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Para colocar em prática: jogos de tabuleiro que vão muito além da sua aula

Passatempos consagrados na história trazem lições que transbordam os componentes curriculares para outras áreas da escola e da vida

POR:
Miguel Martins
Crédito: André Martins

Um tabuleiro formado por quadrados e triângulos, 15 peças e um oponente. Apenas com esses elementos, o que era uma classe sonolenta em uma tarde de verão torna-se uma arena de competidores concentrados. Em duplas, os alunos do 4º ano do Colégio Pollux, em São Paulo (SP), desafiam-se numa partida de um jogo em que uma onça tenta devorar 14 cachorros a sua volta, enquanto os caninos tentam cercá-la para impedir seus movimentos.

Antes de partir para a ação, os estudantes descobriram na aula de História do professor Jair Ferreira que o Jogo da Onça atravessou civilizações e continentes antes de ser adotado pelos índigenas brasileiros. Surgido na Península Arábica com o nome de Alquerque, chegou à Península Ibérica após a conquista da região pelos mouros no século VIII, atravessou o Atlântico nas caravelas portuguesas e espanholas e enfim recebeu uma adaptação dos Bororos, dos Manchineri, dos Guaranis e de outros povos orignais do Brasil, que elegeram a onça, animal local, como bicho a ser perseguido.

Das populações nômades para a sala de aula

A história do jogo de tabuleiro acompanha a humanidade desde as primeiras populações nômades, que talhavam seus próprios passatempos nas pedras de seus abrigos. Um gosto que rodou o mundo e que permite projetar um ano inteiro de aulas de História baseadas em tabuleiros como o Jogo Real de UR, da Mesopotâmia; o Senet, do Antigo Egito; o Latrúnculo, da Roma Antiga; o Xadrez Viking; A Raposa e os Gansos, da Idade Média; e o próprio Jogo da Onça. 

Há cerca de 10 anos, Jair, professor e autor do curso que será exibido a partir de 12 de fevereiro em NOVA ESCOLA (inscreva-se aqui para acompanhar o curso) decidiu ministrar os conteúdos da disciplina com o auxílio dos jogos em suas aulas na EE Professor Armando Gaban, em Osasco (SP). A inspiração veio do livro Homo Ludens, do historiador holandês Johan Huizinga, que entende a atividade lúdica como algo tão inato à humanidade como o conhecimento e a fabricação de objetos.

O trabalho de Jair põe em prática as lições de Huizinga, especialmente ao mostrar que os jogos não são válidos apenas na Educação Infantil. Os tabuleiros engajam estudantes dos mais variados anos do Ensino Fundamental, caso do colégio Pollux, e mesmo do Ensino Médio. Essa ampla aceitação tem relação com outro conceito proposto pelo historiador holandês: o “círculo mágico”, essa capacidade que a atividade lúdica tem de permitir um mergulho em outro universo. “Todo mundo vira criança quando joga. Quando você está dentro desse círculo, e há intenção, alegria, emoção, você esquece todos os problemas”, define Jair.

Por que usar os jogos em sala de aula?

- Os jogos ajudam a complementar os conteúdos das disciplinas
- Eles estimulam a tomada de decisões
- Ajudam a desenvolver competências socioemocionais como autocontrole e autoconfiança
- São uma boa ferramenta para a Educação Inclusiva
- Permitem abordar conhecimentos de áreas diferentes, o que traz uma oportunidade para a transdisciplinaridade
- Promovem a cooperação entre os alunos

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Conheça também outros cursos que propõem o uso jogos em aulas de Matemática e Língua Portuguesa

Muito além da História

Por sua relevância para a cultura humana, jogos são acima de tudo uma experiência transdisciplinar. Ao utilizar os tabuleiros em sala, Jair procura se aproximar de colegas de outras disciplinas para desenvolver atividades que vão da fabricação dos tabuleiros à compreensão das formas geométricas e entendimento das regras do jogo por meio da colaboração entre os professores de Matemática, Língua Portuguesa, História e Arte.

O professor de Matemática Renato Melo, também do Colégio Pollux, já trabalhava com o Jogo da Onça em sala de aula antes mesmo de conhecer Jair. Como o tabuleiro é repleto de triângulos formados a partir de linhas verticais, horizontais e diagonais que cortam os quadrados, é uma boa ferramenta para a percepção das formas geométricas. “Um aluno uma vez comentou comigo que, depois de disputar o jogo em sala de aula, olhou para cima na Estação Barra Funda e enxergou um monte de triângulos”, lembra, aos risos, o professor.

Além do auxílio para o aprendizado da geometria, o jogo de tabuleiro é usado por Renato para estimular os alunos a exercitar a sistematização e a tomada de decisões. Ele faz uma analogia entre os jogos de tabuleiro e a resolução de expressões numéricas e equações de 1º e 2º grau. Nos dois casos, conhecer as regras é importante, mas nem sempre é o suficiente para se chegar ao resultado esperado. “Numa expressão numérica, é importante ter a calma de começar pelo parêntesis, depois o colchete, depois a chave, saber qual a operação tem prioridade para a resolução”, explica o professor. “Eu sempre enfatizo com alunos: ‘você sabe a regra, mas tem que saber tomar a melhor decisão’”.

Crédito: André Martins

Piaget e os “jogos de regra”

A comparação entre uma equação e um jogo de tabuleiro faz todo sentido à luz da teoria do psicólogo suíço Jean Piaget. Ele propõe que todos os jogos podem ser estruturados em três formas:

- Jogos de exercício: comuns aos primeiros 18 meses de vida, são baseados na repetição e no desenvolvimento de capacidades sensório-motoras;

- Jogos simbólicos: geralmente envolvem uma analogia com a vida adulta. Eles se dão no faz-de-conta, quando as crianças brincam de casinha, por exemplo, na tentativa de imitar os pais ou responsáveis;

- Jogos de regras: são aqueles que não só envolvem repetições e símbolos, mas também a dimensão coletiva, de jogar em razão do movimento do outro, como é o caso dos jogos usados pelos professores Jair e Renato.

