Nem só de tecnologia vive o ensino remoto: estratégias off-line ampliam acesso às atividades na quarentena
Escolas escolhem disponibilizar materiais impressos para garantir aprendizagem dos alunos sem acesso à internet. Conheça a experiência dos educadores que vivem o cenário
POR: Paula SalasAs fotos desta reportagem foram tiradas remotamente pela fotógrafa Tainá Frota, através de videochamada com a professora Ingrid Antunes e o professor Anderson dos Santos Andrade.
“No primeiro momento parecia que a solução seria, com fluidez e tranquilidade, o uso de tecnologias digitais. Mas a realidade de muitos municípios mostra as dificuldades de acesso”, afirma Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e secretário municipal de Educação de Sud Mennucci (SP). A pandemia pegou todo mundo de surpresa e sem chance de planejamento prévio, mas as redes se viram mais despreparadas do que imaginavam. Diante do desafio do ensino remoto, as desigualdades de acesso às tecnologias digitais mostraram-se profundas.
As limitações e diferentes realidades enfrentadas pelas escolas resultaram em uma diversidade de estratégias para trabalhar os conteúdos a distância. Entre elas, os caminhos analógicos (ou off-line) como televisão, rádio, livro didático e materiais impressos. O levantamento “A situação dos professores no Brasil durante a pandemia”*, evidencia a força das estratégias que não requerem o acesso à internet. A pesquisa foi realizada por NOVA ESCOLA entre os dias 16 e 28 de maio e contou com mais de 8,1 mil respondentes da Educação Básica. Entre os materiais utilizados, livros e materiais didáticos aparecem como resposta de 30% dos professores, enquanto 64% indicam que as redes disponibilizaram materiais impressos.
Essa realidade também foi identificada no levantamento respondido por 3.978 redes municipais de ensino (71% do total dos municípios), realizado pela Undime e o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) entre os dias 27 de abril e 04 de maio. De acordo com os dados, 43% das redes (1710 municípios) que adotaram o ensino remoto afirmaram que usam material impresso. “Não tendo conectividade, um ato responsável é compreender o que de fato poderia chegar até o aluno. Daí a percepção de que é o material impresso”, afirma o presidente da Undime.
"O professor não é formado para trabalhar sem aluno. Nós sabemos o conteúdo e a didática, mas sabemos trabalhar presencialmente com o aluno", afirma Daniele Melo, professora na rede municipal de Carnaíba (PE). A falta de formação (e proximidade) dos educadores com ferramentas digitais e para trabalhar no formato remoto é outro ponto que, para o presidente da Undime, pode ter influenciado a escolha por estratégias analógicas. "Outro fator que certamente impactou a busca pelo tradicional é que o professor está acostumado a utilizar [materiais impressos], tem segurança para fazer", afirma Luiz Miguel.
Apesar disso, ele acredita que há um movimento de mudança sobre o uso de tecnologia em estratégias pedagógicas e enxerga que o processo vai ser acelerado pela pandemia. "Eu penso que em 5 anos estaremos, com todo esse processo que vivemos, mais avançados do que estaríamos se não fosse a pandemia, porque nós encontraremos novas possibilidades", aposta o presidente.
Diante desse cenário, NOVA ESCOLA buscou professores que estivessem com atividades impressas neste momento de ensino remoto para contar os motivos da escolha pela estratégia, como funciona a preparação dos materiais e a percepção sobre a experiência:
Inovando na forma de divulgar os conteúdos
Quando começou a quarentena, o pequeno município de Pariquera-Açu (SP) não aderiu ao ensino remoto. Preocupadas com seus alunos de 1º ano, Ingrid Antunes, em parceria com uma colega da mesma instituição, decidiu organizar atividades impressas para atender os pequenos que começavam o processo de alfabetização.
