Professor transforma Bíblia em referência para aula de História
Projeto premiado usou textos bíblicos para analisar História antiga para alunos do sistema prisional
POR: Camila CecílioEra mais um dia comum quando a mãe de um recuperando do sistema prisional ligou para o professor Di Gianne de Oliveira Nunes aos prantos. Do outro lado da linha, ela contou que havia visto o filho no noticiário, não por ter cometido um crime, como no passado. Daquela vez, o rapaz apareceu no jornal porque estava com livros de História nas mãos. Assim como esse jovem, outros alunos que cumpriam pena, fizeram parte do projeto Regime Fechado, Visão Aberta, que deu a Di Gianne o Prêmio Educador Nota 10 em 2017. “Não tem um dia que não me lembro desse episódio”, diz o educador.
LEIA MAIS Ele usou a Bíblia para ensinar História
Há sete anos Di Gianne dá aulas de História na EE Monsenhor Alfredo Dohr, cuja extensão são salas de aula dentro do presídio, mas foi em 2017 que ele teve a ideia de realizar o projeto com sua turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA). “Tudo começou quando percebi que havia mais bíblias do que livros de História e um aluno me perguntou se a bíblia podia ser usada como fonte histórica”, lembra.
A partir de então os debates sobre o tema passaram a ser constantes. “Fui mostrando a eles que era necessário separar o religioso da narrativa histórica. Fomos debatendo e criando um caminho com um início, meio e fim, até culminar na nossa apresentação final”, conta. A turma, formada por homens de 18 a 70 anos, estudou sociedades como as dos egípcios, assírios e romanos, retratadas na bíblia. Com materiais fornecidos pelo professor, os alunos também pesquisaram e compreenderam aspectos de conflitos atuais entre israelenses e palestinos ou do fundamentalismo islâmico.
Com as sequências de aulas, o professor foi percebendo o interesse da turma por História e mudanças na forma de ver o mundo. Di Gianne cita como exemplo o fato de que, na época, boa parte dos alunos não conhecia arqueologia. A partir do projeto, eles ampliaram a visão para outras vertentes do conhecimento e até os familiares começaram a perceber as mudanças durante as visitas. “Eles contavam que falavam sobre o projeto com seus parentes, que tinham mais assunto. Eu fui notando que aquilo tudo era uma semente do conhecimento e até a autoestima deles melhorou. Quando ganhamos o prêmio foi uma coisa de louco”, brinca.
Como posso desenvolver esse projeto na minha escola?
“Esse projeto é totalmente replicável em outras escolas, eu mesmo já levei para outras cidades e até mesmo salas de aula em outros presídios”, conta Di Gianne.
O professor explica que o aluno acha interessante e nota quando há algo diferente.
“Queira ou não, até o aluno não religioso enxerga a Bíblia como um livro admirável pelo tempo que foi escrito e sua propagação até hoje. Eu lembro que dentro de sala de aula, na escola regular, já era possível fazer algumas ligações entre a narrativa histórica e passagens da Bíblia e o aluno gostava de saber disso e sentia uma proximidade com a matéria.”
Além disso, é possível associar esses conteúdos a outras disciplinas. “Quando estava desenvolvendo o projeto com a turma de EJA, a professora de Ciências da nossa escola, que abordava questões de saúde, aproveitou para passagens bíblicas para falar de algumas doenças”, diz.
Regime fechado, visão aberta - por di gianne de oliveira nunes
INDICAÇÃO: Ensino Médio, EJA
DISCIPLINAS: História, Ciências, Geografia, Língua Portuguesa
DURAÇÃO: 4 meses
O que é o projeto?
O Estudo da História Antiga através de fragmentos da Bíblia comparados a outras fontes históricas dentro do Sistema Prisional.
Do que vou precisar?
Pesquisa em livros, revistas, mapas e claro na narrativa histórica da Bíblia: costumes, sociedade, direito, geografia, comércio, evolução, politeísmo, vestígios. (Proibido internet no presídio)
Quais os objetivos de aprendizagem trabalhados?
Argumentar, comparar, conhecer, socializar. Os alunos beberam de um novo conhecimento que não imaginavam a partir da busca pelas características históricas antigas através do acervo de diversas fontes. “Mediei as reflexões e os pontos de ruptura e permanência nas narrativas”, explica o professor.
E os desafios? Como encará-los?
“Se fosse para fazer algo diferente, eu recortaria mais alguns assuntos. Por exemplo, na Bíblia, o livro Atos dos Apóstolos tem muitas histórias e um fundo histórico gigantesco porque narra a jornada do apóstolo Paulo tentando impor o Cristianismo na Grécia e os conflitos desse período. Eu poderia ter feito parte por parte, esmiuçado mais”, afirma Di Gianne.
“Quanto aos desafios, acredito que o maior deles é em relação ao ambiente mesmo, afinal é uma cela de prisão que se transforma em sala de aula. Já cheguei a aula compartilhada, com cada professor em um canto da sala. Sem falar que a educação no sistema prisional nunca começa com uma quantidade de alunos e termina com a mesma e isso também é um desafio.”
E no final? O que meus alunos vão aprender?
A coragem de fazer algo inovador foi um grande combustível para a autoestima do detento, de acordo com o professor. “Eles mostraram que podem mais. Esses alunos saíram do presídio muito melhores do que entraram. Eles passaram até a conhecer os museus, como o Britânico, onde diversas peças dos persas e egípcios que são citados na bíblia e ali estão em exposição. Até a relação entre eles melhorou”, explica.
Di Gianne de Oliveira Nunes é formado em Direito e História. Notou que seria mais feliz lecionando e acertou. Há 14 anos está à frente de uma sala. Já deu aulas na Zona Rural, Educação Especial, cursinho e hoje atua na escola pública, privada e EJA no sistema prisional.
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