Em seu artigo “Os Jogos e Sua Importância na Escola”, Lino de Macedo, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), detalha essa estrutura lúdica esquematizada por Piaget e aponta que os jogos podem estar mais presentes no cotidiano da Educação ­­– até porque eles não se encerram na vida escolar. “O trabalho, o esporte, a vida cultural, a política não são, na verdade, complexos sistemas de jogos?”, questiona o pesquisador no texto.

Para Lino, os jogos de captura, como o Jogo da Onça, colocam os estudantes diante de questões mais amplas. “Eles mostram a ideia de que a vida é luta e fuga, de como a sobrevivência é um problema político. O jogo é uma metáfora para muitas discussões que tem valor na vida”, diz sobre o trabalho realizado pelo professor Jair.

Apesar do objetivo final do jogo de regras ser ganhar, Lino defende que os jogos de tabuleiro não estimulam apenas a disputa pela vitória. “Muitas pessoas são contra, pois acham que favorece a competição. Mas o jogo, do ponto de vista do processo de jogar, é cooperativo. Por causa da alternância das jogadas e pelo fato de os dois lados respeitarem as mesmas regras”, pondera.

Além disso, ele afirma que os jogos de regra geralmente representam uma “luta justa”, pois ao jogar, geralmente, buscamos adversários dentro do nosso nível de competitividade – mesmo que seja uma inteligência artificial, como ocorre no caso de jogos eletrônicos nos quais o oponente é o computador. “O objetivo é o mesmo e as condições são as mesmas. Então vence quem joga melhor naquela partida”, diz Lino. Para isso, ele relembra que é importante um bom desempenho, o que inclui estar focado, ter disciplina, exercitar-se bastante e ser habilidoso. “Todas essas variáveis são muito importantes no mundo de hoje. Não à toa, a chamada ‘gamificação’ é uma estratégia muito poderosa de aprendizagem”.

Crédito: André Martins

Os jogos na BNCC

Além de terem potencial para preparar os alunos para o “jogo da vida”, as partidas de tabuleiro podem estar bem alinhadas à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para alunos do Ensino Fundamental e Médio.

Jair explica que sua aula sobre a “transformação” do Jogo da Onça quando surgiu na Península Arábica (com o nome de Alquerque) até os tempos atuais está relacionada diretamente com uma das habilidades previstas pela Base para as aulas de História do 4º ano: a de “identificar mudanças e permanências ao longo do tempo...” (EF04HI02). Antes das peças começarem a se movimento pelo tabuleiro, os alunos têm a chance de refletir sobre como há enormes semelhanças entre o tabuleiro do jogo árabe e o do indígena, mas que o personagem “onça” acaba introduzido pela proximidade dos povos indígenas com o animal.

Da mesma forma, um professor de 1º ano também tem a oportunidade de abordar os tabuleiros em sua aula quando for desenvolver uma habilidade prevista tanto para Geografia como para História, a de “identificar semelhanças e diferenças entre jogos e brincadeiras atuais e de outras épocas e lugares” (EF01GE02 e EF01HI05). Já no 7º ano, o jogo da Onça pode ser utilizado para “identificar conexões e interações entre as sociedades do Novo Mundo, da Europa, da África e da Ásia no contexto das navegações...” (EF07HI02).

Renato diz que, no caso das aulas de Matemática, ele prefere pensar no jogo menos por sua aplicação direta a uma habilidade da disciplina, e mais por estimular o desenvolvimento de competências transversais. “Na Base, não há a sugestão do uso dos jogos para o Ensino Fundamental, mas é inegável que eles abordam a sistematização, a percepção de padrões, a tomada de decisões e a aceitação do ganhar ou perder como algo que se pode interpretar como parte das competências socioemocionais”.

As possibilidades obviamente não se encerram nas duas disciplinas. Em quase todas elas há habilidades a serem desenvolvidas com os tabuleiros. Lino lembra que o Jogo da Onça pode ser trabalhado não apenas em aulas de História e Matemática, mas também de Geografia, por envolver escalas e mapas; de Arte, pelo potencial estético dos jogos; e até em Física e Química, nas quais pode-se atentar para a composição material das peças.

Jogo também é inclusão

Vimos que os jogos podem trabalhar habilidades da BNCC e competências socioemocionais, preparar os alunos para um mundo repleto de regras e competitividade, e auxiliar na aprendizagem das mais variadas disciplinas. Mas há uma outra contribuição que muitas vezes só a prática permite descobrir: os jogos podem virar uma ferramenta para fortalecer a Educação Inclusiva.

Jair lembra com carinho de um de seus alunos de 7º ano chamado Vitor, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Ele tinha grandes dificuldades de aprendizagem e concentração, mas transformou-se ao descobrir a Mancala, uma família de jogos presente em muitas sociedades africanas e asiáticas que envolve a distribuição de peças em cavidades dispostas ao longo do tabuleiro – um puro exercício de raciocínio para capturar o maior número de peças.

Vitor passou a jogar Mancala com frequência, no tabuleiro ou no celular. Em pouco tempo, já vencia todos os colegas e o próprio professor. O garoto, que é fã de história e conhecedor da trajetória de grandes líderes militares como Napoleão Bonaparte e Genghis Khan, tornou-se uma celebridade na escola. “A coordenadora e todos os colegas foram vê-lo jogar. Ele ficava feliz demais de se destacar na frente de todo mundo”, relembra Jair.

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