Com a aprovação da gestão da escola, as educadoras prepararam os materiais, imprimiram em casa e, então, um novo obstáculo: como entregar? Foi quando lembraram que o pai de um dos alunos era gerente do mercado do bairro da escola – um dos únicos da cidade. Elas organizaram os materiais em envelopes, que ficavam guardados no estabelecimento. Quando as famílias dos alunos do 1º ano iam ao mercado, recebiam as atividades escolares. A estratégia foi muito bem-sucedida. Em maio, o departamento de Educação da cidade aderiu às atividades impressas.
Parceria com comércios locais também foi a estratégia adotada pela escola de Anderson dos Santos Andrade, professor na rede municipal de Santos (SP), para anunciar o começo das atividades remotas. Eles perceberam que não tinham os contatos de muitas famílias, por isso inovaram para buscar alternativas.
Os educadores tiveram a ideia de preparar vídeos contando o início das atividades remotas. Esses materiais foram disponibilizados em pen drives distribuídos em mercados, padarias e empórios do bairro que eram frequentados pela comunidade escolar. Os vídeos eram transmitidos nos estabelecimentos, que também tiveram cartazes fixados sobre a ação para chamar atenção das famílias. "A proposta era mostrar que a escola estava perto e que logo estaríamos de volta e que eles poderiam ir até à escola buscar as atividades", conta Anderson. Para não deixar dúvidas que seriam vistos, projetaram durante meia hora na parede do sambódromo essa mensagem. O resultado foi muito positivo. Ele conta que depois da ação não tiveram contato com apenas 35 alunos dos mais de 1100 da escola.
Material físico como única alternativa
No início da quarentena, as férias na rede municipal de João Pessoa (PB) foram antecipadas. Quando acabou esse período, foi decidido que cada instituição teria autonomia para decidir as estratégias que seriam adotadas para o ensino remoto. A escola de Robson Santiago, professor de Língua Portuguesa no Fundamental 2, decidiu que, diante da realidade dos alunos, adotariam os materiais impressos. "Teríamos um alcance muito baixo [com atividades on-line]". Por experiências anteriores em sala de aula, o educador confirma que a decisão foi acertada.
Diariamente, a secretária entrega nas escolas os kits de alimentação. Uma vez ao mês, desde abril, as famílias também recebem um bloco de quatro apostilas de cada disciplina.
As atividades são pensadas alinhadas ao currículo do município, no entanto, cabe a cada professor fazer uma priorização dos conteúdos e pensar as atividades propostas. Robson conta que busca inovar e insere atividades práticas que sejam possíveis para os alunos realizarem em casa.
Para diminuir as disparidades entre as escolas, dado que cada instituição está com estratégias diferentes, surgiu uma iniciativa na rede de formação de comitês voluntários de João Pessoa para criar orientações e selecionar as habilidades e competências a serem priorizadas nas atividades remotas. Foi realizada uma consulta entre todos os professores da rede. A partir da pesquisa, os grupos de cada área do conhecimento trabalharam na compilação das respostas e construção do documento. O professor Robson faz parte da equipe de linguagens.
As apostilas que são entregues aos alunos não voltam para os professores. A falta de retorno e acompanhamento da aprendizagem dos alunos é uma dificuldade relatada pelo professor. "O aluno faz as atividades, mas não temos contato. O que incomoda é não saber se pode avançar [nos conteúdos] e como", diz. Ele diz que para construir as atividades faz um planejamento em espiral. Isto é, em cada atividade ele traz novos elementos do conteúdo, mas sempre retomando com o que foi trabalhado anteriormente. "A gente vai avançando, mas não sabemos se vai dar certo", afirma. A previsão é que esse material seja revisado na volta às aulas presenciais.
Robson conta que os professores se reuniram para pensar em como poderiam ter um contato com os alunos e tirar as dúvidas sobre os materiais trabalhados. Neste mês, eles planejam fazer um plantão no Zoom, plataforma de chamadas por vídeo, e verificarão a aderência para analisar se é uma iniciativa que vale a pena investir. "Eu me pego pensando como fazer isso [contato com o aluno] de forma analógica", conta.
