialmente privilegiam a Educação Infantil como um de seus pilares e, por consequência, uma de suas prioridades. O investimento em Educação nessa etapa da vida tem sido considerado como uma estratégia fundamental de combate estrutural à pobreza e à desigualdade social, sobretudo para as crianças mais vulneráveis cujas famílias têm mais dificuldades em prover estímulos necessários à idade, como defende James Heckman, prêmio Nobel de Economia.
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Partindo dessas evidências, o Plano Nacional de Educação (PNE) previu, em sua Meta 1, a missão de universalizar, até 2016, a Educação Infantil na pré-escola para as crianças de 4 a 5 anos de idade e ampliar a oferta de Educação Infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos até o final da vigência deste PNE, em 2024.
Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2018, do Todos Pela Educação, o percentual de crianças de 0 a 3 anos que frequentavam a creche no Brasil, em 2017, era de 34,1%, enquanto que as crianças que frequentam a pré-escola (4 a 5 anos) totalizavam 93%. Em 2001 esse percentual era, respectivamente, de 13,8% e 66,4%.
Embora importantes avanços tenham ocorrido nas últimas décadas, há um grande caminho pela frente, especialmente para garantir uma maior equidade nas oportunidades educacionais.
O desafio da equidade educacional
Enquanto 55% das crianças 25% mais ricas estavam na creche em 2017, esse percentual era de 26% para as 25% mais pobres. E, apesar da pré-escola ser obrigatória desde 2016, 96% das crianças 25% mais ricas estavam na escola nesse período, enquanto esse percentual era de 81,5% para as 25% mais pobres.
A ampliação da rede de atendimento à Educação Infantil é um desafio por si só. Sem um diálogo interinstitucional focado no planejamento e metas progressivas de atendimento, com a participação qualificada da sociedade civil organizada, a judicialização crescente é uma realidade inafastável.
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Se por um lado, as decisões judiciais possuem um impacto positivo e impulsionam a “agenda” de direitos das crianças; de outro lado, a atuação do Poder Judiciário, sem qualquer diálogo com os gestores públicos, traz um grande impacto no planejamento e na execução da política pública de educação, com pouca resolutividade.
Como quantidade de equipamentos não é suficiente para o acolhimento de todas as crianças, a simples determinação, nas ações judiciais que se amontoam no Poder Judiciário, é pouco ou nada eficaz. A rigor as liminares e sentenças concedidas limitam-se a provocar a alteração na ordem de chamada da fila de espera (quanto ela existe), ou seja, “furam” literalmente a ordem cronológica de ingresso das crianças, ampliando-se ainda mais a desigualdade no acesso à educação infantil.
O que fazer para reverter esse quadro?
Certamente não será seguindo o velho roteiro de sempre que essa situação será revertida em um horizonte próximo. É preciso inovar, fazer diferente.
O fenômeno da intensa judicialização por matrículas em creches demanda soluções dialogadas, sobretudo em uma época de sérias restrições orçamentárias.
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Soluções inovadoras, como a adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2013, para eliminar a fila de espera na Educação Infantil na capital paulistana, onde, com o espírito visionário do Desembargador Samuel Alves Jr, foi conduzida uma audiência pública e adotada uma decisão estrutural, têm se mostrado exitosas ao impulsionar a resolução das deficiências da macropolítica, mitigando desigualdades sociais.
Nessa decisão, adotada em uma ação proposta pelas ONGS do Movimento Creche para Todos, foi determinada a elaboração de um plano de expansão pelo Município de São Paulo para criar, no mínimo 150 mil vagas em creches e pré-escolas, no período de 2014 a 2016, de modo a eliminar a fila de espera, garantindo-se, ainda, a qualidade da educação ofertada. De forma inédita, a Coordenadoria da Infância e Juventude, sob a condução do Desembargador Eduardo Gouveia, ficou incumbida de monitorar a criação das vagas, assessorada por um Comitê de Monitoramento interinstitucional, com representação do Sistema de Justiça, sociedade civil organizada e especialistas (1).
Segundo o balanço apresentado pelas ONGs autoras no primeiro ciclo de acompanhamento do plano de expansão, de 2014-2016, foram criadas 89.249 vagas, sendo 72.814 em creches e 16.435 em pré-escolas.
A ampliação do acesso foi eficaz para equacionar o problema da fila de espera na pré-escola, mas não foi suficiente para eliminar o déficit de vagas em creches. Justamente em função da “missão ainda não estar cumprida”, em 2017, foi firmado um novo acordo judicial, que previu a criação de mais 85,5 mil vagas em creches, no quadriênio 2017-2020, nas áreas com maior demanda e vulnerabilidade socioeconômica, além do aprimoramento de critérios de qualidade relacionados à infraestrutura, razão crianças-educador e a formação dos professores em especial na rede conveniada privada, que é responsável por cerca de 80% do atendimento da demanda.
O diálogo em torno das metas do novo ciclo continua a ser conduzido pela Coordenadoria da Infância e Juventude, em reuniões semestrais com a Secretaria Municipal de Educação, assessorada pelo Comitê de Monitoramento que, além das instituições e especialistas que a integravam, passou a contar com a participação do Tribunal de Contas do Município.
Em 2018, quase 5 anos após essa decisão inovadora, a cidade de São Paulo superou a meta 1 do PNE com 61% das crianças de 0-3 anos em creches. Outro avanço relevante é a formação continuada dos professores da rede privada conveniada, que passa a ser feita conjuntamente com os docentes da rede direta a partir de 2019. Isso sem falar que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo constatou depois de quase uma década o declínio no ajuizamento de novas ações.
Embora haja muito trabalho pela frente, é importante reconhecer que o saldo é positivo. Ele é fruto do esforço de seguidas gestões municipais, da pressão social e, certamente, do diálogo colaborativo no âmbito do Comitê de Monitoramento, que tornaram a política de educação infantil uma verdadeira política de Estado e não de governo.
Decisões lastreadas no diálogo interinstitucional têm o mérito de fomentar a necessária articulação entre os principais atores responsáveis pela execução e controle de uma determinada política pública, o que facilita a obtenção de soluções mais eficazes e duradouras. Os resultados falam por si.
Alessandra Gotti é fundadora e presidente-executiva do Instituto Articule. Advogada e Doutora em Direito Constitucional pela PUC/SP. Consultora da Unesco e Conselho Nacional de Educação.
[1] Comitê de Assessoramento à Coordenadoria da Infância e Juventude era composto, de 2014-2016, pelas seguintes instituições: Ação Educativa; Associação Comunidade Ativa Vila Clara; Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo; Defensoria Pública do Estado de São Paulo; Fórum Municipal de Educação Infantil; Fórum Paulista de Educação Infantil; Instituto de Cidadania Padre Josimo Tavares; Negri – Núcleo de Estudos de gênero, raça e idade; Grupo de Atuação Especial de Educação do MPSP (GEDUC); Grupo de Trabalho de Educação da Rede Nossa São Paulo; Rubens Naves Santos Junior (Rubens Naves) e Hesketh Advogados (Alessandra Passos Gotti e Ana Cláudia Pires Teixeira).
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