Assim como a escola de Robson, a rede de Pariquera-Açu (SP), onde a professora Ingrid dá aula, não aderiu nenhuma iniciativa on-line. No entanto, diferente da realidade do educador, os materiais são disponibilizados semanalmente na escola e as famílias, quando vão buscar as novas atividades, entregam as da semana anterior. A professora corrige e, se necessário, envia um bilhete para a família com um comentário na próxima entrega.
Toda semana os alunos recebem cinco atividades. Ingrid prepara esses materiais em parceria com a outra professora do 1º ano. Em junho, elas começaram o livro didático. "Pegamos as habilidades esperadas, comparamos com as atividades do material e vemos quais as famílias conseguem ajudar. Escolhemos aquelas que não precisam de tanta intervenção", explica. A professora não faz apenas a indicação da página do livro, mas manda orientações e explicações complementares para os alunos, pais e responsáveis.
Ingrid mescla o livro didático com atividades complementares. Em suas propostas, a ideia é fazer algo diferente, incentivar a interação e envolver as famílias. Por exemplo, na época da festa junina, preparou uma atividade que remetesse à data e envolvesse leitura. Cada aluno recebeu 10 peixinhos feitos de EVA com sílabas escritas neles. As famílias receberam uma lista de termos e as crianças precisavam "pescar" os peixinhos necessários para escrever a palavra lida. Então, no envelope das atividades da semana, as crianças receberam as folhas de atividade e todos os materiais que precisavam para a pescaria – inclusive o barbante e o clipe para fazer a vara de pescar. Nessa mesma semana, também enviaram um saquinho de milho para que as famílias comessem pipoca na hora da atividade. "Mandamos o mais pronto possível", explica. A ideia é garantir que os alunos não deixem de participar da atividade por não ter os materiais.
Em um cenário ideal em que os alunos tivessem acesso à internet, os dois professores pensam que mesclariam as estratégias. "A tecnologia facilita bastante, mas o aluno precisa pegar o papel para ler e escrever”, afirma Robson. Eles percebem que há vantagens e desvantagens em cada um dos modelos de ensino remoto. No entanto, poder ter uma maior diversidade de estratégias seria interessante. "O misto é o ideal. Eu trabalho muito com o concreto, com a conversa. O livro é o último recurso, mas agora é o único", diz Ingrid. No entanto, a professora destaca que a participação das famílias tem sido muito boa. "Mesmo sem tecnologia tem dado certo. Estou bem feliz com o retorno das famílias, tenho visto resultados".
Mescla entre on-line e offline
Na rede municipal de Santos (SP), Anderson dos Santos Andrade é professor-articulador de turmas de Fundamental 1 em uma instituição em tempo integral. Isto é, ele é responsável por atividades complementares às aulas regulares. Apesar da maioria dos estudantes terem acesso à internet, a estratégia adotada foi oferecer materiais impressos e on-line. "O off-line é para ninguém ficar de fora", afirma. Por isso, independente do formato, os conteúdos são os mesmos.
No on-line, trabalham com aulas ao vivo, vídeo-aulas postadas diariamente via Facebook, Telegram e WhatsApp, além de manterem grupos de WhatsApp divididos por sala para tirar dúvidas. Anderson trabalha com propostas focadas em habilidades socioemocionais e temas transversais. As propostas partem de um tema gerador, geralmente apresentado em um texto. O formato da atividade pode variar. Ele já realizou, por exemplo, exercícios de teatro, bingo de tabuada e tangram de talheres. "Nós pensamos em conteúdos acessíveis", explica. Assim, a expectativa é de que o aluno tenha todos os recursos para entender aquele conteúdo.
Na rede municipal de Carnaíba (PE), onde a professora Daniele Melo leciona Ciências para o Ensino Fundamental 2, a estratégia adotada também foi disponibilizar materiais impressos e on-line. A escola fez um levantamento para mapear o acesso à internet. Entre os 800 alunos, mais de 250 alunos não teriam acesso.
Quinzenalmente, eles recebem as atividades – a escolha por não ser semanal se deve a que perceberam que demorava entre 4 a 5 dias para entregar todos os materiais. O planejamento das atividades é produzido em parceria entre os professores e as habilidades a serem trabalhadas em cada apostila são selecionadas em grupo. Sempre que possível, buscam trazer temas atuais e propostas interdisciplinares. Os professores preparam esses materiais e a gestão da escola é responsável por imprimir e preparar os pacotes a serem entregues. A rede disponibiliza motoristas que fazem a entrega para mais de 35 áreas rurais e periféricas. Quando as famílias vão à escola buscar o kit alimentação também podem retirar as apostilas.
As mesmas atividades impressas são disponibilizadas no Google Sala de Aula. Também são oferecidas aulas ao vivo de professores de disciplinas diferentes para discutir grandes temas. Por exemplo, Daniele e o professor de Geografia fizeram uma discussão sobre a covid-19 – o histórico das pandemias, o que o vírus faz no corpo, a diferença entre pandemia e endemia. Outros professores também fizeram encontros semelhantes com interação e perguntas via chat no Google Meets. No entanto, essas aulas não tem uma recorrência fixa e acontecem como complemento das atividades propostas. "Estamos nos esforçando. O on-line tem mais ferramentas, mas tem o mesmo conteúdo [no on-line e nas apostilas]", explica. Ela exemplifica que deu uma atividade sobre circuitos elétricos com uma parte prática. Enquanto no impresso eles incluíram imagens, textos e artigos, no on-line também incluiu vídeos.
Por chegar na casa dos alunos, o acesso aos materiais é bom. A professora conta que uma surpresa da escola foi que muitos alunos que têm acesso a internet pediram para receber os materiais impressos. "Eles preferem a apostila, se sentem mais seguros. Por estarem sozinhos, o papel é mais fácil. O aluno usam as redes sociais, o que não quer dizer que sabem mexer no Google Sala de Aula", afirma.
Tanto os alunos que estão com as apostilas, quanto aqueles que estão fazendo as atividades on-line, a orientação é que apenas no retorno os professores corrijam as lições, tirem dúvidas e revejam os conteúdos. Assim como o professor Robson, Daniele coloca a dificuldade da falta de retorno dos alunos. No entanto, eles imaginam as dificuldades que podem surgir e buscam aprimorar e complementar os materiais ofertados. Ela conta, por exemplo, que passaram a incluir um glossário com termos importantes para garantir o entendimento dos alunos que não têm acesso a um dicionário em casa. "Estamos com muito cuidado com isso, revendo tudo para ver se está atendendo os alunos", explica.
A volta é incerta e causa ansiedade para muitos educadores. Anderson conta animado a proposta que existe de compartilhar a experiência do ensino remoto na volta às aulas. A ideia é fazer uma exibição dos materiais que foram criados como uma forma de valorizar as iniciativas que surgiram neste momento, os objetivos atingidos, os projetos realizados. "Queremos mostrar que dentro da pandemia houve conteúdos e aprendizagens tão importantes quanto aprenderiam no ambiente da sala de aula", afirma.
*A pesquisa “A situação dos professores no Brasil durante a pandemia” foi realizada entre os dias 16 e 28 de maio de 2020 por meio de um questionário on-line disponível no site de NOVA ESCOLA. Ao todo, foram coletadas 9.557 respostas, sendo 8.121 (85,7%) delas de professores da Educação Básica.
Nas próximas semanas, NOVA ESCOLA vai aprofundar as situações vivenciadas pelos educadores em uma série especial de 10 reportagens sobre os retratos da quarentena. Esta é a sétima reportagem. Confira as outras já publicadas da série:
- Ansiedade, medo e exaustão: como a quarentena está abalando a saúde mental dos educadores
- Escolas rurais em quarentena: internet via rádio, acesso limitado aos materiais impressos e evasão escolar
- Sem aulas e em casa: a realidade dos professores que estão sem atividades durante a quarentena
- Da pandemia nasce uma nova relação entre escola e família
- O malabarismo de ser mãe e professora na quarentena
- Como estão os professores que tiveram redução salarial na pandemia?
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